Este artigo é parte da Série “A Ciência e a Doutrina da Criação na Teologia Moderna”. Leia o primeiro artigo aqui.

 

Pense em seu cientista ou teólogo favorito. Agora imagine: que hino você gostaria que fosse cantado no funeral dele, porque você sabia que era seu hino favorito?

No funeral do erudito bíblico suíço Adolf Schlatter (nascido em 1852) em 23 de maio de 1938, a grande multidão reunida no cemitério municipal de Tübingen cantou Schönster Herr Jesu [Maravilhoso Senhor Jesus]. Este hino (o favorito de Schlatter) celebra Jesus como “Senhor de toda a natureza” e refere-se à beleza da natureza – os prados, os bosques, o sol, “todas as estrelas cintilantes” – como trampolim para afirmar a glória transcendente de Jesus.

Falando no enterro de Schlatter, o bispo luterano Theophil Wurm observou que Schlatter havia sustentado a verdade das Escrituras em todos os seus estudos. Mas, ao fazê-lo, ele evitou um biblicismo que se isola das preocupações da igreja e da ciência. Schlatter preservou a conexão entre o estudo histórico e teológico, por um lado, e as ciências naturais, por outro, afirmou Wurm. Em uma época em que Adolf Hitler se tornava cada vez mais ameaçador como um Führer [líder] para a destruição, outro orador no enterro observou: “Para mim pessoalmente e para muitos de meus colegas de trabalho, Schlatter foi um Führer que nos conduziu a Cristo”.

O que podemos aprender com essa figura com uma reputação por sua visão tão elevada, tanto dos empreendimentos teológicos quanto científicos?

A Vida de Schlatter: Seu Foco Científico

A vida de Schlatter foi marcada positivamente por sua educação. Crescendo em St. Gallen, Suíça, ele herdou de seu pai farmacêutico um profundo amor pela flora e fauna nativa dos Alpes que o rodeavam. Anos mais tarde, para variar suas lições bíblicas habituais na YMCA de Tübingen, que ele liderou de 1912 a 1919, ele deu palestras sobre as maravilhas do mundo das plantas.

Admirador das línguas, Schlatter decidiu, ainda adolescente, seguir carreira em linguística, um campo científico então em sua infância. Ele escolheu a linguística (ou filologia) em vez da teologia porque percebeu o quão destrutivo o estudo teológico nas faculdades teológicas de língua alemã – já de tendência liberal – da década de 1860 poderia ser para a fé cristã. Mas uma provocação de sua irmã Lydia o interrompeu. Percebendo que, para ele, fugir do estudo crítico da teologia significava o abandono de uma fé séria, Schlatter optou por buscar os estudos teológicos. A decisão foi tão importante que ele a comparou a sua experiência de conversão. No final de sua vida, ele foi premiado com um doutorado honorário por seu trabalho “filológico-histórico” pela Universidade de Berlim, uma confirmação da precisão e qualidade de nível mundial de seus poderes de observação e produção acadêmica.

Um esboço da peregrinação acadêmica de Schlatter, que resultou em mais de 440 trabalhos publicados no decorrer de mais de 100 semestres consecutivos de docência universitária, pode ser apresentado da seguinte maneira:

 

1875 – Formatura do seminário 

1875-1880 – Pastor em Kilchberg, Neumünster, e Keßwil, Suiça

1881-1888 – Instrutor em Novo Testamento, Bern, Suiça

1888-1893 – Professor de Novo Testamento, Greifswald, Alemanha

1893-1898 – Professor de Teologia Sistemática, Berlim

1898-1922 – Professor de Novo Testamento, Tübingen

1929-1930 – Última classe ministrada

1929-1937 – Conclusão de nove comentários exegéticos do Novo Testamento (mais de 4.300 páginas)

 

Schlatter publicou em diversas áreas aparentemente distantes como exegese do Novo Testamento, ética, história da filosofia, história da igreja, estudos rabínicos, metafísica, Judaísmo do Segundo Templo, teologia do Novo Testamento, teologia sistemática e muito mais. Uma característica comum de todos os seus escritos é um compromisso com a observação atenta, análise crítica e reconstrução racional à luz do entendimento vigente – em uma palavra, ele possuía uma perspectiva científica.

