Este artigo é parte da Série “A Ciência e a Doutrina da Criação na Teologia Moderna”. Leia o primeiro artigo aqui.

por John Bolt

Juntamente com Abraham Kuyper (1837-1920), Herman Bavinck forneceu o fundamento intelectual para o avivamento da teologia e erudição reformada holandesa dos séculos 19 e 20 comumente denominado neocalvinismo.

Ambos eram intelectuais talentosos e produtivos, mas Kuyper era o líder mais público de um movimento de renovação na igreja e na sociedade, enquanto Bavinck era mais o verdadeiro acadêmico. Bavinck é mais conhecido por sua Dogmática Reformada de quatro volumes, uma recuperação magnífica da grande tradição católica do pensamento cristão em engajamento intencional com o pensamento moderno. Neste ensaio, no entanto, irei me concentrar na compreensão de Bavinck da ciência em geral e, especificamente, no modo como ele lidou com um dos grandes desafios de sua época: a evolução darwiniana. 


A compreensão de Bavinck da ciência em geral 

Bavinck cresceu no contexto conservador e pietista da Igreja Reformada Cristã (Christelijke Gereformeerede Kerk), a qual havia se separado da Igreja Reformada Holandesa (Nederlands Hervormde Kerk) em 1834. Essa igreja possuía sua própria Escola Teológica em Kampen, mas Bavinck optou por uma educação teológica na Universidade Estadual de Leiden, a mais prestigiada (e modernista) faculdade teológica da Holanda. Em suas próprias palavras, ele queria “tornar-se familiarizado com a teologia moderna em primeira mão” e receber “uma formação mais científica do que a Escola Teológica é atualmente capaz de oferecer” [1]. Em Leiden, Bavinck enfrentou as tensões causadas pelos desafios que a teologia modernista direcionava a ortodoxia cristã e reformada. Seria ele capaz de manter seu compromisso diante da nova compreensão da ciência moderna sobre mundo? Poderia sua fé sobreviver a seu próprio desejo apaixonado por integridade científica? Ao completar seu doutorado em teologia em 1880, Bavinck expressou o que Leiden havia feito por ele e a ele: “Leiden beneficiou-me de muitas formas: espero sempre reconhecer isso agradecidamente. Mas ela também me empobreceu grandemente, roubou-me não apenas muito lastro (pelo que estou feliz), mas também muito daquilo que eu recentemente, em especial quando prego, reconheço como vital para minha própria vida espiritual” [2].

Esta breve nota biográfica é essencial para entender o que faz de Bavinck um homem da ciência, a saber, sua profunda paixão em evitar qualquer dualismo entre fé e aprendizado, entre coração e mente. Decidido a não sacrificar seu intelecto de uma maneira fideísta, ele se dedicou a articular uma cosmovisão cristã que fosse fiel às Escrituras e cientificamente honesta, o que ele realizou através de uma rica compreensão da revelação. 

Bavinck acreditava que é um erro simplesmente identificar a revelação com a Escritura [3]. Com uma forte afirmação da revelação geral ou criacional, Bavinck lamenta a estratégia de alguns teólogos que se afastam do mundo da ciência e encontram abrigo ao restringir a revelação à “Pessoa de Cristo ou a alma interior do homem” [4]. Portanto, ele clama por uma “filosofia da revelação” que “busca correlacionar a sabedoria que se encontra na revelação [bíblica] com aquela que é apresentada pelo mundo em geral” [5]. A revelação não está restrita a Cristo, nem mesmo à Escritura, mas “se estende até os confins da criação”. Na verdade, Bavinck afirma, “O próprio mundo está sustentado sobre a revelação: ela é a pressuposição, a fundação, o segredo de tudo aquilo que existe, e em todas as suas formas” [6].

Não compreenderemos essa afirmação se pensarmos na revelação apenas como a revelação especial que identificamos com a Bíblia. Precisamos pensar sobre a revelação de maneira mais abrangente como a comunicação de Deus, uma comunicação dupla: uma interna à divindade e a outra às criaturas [7]. A primeira é chamada geração, a segunda, criação. “Pela geração, desde toda a eternidade, a plena imagem de Deus é comunicada ao Filho; pela criação, apenas uma fraca e pálida imagem de Deus é comunicada à criatura”. Bavinck então conecta geração e criação: “Sem a geração, a criação não seria possível. Se, em um sentido absoluto, Deus não se comunicasse ao Filho, ele seria ainda menos capaz, em um sentido relativo, de se comunicar às suas criaturas”. A conclusão impressionante de Bavinck: “Se Deus não fosse trino, a criação não seria possível” [8].

