Este artigo é parte da Série “A Ciência e a Doutrina da Criação na Teologia Moderna”. Leia o primeiro artigo aqui.

a verdadeira beleza da criação

por Andrew Torrance

Kierkegaard nunca é mais lírico do que quando escreve sobre a beleza da criação. Ao longo de seus escritos, há inúmeras passagens onde o mundo natural é descrito em termos profundamente poéticos, quer ele esteja refletindo sobre as cores de uma cena de outono, de um pôr-do-sol ou de uma noite de luar.

Ao mesmo tempo, ele também acredita que a beleza da criação é muito mais profunda do que as atrações que aparecem na superfície. A beleza não é definida pelo olhar de quem a vê; não é simplesmente mensurada pelas sensibilidades estéticas do observador. Para Kierkegaard, a beleza da criação possui realidade; ela existe independente da imaginação humana. 


A existência da beleza

Então, como se pode dizer que a beleza tem existência? Tal sugestão pode parecer muito estranha para a mente científica moderna. Seguindo o Iluminismo, a “realidade” se tornou indissociavelmente conectada com fenômenos físicos. Na época de Kierkegaard, o surpreendente sucesso da ciência moderna elevou a razão empírica a um pedestal difícil de ser questionado. Isto estimulou um otimismo incrível na capacidade das ciências empíricas de dar sentido a realidade. 

Para Kierkegaard, no entanto, a realidade vai muito além daquilo que o olhar empírico pode identificar. Oculto do revestimento observável desse mundo, vive Deus, que cria o cosmo não apenas com ordem física, mas também com uma ordem moral e estética. Quando o mundo é criado a partir do nada, Deus o ordena em uma pluralidade de formas que define tanto o que o mundo é quanto o que ele deveria ser.

Por exemplo, seres humanos não são criados para funcionar apenas como organismos vivos – organismos que podem ser explicados em termos do “sistema nervoso e do sistema glandular e circulação de sangue.” [1] Eles também foram criados para serem pessoas que amam a Deus com todo seu coração, alma e mente. Isso não é apenas um modo ideal de ser humano; é o modo real de ser humano. Para usar as palavras do pseudônimo de Kierkegaard, Anti-Climacus, os propósitos criativos de Deus determinam o que significa ser um ser “vital” e “saudável” em cada aspecto da vida.[2]  Por pertencermos a Deus “não por nascimento, mas pela criação a partir do nada”, nós “pertencemos a Deus em cada pensamento, até no mais oculto, em cada sentimento, até no mais secreto, em cada movimento, até no mais íntimo.” [3]

Embora isso possa ser uma descrição adequada de como o mundo foi criado para ser, não é como ele existe atualmente. A criação caiu em desordem e nós nos esquecemos de nossa criaturidade. Confundimos nossas vidas diante de Deus com nossas vidas diante da criação. Enxergamos a criação como algo que podemos definir livremente de acordo com nossa própria imaginação selvagem e, quando o fazemos, fingimos ser algo que não somos; enganamos a nós mesmos. Nos tornamos mestres do disfarce [4] – para usar um termo da banda folk First Aid Kit.

Para Kierkegaard, para compreendermos quem realmente somos, devemos conhecer aquele que nos ordena; e devemos nos tornar ordenados pelo poder que nos estabelece. Isso acontece quando “o eu sendo ele mesmo e desejando ser ele mesmo descansa transparentemente em Deus.” [5] Para ser claro, isso não é um sentimento universal de dependência absoluta; Kierkegaard resiste firmemente ao romanticismo Schleiermacheriano tão influente em seus dias. Para ele, a presença de Deus não é imediatamente acessível a nós, antes é algo que nos é dado a conhecer uma vez tendo sidos regenerados pelo poder do Espírito Santo. Isso é necessário não apenas para conhecermos a Deus verdadeiramente, mas também para conhecermos a criação verdadeiramente. É apenas através da presença transformadora de Deus que podemos nos tornar fielmente conscientes da ordem estética do cosmos e podemos começar a perceber a verdadeira beleza que nos cerca. 


Percebendo a Beleza

Em resumo, a verdadeira beleza é a qualidade objetiva daquelas coisas que são agradáveis a sensibilidades estéticas adequadamente ordenadas. Isso significa, portanto, que a verdadeira beleza só pode ser percebida quando nossas sensibilidades estéticas estão funcionando da maneira em que elas foram criadas para funcionar. Para que isso comece a acontecer nesse mundo presente, é necessário que haja uma correção de nossas intuições estéticas. Contra o romanticismo de seus dias, Kierkegaard insiste que precisamos aprender a enxergar a beleza de uma nova maneira.