 

Informando Perspectivas 

Schlatter desenvolveu uma visão positiva e construtiva do conhecimento válido (embora não exaustivo; veja abaixo) do mundo criado. Para os propósitos desse breve artigo, abordaremos apenas quatro deles:

  1. A convicção de que nosso conhecimento da natureza deve ser cuidadosamente subordinado ao “conhecimento de Deus”.

A palavra de Deus para seu povo torna isso possível. Schlatter fundamenta isso nos capítulos de abertura de Gênesis. Na época da composição do Pentateuco, Israel compreendia sua existência como seus profetas a expressavam. Eles possuíam uma perspectiva histórico-salvífica – o presente de Israel, seu futuro e a origem primordial de toda a ordem criada se desdobraram sob a supervisão, bondade e propósito do único Deus verdadeiro. A conexão de Israel com Deus, entendida a partir de sua palavra profética e sacerdotal para eles (Gênesis, em nossas Bíblias), preservou-os de dois erros.

O primeiro erro seria supor que a totalidade da realidade poderia ser identificada com a natureza, a criação e o mundo físico. Isso seria naturalismo ou materialismo. Mas Israel recebeu as Escrituras, que lhes mostravam um único Deus transcendente como o Criador. Isso ensina o povo de Deus como a criação deve ser considerada e usada: “não como se o mundo fosse Deus, nem como se o mundo fosse algo impuro, em oposição a Deus, mas como a obra de suas mãos, sobre a qual a generosidade de Deus nos concede domínio”.

O segundo erro seria supor que, uma vez que o mundo contém tanto sofrimento e adversidade, deve haver alguma falha ou fraqueza em Deus ou nos deuses. Mas Gênesis 3 descreve como o pecado e a morte entraram no mundo, e que isso não foi uma obra direta de Deus, mas do homem. Enquanto os vizinhos de Israel veneravam e temiam deuses de intenções possivelmente malignas e eram ignorantes de sua própria pecaminosidade e o que fazer a respeito disso, Israel aprendeu a não culpar ou impugnar seu Deus, mas, ao invés disso, confiar nele e adorá-lo a todo momento. Eles haviam recebido orientação que lhes permitia confessar seus pecados e reconhecê-los diante de Deus, resultando em perdão e comunhão contínua com o Deus que havia feito aliança com seus antepassados. 

O ponto aqui é que, para Schlatter, a criação é um fenômeno que atinge seus significados mais profundos quando fundamentada na suposição de que o relato de Gênesis acerca das origens é válido, mesmo que “nossa observação da natureza tenha se expandido e aprofundado, resultando e um distanciamento considerável de nossa visão da natureza da visão encontrada nesses [Gênesis] textos”. Apesar do progresso em nossa compreensão da ordem criada, “conhecemos Deus como o criador da natureza”, o que nos afasta tanto da indiferença quando da consideração antagônica pela natureza. Há, portanto, um vínculo positivo entre o conhecimento do mundo natural e o conhecimento de Deus, voltando ao ponto de partida de Gênesis:

“Comparada a outras cosmogonias, a apresentação bíblica da criação constitui um passo incomensurável em direção a uma investigação da natureza que pode ser considerada válida e conforme a realidade. A apresentação bíblica teve um significado infinitamente maior para tal investigação do que qualquer descoberta individual, por mais sensacional que seja”.

  1. A convicção de que a aquisição de conhecimento, nos estudos teológicos assim como nas ciências, é um empreendimento disciplinado e estruturado, exigindo atenção cuidadosa a um método e à execução desse determinado método. 

Em 1908, Schlatter escreveu com uma percepção quase profética: “A questão se as próximas décadas trarão frustação ou progresso para a teologia na Alemanha depende em grande medida da habilidade com que dominamos os métodos do trabalho científico”. A erudição bíblica e teológica deve exibir o rigor, competência e profundidade esperada de qualquer outro empreendimento científico. Schlatter explica:

“Não há nenhum método especial para o pensamento teológico, como se sua forma devesse ser distinguida de nossos outros trabalhos intelectuais. O objeto, não a forma, de nosso trabalho é o que o torna teologia. Nosso trabalho é teológico quando se ocupa com aqueles incidentes e processos através dos quais Deus nos dá testemunho de si mesmo, de tal forma que nossa convicção de Deus recebe seu fundamento e conteúdo. Para a apreensão e avaliação dos incidentes e processos religiosos, porém, não precisamos utilizar algum modo de pensar que seja diferente daquele que é dado a todos nós e por meio do qual chegamos ao conhecimento em todas as outras conexões”.