Isso significa que a criação deve ser entendida cristologicamente: o Filho “é o Logos por meio de quem o Pai cria todas as coisas” [9]. Bavinck adora reafirmar isso na seguinte fórmula: “O Logos que se fez carne é o mesmo por meio do qual todas as coisas foram criadas” [10]. A criação é uma revelação de Deus: “Todo o mundo, portanto, é a realização de uma ideia de Deus: um livro que contém letras, grandes e pequenas, a partir das quais sua sabedoria pode ser conhecida” [11]. Como tal, é a base de todo o nosso conhecimento, incluindo o conhecimento científico. Usando a linguagem da Confissão Belga (art. 2) que afirma que a criação “é como um livro formoso, em que todas as criaturas, grandes e pequenas, servem de letras que nos fazem contemplar ‘os atributos invisíveis de Deus’”, Bavinck acrescenta: “Não é um livro de páginas em branco no qual, como os idealistas diriam, nós, seres humanos, temos de escrever as palavras, mas um ‘livro de leitura’, no qual Deus faz conhecido a nós aquilo que ele registrou para nós. Consequentemente, o mundo criado é o fundamento externo do conhecimento (principium cognoscendi externum) de toda ciência” [12]. Entretanto, o conhecimento científico só é possível quando temos olhos para enxergar:

“Tem de haver uma correspondência exata ou uma familiaridade entre o objeto e o sujeito. O Logos que brilha no mundo deve também deixar sua luz brilhar em nossa consciência. Essa é a luz da razão, o intelecto, que, originando-se no Logos, descobre e reconhece o Logos nas coisas. Esse é o fundamento interno do conhecimento (principium cognoscendi internum)” [13].

De acordo com Bavinck, isso produz uma teoria realista do conhecimento que concede prioridade à experiência sensorial e um senso de confiança em relação aquilo que experimentamos: “O ponto de partida da teoria do conhecimento deve ser a experiência ordinária, a certeza universal e natural dos seres humanos a respeito da objetividade de seu conhecimento” [14]. Crentes, portanto, não devem começar com uma suspeita em relação à ciência. “A certeza natural é o fundamento indispensável da ciência. O conhecimento científico não é uma destruição, mas uma purificação, expansão e completamento do conhecimento ordinário” [15].

Em resumo, Bavinck desenvolve uma cosmovisão trinitária que torna possível entender a relação entre fé e ciência de uma forma não dualista. [16]


Bavinck sobre Darwin e Evolução

A aplicação de Bavinck de seus princípios fundamentais é evidente em sua resposta aos desafios da evolução darwiniana [17]. O darwinismo ataca o teísmo cristão especialmente em uma das três questões de cosmovisão que todos os pensadores precisam abordar: a questão do ser e tornar-se [18]. Concordo com a avaliação de Willem de Wit’s de que a antítese entre a cosmovisão moderna (com a evolução como seu conceito central) e a cosmovisão cristã (com a revelação como seu conceito central) “não é apenas um tema, mas provavelmente a questão mais importante para Bavinck” [19]. Bavinck reclama que o termo “evolução” se tornou para muitas pessoas modernas uma “fórmula mágica” e cita o professor alemão Ludwing Reinhardt (1864):

“A ideia de evolução foi semelhante aos gravetos de uma tocha que repentinamente lança uma luz brilhante sobre os misteriosos processos da natureza e sobre os recessos obscuros da criação, fornecendo-nos, desse modo, a simples, ou melhor, a única explicação possível para eles; a evolução é a fórmula mágica por meio da qual aprendemos o segredo do enigma aparentemente insolúvel da origem e desenvolvimento da infinita variedade de criaturas terrestres”. [20]

Consequentemente, todas as questões sobre a vida e a natureza da realidade recebem a mesma resposta: “a evolução é a chave para a origem e existência de todas as coisas”.  [21]

A resposta de Bavinck a isso é consistente. Quando ele discute a evolução, ele começa observando que o termo em si mesmo não é censurável. Tampouco uma noção exclusivamente moderna; a ideia de desenvolvimento “já era familiar à filosofia grega”. Em particular, Aristóteles “a alçou ao status de princípio condutor de todo seu sistema filosófico ao realizar a distinção entre potentia e actus” [22]. Bavinck observa que a teologia e filosofia cristã nunca contestaram a ideia de desenvolvimento. “Pelo contrário, ela foi ampliada e enriquecida devido ao fato de estar associada ao princípio do teísmo”. O problema surgiu principalmente no século 19, quando pensadores como Lessing, Herder, Goethe, Schelling e Hegel “separaram por inteiro a ideia de desenvolvimento da base teísta sobre a qual ela estava fundamentada no cristianismo e, ao fazerem isto, regressaram ao antigo naturalismo pré-cristão”. [23]

Bavinck não recorre a argumentos bíblicos para refutar as afirmações feitas pelos evolucionistas, mas usa argumentos filosóficos para refutar afirmações metafísicas feitas em nome da evolução. Aqui é onde Aristóteles provou ser útil: Aristóteles não começou com uma ideia sobre a natureza, mas “extraiu sua teoria da transformação [isto é, do devir] dos fatos da vida orgânica, enxergando nela uma autoatualização do ser essencial nos fenômenos, e da forma na matéria”. Na visão de Bavinck, a noção orgânica e teleológica de desenvolvimento de Aristóteles é plenamente compatível com a cosmovisão teísta bíblica, porque está de acordo com uma compreensão bíblica da criação. Em tal cosmovisão “γένεσις [gênese] existe pelo bem da οủσία [substância]; o vir-a-ser realiza-se porque há o ser.” [24]

Bavinck, portanto, responde ao desafio do darwinismo distinguindo os dados empíricos do desenvolvimento das afirmações metafísicas baseadas neles e fornece uma cosmovisão alternativa que ele acredita fazer mais justiça tanto aos dados empíricos quanto à doutrina bíblica da criação.


