Este artigo é parte da Série “A Ciência e a Doutrina da Criação na Teologia Moderna”. Leia o primeiro artigo aqui.

 

A contribuição mais importante e duradoura de Eberhard Jüngel para o renovado interesse contemporâneo na doutrina da criação vem na forma de uma contestação.

Jüngel nunca produziu uma declaração programática ou mesmo abrangente sobre a criação; a coisa mais perto disso é um ensaio tardio sobre “o poder criativo da palavra” no qual ele correlaciona a doutrina da criação e sua abordagem idiomática ao problema da linguagem teológica.

A Teologia como uma tola na Casa das Ciências 

O tema da criação é virtualmente ausente nas principais monografias de Jüngel. No clímax de seu argumento em God as the Mystery of the World, sua obra mais bem conhecida e desafiadora, ele emprega uma drástica distinção entre Criador e criatura para esclarecer o caráter da agência do Deus triúno na economia, mas tal abordagem dificilmente pode ser considerada como um doutrina da criação plenamente formulada. Em vez disso, o que encontramos aqui e em outros lugares dos escritos de Jüngel são breves indícios, qualificações e advertências acerca de como um relato abrangente da criação deve se desenvolver. 

A evidente desconsideração de Jüngel pela doutrina da criação corresponde a uma longa carreira de indiferença aos desafios apresentados à teologia pelas descobertas científicas e pelas filosofias da ciência que floresceram desde o Iluminismo. Ao contrário de muitos dos seus contemporâneos, talvez mais notavelmente Wolfhart Pannenberg, Jüngel não argumenta em favor de uma aproximação entre teologia e ciência. Além disso, embora ele tenha passado a maior parte de sua carreira acadêmica em Tübingen, uma das principais universidades de pesquisa da Europa tanto nas humanidades quanto nas ciências, o trabalho de Jüngel em dogmática cristã raramente cruza fronteiras interdisciplinares. De acordo com Jüngel, o trabalho teológico acadêmico, mesmo em ambientes de pesquisa universitária, possui “uma relação existencial com o púlpito”, e sua tarefa principal é ouvir a palavra de Deus e reafirmá-la. Definida como tal, a teologia não é obrigada a se engajar, debater ou colaborar com as ciências – a menos que tal interação seja apropriada a causa da proclamação cristã. Jüngel reconhece o risco significativo envolvido em assumir tal postura, a saber, que a teologia não seja reconhecida como legitimamente científica ou acadêmica quando vista ao lado das outras disciplinas universitárias. Para Jüngel, porém, a responsabilidade da teologia para com a palavra de Deus supera qualquer aspiração à dignidade acadêmica. Na vida da universidade, a teologia deve ter a coragem de renunciar à sua própria glória pelo bem de sua mensagem, ainda que, ao fazê-lo, seja considerada como uma “tola na casa das ciências”.

A obra de Jüngel exibe uma visão da teologia como pensamento que surge e é animado pela Palavra de Deus. Suas discussões sobre a criação e o relacionamento entre teologia e ciência são determinadas por esse compromisso com a prioridade das boas novas de Deus, que nos encontram e nos libertam dos grilhões do pecado. Se Jüngel parece ambivalente ou talvez até mesmo antagônico em relação ao entusiasmo da teologia pela criação e pelas ciências naturais, é porque ele teme que ao enfatizar tais tópicos a teologia seja distraída de sua principal tarefa de receber e reafirmar a Palavra. 

“Uma Teologia Mais Natural do que a assim chamada Teologia Natural”

Um breve sumário da posição de Jüngel sobre esse conjunto de questões aparece no segundo capítulo de seu interessante opúsculo Christ, Justice and Peace: Toward a Theology of the State, que ele escreveu por ocasião do quinquagésimo aniversário da Declaração de Barmen (1934; doravante DB). Nesse capítulo, Jüngel expõe a DB1, que, como ele coloca, “dá expressão não a uma verdade evangélica entre outras, mas… expressa a única e exclusiva verdade decisiva acerca do caminho para Deus e a vida que vem de Deus”, a saber, a verdade da palavra única de Deus: Jesus Cristo. Jüngel demonstra que, em meio à terrível crise do Kirchenkampf [“disputa pela igreja”] na Alemanha, a DB1 afirmou e sustentou que somente essa palavra única de Deus é a fonte do testemunho e proclamação da igreja. A rápida e violenta consolidação do poder político e cultural pelos nazistas em 1933 e 1934 havia forçado a questão, uma vez que o “estado total” de Hitler havia rapidamente se posicionado como a origem e o destino do Volk [povo] alemão. Ao se render à ideologia nazista, os cristãos alemães efetivamente substituíram a palavra de Jesus Cristo pela palavra do estado, ouvindo ao Führer em vez do Deus do evangelho. 

Cada um dos seis artigos da Declaração consiste de uma ou duas citações da Escritura, uma cláusula de afirmação resumindo algum ponto importante da doutrina cristã, cuja verdade os Cristãos Confessantes julgavam urgente durante a crise de 1933-1934, e uma cláusula de rejeição esclarecendo o que deve ser renunciado à luz do evangelho. No capítulo de Christ, Justice and Peace em questão, Jüngel se volta para a cláusula de rejeição da DB1: “Rejeitamos a falsa doutrina de que a Igreja teria o dever de reconhecer – além e à parte da Palavra de Deus – ainda outros acontecimentos e poderes, personagens e verdades como fontes da sua pregação e como revelação divina”. Embora ele reconheça que o contexto imediato dessa rejeição fosse a invasão do estado total de Hitler no domínio espiritual da igreja, Jüngel identifica na cláusula de rejeição um argumento pertinente para o problema perene da teologia natural: a suposição de que se possa alcançar ou adquirir conhecimento de Deus através da reflexão racional sobre fenômenos terrenos ou naturais. De acordo com Jüngel, a DB1 elimina a teologia natural ao estabelecer a prioridade da palavra revelada de Deus em relação à revelação “geral” disponível por meio da criação, da ordem natural, do estado, do Volk etc.