Os campos de estudos são altamente variados. Mas, quer estudemos química ou cristologia, é a observação meticulosa e acurada (Beobachtung) que leva ao julgamento medido e justificado (Urteil) que torna nossas descobertas úteis ou inúteis.

  1. A alta valorização da ciência ao lado do entendimento bíblico e teológico. 

A enorme biografia de Werner Neuer relaciona a vida e os escritos de Schlatter à “ciência” (Wissenschaft) em mais de três dúzias de lugares, muitas vezes em conexão com a natureza (Natur), a criação (Schöpfung), o mundo (Welt) e a realidade (Wirklichkeit). Poucos estudiosos exegéticos desde o Iluminismo escreveram tão ampla e profundamente sobre o conhecimento, a busca humana por ele e o lugar da ciência nessa busca.

Na abrangente Ética Cristã de Schlatter (Die christliche Ethik), ele trata a “ciência natural” sob o título da “Verdade” e os subtítulos “A Ordenação de nossas Ideias” e “A Imensidão da Consciência”. Outros tópicos ao lado da ciência natural são: “aprendizado histórico”, “aprendizado teológico”, “conhecimento do eu” e “temor do desconhecido”. Schlatter afirma que o cristianismo fornece um forte ímpeto para a investigação do mundo natural, “porque a natureza, altamente valorizada como obra de Deus, permanece diante de nós como o meio pelo qual Deus nos cria e nos direciona”. Como resultado, “a crescente compreensão dos assuntos naturais aumenta nossa percepção da vontade divina a que devemos obedecer”. Essa compreensão também confere humildade, pois entendemos “apenas uma pequena porção do que experimentamos”, e todo conhecimento humano nessa vida é provisório – não apenas o que está errado em nosso conhecimento, mas também o que conhecemos verdadeiramente, que permanece por ser aperfeiçoado na era porvir. 

Também é verdade que as ciências naturais resultaram em descobertas de tecnologias que melhoraram muito as condições da vida humana. Esse é um benefício para os cristãos e a igreja tanto quanto para a população em geral. Podemos viver em harmonia com a natureza quanto melhor a compreendermos, e a ciência é o principal meio de tal progresso.

  1. O senhorio de Cristo sobre todas as coisas, incluindo a natureza e o conhecimento humano dela.

Uma característica distintiva da perspectiva de Schlatter é sua profunda integração da relevância de Jesus com cada aspecto do pensamento e esforço humano. Quando se trata das ciências naturais, Schlatter nota, “Através do conhecimento de Jesus, somos efetivamente apoiados na investigação da natureza, porque esse conhecimento lança fora a mitologia. Desse modo, ele nos permite uma observação imaculada em nossas interações com a natureza e elimina teorias e especulação que interpretam os fatos de maneira equivocada”. Ele elabora: “Como aqueles que foram reconciliados com Deus, amamos todas as suas obras, incluindo a natureza. Isso significa que o cristianismo mais do que qualquer outro segmento da humanidade é chamado e capacitado para a investigação científica da natureza”.

O conhecimento de Deus através de Jesus Cristo tem outros notáveis benefícios. Um deles é que quando a “ciência histórica” disfarçada de “investigação histórica puramente objetiva” ataca os relatos dos evangelhos, a igreja possui uma experiência presente de Deus que a equipa a resistir às tentativas de obscurecer e questionar o testemunho histórico de Jesus. Outro benefício diz respeito a Jesus moldando  uma união verdadeira e completa com a natureza por meio de seus milagres. Ele possuía a capacidade de “conectar-se com o poder criador de Deus e, através desse poder, realizar milagres”. Jesus via “a natureza como a posse de seu Pai e precisamente por essa razão” sabia que “ele tinha o poder de realizar os milagres”.

Em todo empreendimento humano, “o chamado cristão emerge daquele conhecimento de Deus que recebemos por meio de Jesus e que nos insere na comunhão que ele criou”. Para Schlatter, tanto esse conhecimento quanto essa comunhão fornecem recursos e motivações para a busca do conhecimento científico.

 

Este texto foi publicado originalmente no periódico digital Sapientia do Henry Center e faz parte de seu projeto sobre a doutrina da criação.

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Veja os outros artigos da série aqui.

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