Notas

  1.  R. H. Bremmer, Herman Bavinck en zijn Tijdgenoten (Kampen: Kok, 1966), 20; cf. V. Hepp, Herman Bavinck (Kampen: Kok, 1921), 30.
  2.  Hepp, Herman Bavinck, 84.
  3.  Herman Bavinck, Filosofia da Revelação (Brasília: Monergismo, 2019), 73.
  4.  Ibid., 74.
  5.  Ibid., 77.
  6.  Ibid., 78.
  7.  Herman Bavinck, Dogmática Reformada, 4 vols. ed. John Bolt, trad. Vagner Barbosa (São Paulo: Cultura Cristã, 2012), 2:429.
  8.  Ibid.
  9.  Ibid., 2:434.
  10. Herman Bavinck, Filosofia da Revelação (Brasília: Monergismo, 2019), 78.
  11.  Bavinck, Dogmática Reformada, 2:434.
  12.  Ibid., 1:232.
  13.  Ibid., 1:233.
  14.  Ibid., 1:222.
  15.  Ibid., 1:223.
  16. Essa também é a avaliação de George Harinck: “O neocalvinismo desenvolveu uma visão teísta não dualista da história, revelação (Wissenschaft) e fé” o que levou “a uma forte tradição intelectual ortodoxa”. George Harinck, “Twin Sisters with a Changing Character: How Neo-Calvinists Dealt with the Modern Discrepancy between Bible and Natural Sciences,” in Jitse M. van der Meer and Scott Mandelbrote, eds, Nature and Scripture in the Abrahamic Religions: 1700–Present, 2 vols. (Leiden & Boston: Brill, 2008), 2:319.
  17.  Só posso prover uma sinopse da posição de Bavinck e gostaria de reconhecer aqui minha dívida com Isaias D’Oleo Ochoa, um estudante de doutorado do Calvin Theological Seminary, e com o artigo que ele escreveu para meu seminário sobre teologia reformada holandesa do século 20, no outono de 2017. A tese de seu artigo é que a discussão de Bavinck sobre a evolução reflete seu uso modificado da estrutura de pensamento aristotélica/tomista para entender a evolução como desenvolvimento. Além de seu tratamento do tópico em Dogmática Reformada 2:407-529, Bavinck também escreveu dois importantes ensaios sobre o assunto: “Creation or Development”, trans. Hendrik De Vries, The Methodist Review (1901): 849–74; “Evolution”, em John Bolt, ed., Harry Boonstra and Gerrit Sheeres, trans., Essays on Religion, Science, and Society (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2008), 105–18. Importantes literaturas secundárias incluem: Abraham C. Flipse, “The Origins of Creationism in the Netherlands: The Evolution Debate among Twentieth-Century Dutch Neo-Calvinists,” Church History 81 (2012): 104–47; George Harinck, “Twin Sisters with a Changing Character: How Neo-Calvinists Dealt with the Modern Discrepancy between Bible and Natural Sciences,” in Jitse M. van der Meer and Scott Mandelbrote, eds, Nature and Scripture in the Abrahamic Religions: 1700–Present, 2 vols. (Leiden & Boston: Brill, 2008), 2:317–70; Rob Visser, “Dutch Calvinists and Darwinism, 1900–1960,” Nature and Scripture on Abrahamic Religions, 2:293-316.
  18. Veja Herman Bavinck, Christelijke Wereldbeschouwing (Kampen: J. H. Bos, 1904), 28–60 [Publicado em inglês como Christian Worldview (Wheaton: Crossway, 2019), ed. e trad. por Nathaniel Gray Sutanto, James Eglinton e Cory C. Brock]. De acordo com Bavinck, toda cosmovisão consiste de três áreas principais que foram denominadas pelos gregos como “dialética, física e ética” e posteriormente divididas como “lógica (noético), filosofia natural e filosofia espiritual”, mas vierem a consistir finalmente em três questões: “qual a relação entre pensamento e ser, entre ser e tornar-se e entre agir e tornar-se“ (Ibid., 11).
  19.  Willem J. de Wit, On the Way to the Living God: A Cathartic Reading of Herman Bavinck and An Invitation to Overcome the Plausibility Crisis of Christianity (Amsterdam: VU University Press, 2011), 55–56. Para evidência dessa posição, veja o índice de assuntos da Dogmática Reformada de Bavinck, s.v. “evolução,” 4:881. 
  20. Reinhardt, Der Mensch zur Eiszeit in Europa und seine Kulturentwicklung bis zum Ende der Steinzeit (München: Ernst Reinhardt, 1906), 2.
  21. Bavinck, Filosofia da Revelação, 93.
  22.  Ibid., 60; cf. idem., “Evolução”.
  23.  Ibid., 61.
  24.  Ibid., 61.

Este texto foi publicado originalmente no período digital Sapientia do Henry Center e faz parte de seu projeto sobre a doutrina da criação.


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