Jüngel observa, no entanto, que a DB1 não afirma em nenhum lugar que Deus está totalmente silencioso no mundo à parte do evangelho. Ao contrário, “a única coisa que é eliminada é a ideia de que haja outras fontes da proclamação da igreja além da palavra de Deus, que é o próprio Jesus Cristo. Não é eliminado que Deus é capaz de se comunicar em muitas e variadas maneiras”. Para Jüngel, sempre que a proclamação começa com a criação, a ordem natural, o estado, o Volk ou qualquer outra coisa que não seja o evangelho, a igreja enfrentará problemas. O que é necessário, insiste Jüngel, é que a teologia e a confissão percorram uma trajetória que “conduza em outra direção”, isto é, da proclamação do evangelho pela igreja para uma compreensão da criação, da ordem natural e dos fenômenos terrenos. Em tal leitura, expressões clássicas da teologia natural manifestam o mesmo problema teológico básico apresentado pelo surgimento do nazismo nos anos 1930: na tentativa da igreja de se inspirar a partir de verdades religiosas comumente disponíveis, a proclamação se desvincula das boas novas da palavra de Deus. O fim amargo e inevitável desse caminho é a idolatria que São Paulo tão vividamente descreve em Romanos 1. O único recurso é a igreja escolher um caminho diferente, cuja origem é o evangelho de Jesus Cristo. 

Tudo isso lança luz sobre o apelo de Jüngel por “uma teologia mais natural que a assim chamada teologia natural”. Sua preocupação, mais uma vez, é o esforço da “assim chamada teologia natural” para alcançar um conhecimento de Deus por meio das coisas disponíveis no mundo. Em contraste, uma teologia natural genuína “conhece Jesus Cristo como aquele que reconciliou tanto seres humanos quanto o mundo”, e a partir desse conhecimento – ou seja, baseado no evangelho da reconciliação – é capaz de “voltar a pensar” sobre a obra criativa de Deus no mundo. “Aqui novos caminhos se abrem”, escreve Jüngel. E, em desacordo com a teologia natural clássica, “esses novos caminhos conduzem em outra direção, movendo-se a partir dessa palavra una de Deus em direção ao mundo; caminhos para a natureza e para a história – caminhos de vida e conhecimento que conduzem cada vez mais profundamente para esse mundo como criação de Deus.

Lendo o Primeiro Artigo através das lentes do Segundo

Esse padrão – da palavra do evangelho para as “muitas e variadas maneiras” que Deus pode falar no mundo – prevalece ao longo de todos os escritos de Jüngel e ajuda a explicar seu evidente desinteresse na doutrina da criação, na exposição positiva da relação de Deus com o domínio da natureza e na construção de pontes entre a teologia e as ciências naturais. Para Jüngel, a principal e perene tarefa da teologia é lembrar à igreja que a fonte e essência da genuína proclamação cristã é a mensagem da morte e ressurreição de Jesus Cristo. A teologia pode dedicar-se à exposição da doutrina da criação, mas apenas subsequentemente e com base em sua confissão cristológica. Em outras palavras: Para Jüngel, a teologia deve ler o primeiro artigo do Credo (“Creio em Deus Pai, Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra”) através das lentes do segundo (“E em Jesus Cristo…”). Reverter essa ordem é comprometer o caráter evangélico da teologia e, por sua vez, desestabilizar os dois artigos do credo. Desvinculada da cristologia, a teologia do primeiro artigo, incluindo a doutrina criação, assume uma vida própria e se torna um exercício especulativo; a cristologia, permanecendo periférica em relação à exposição do primeiro artigo e da teologia natural erigida para sustentá-la, degenera-se em apologética ou filosofia cristã. Especulação, apologética e filosofia: Jüngel insiste que tais empreendimentos não são teologia. Ao começar no lugar errado e seguir o caminho do pensamento na direção errada, a teologia deixa escapar sua responsabilidade evangélica e transforma-se em algo completamente diferente.

Embora muito mais possa ser dito sobre a abordagem de Jüngel à localização e ordem apropriada da doutrina da criação vis-à-vis a cristologia, a exposição acima captura o amplo contorno da sua visão. O programa de Jüngel reflete a tendência, bastante comum na dogmática moderna, de priorizar o segundo artigo em relação ao primeiro. Para teólogos comprometidos com tal agenda para o ordenamento de reivindicações teológicas, Jüngel se mostrará um forte aliado, que persistentemente e com a coragem de um profeta confiante lembra a igreja que a teologia deve começar e terminar com a confissão de Jesus Cristo, nunca de outra forma. Por outro lado, aqueles convencidos de que, em sua ordem de exposição tópica, o trabalho teológico pode e deve começar com o primeiro artigo e então prosseguir para o segundo, acharão o protesto de Jüngel deficiente. Infelizmente, Jüngel nunca publicou um relato construtivo da doutrina da criação a partir de sua visão sobre a estrutura da teologia. No fim, então, embora recebamos dele um apelo urgente para permitir que a confissão cristológica no coração da fé molde nossa teologização sobre a criação, o mundo natural, a relação entre as reivindicações da verdade cristã e as descobertas da ciência, e assim por diante, ele nunca nos mostra como sua “teologia mais natural do que a assim chamada teologia natural” pode se desdobrar em termos de uma exposição concreta do Criador, da criação e da criatura.

Este texto foi publicado originalmente no periódico digital Sapientia do Henry Center e faz parte de seu projeto sobre a doutrina da criação.

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