Através da renovação de nossas mentes, devemos olhar para além das nossas paixões lascivas e encantamento imediato com ornamentações superficiais e começar a perceber a beleza pelo que ela realmente é – além de nosso senso imediato de beleza. Precisamos nos tornar cientistas estéticos, por assim dizer. Ou seja, devemos conhecer a beleza pelo que ela é, de acordo com os termos do Criador. 

No mundo atual, isso pode significar várias coisas. No mínimo, significa que devemos interpretar a beleza com o auxílio óptico adequado. Precisamos dos olhos da fé; por isso, devemos orar “Veni creator spiritus” (Vem, Espírito Criador) com a esperança de que o Criador nos despertará para vermos a criação pelo que ela realmente é. Entretanto, dada a nossa cegueira atual, nossa percepção estética também deve ser auxiliada pelas palavras da Escritura. É pela Palavra e pelo Espírito de Deus que nosso método e prática estética podem se tornar sintonizados com a realidade da beleza. 

Para refletir mais sobre isso, vamos nos voltar para a teologia da beleza de Kierkegaard.


Kierkegaard sobre a Verdadeira Beleza

A primeira coisa a ser esclarecida é que Kierkegaard não nega que a beleza superficial da criação (beleza fenomenológica) pode ser uma parte da verdadeira beleza. É possível que elementos da verdadeira beleza sejam apreciados tanto pelo sentimento natural quanto pela contemplação fiel. Os dois não são necessariamente incompatíveis. Ao mesmo tempo, ele também acredita que é possível haver uma feiura real em uma cena que, à primeira vista, seja fenomenologicamente bela – assim como pode haver uma beleza real em uma cena que, à primeira vista, seja fenomenologicamente feia.

Imagine, por exemplo, uma cena em que um casal está aproveitando uma noite estrelada, deleitando-se em um magnífico iate, saboreando a mais requintada culinária e desfrutando do melhor dos vinhos. De uma perspectiva kierkegaardiana, pode haver duas maneiras de interpretar o que essa cena nos diz sobre o mundo. 

Primeiro, pode-se responder da seguinte maneira:

Bela – indescritivelmente bela – quando a noite de inverno sob a luz do luar é estranhamente como um conto de fadas, um poema, ou quando as estrelas em uma noite escura cintilam no enorme arco do céu, ou quando o eco aguarda na noite tranquila por algo que quebre o silêncio para que ele possa ter a alegria de ecoar! Bela – arrebatadoramente bela, quem pode evitar se render a ela – bela, olhar para o oceano, longe, muito longe, essa distância que contínua e cativantemente permanece distante e continuamente parece acenar para você, tão perto que o convida a deixar seu olhar seguir para a distância.” [6]

Mas, após escrever essas palavras sobre a beleza da criação, Kierkegaard pergunta: “Isso é olhar para o mundo de um ponto de vista cristão?” [7] Ele então oferece uma segunda resposta alternativa, buscando expor os modos em que podemos nos tornar profundamente confusos acerca da beleza da criação:

Olhe agora para o mundo, o mundo humano – não é um mundo belo, um mundo esplêndido. Um mundo esplêndido, onde o homem, criado à imagem de Deus, vive essencialmente para comer, beber, acumular dinheiro – em suma, se ocupa com as coisas que o fazem esquecer que foi criado à imagem de Deus.” [8]

Mais uma vez, para ser completamente claro, Kierkegaard não nega que um cristão possa interpretar uma noite enluarada, um céu estrelado ou uma vista do oceano como algo belo. O que o preocupa é quando tal cena é entendida como encapsulando a “beleza” – de uma forma que possa nos distrair de qualquer feiura subjacente ou que possa nos levar a negligenciar uma beleza mais profunda. Kierkegaard era incrivelmente sensível ao quão fácil é, para nós, ficarmos extasiados e hipnotizados por uma beleza mundana que pode nos levar ao erro.


Beleza e as Ciências Naturais

Então, o que a beleza tem a ver com as ciências naturais? Kierkegaard não aborda diretamente esta questão. Mas deixe-me seguir uma linha de pensamento kierkegaardiana para sugerir algo que ele poderia ter dito – algo que pode ser provocativo em alguns círculos.

Na medida em que as ciências naturais estão preocupadas em conhecer a ordem natural da criação, há um sentido em que o cientista natural cristão, enquanto cientista natural, deve estar atento à ordem estética da criação. Por quê? Porque, uma vez que o mundo foi criado com uma realidade estética, a verdadeira beleza é parte do que é natural. 

Por que isso pode ser provocativo? Porque no mundo moderno as ciências naturais foram reduzidas às ciências físicas, biológicas e sociais; elas se preocupam com aqueles fenômenos que podem ser estudados diretamente pela análise empírica. 

Na época de Kierkegaard, a visão científica dominante havia limitado a realidade ao único processo histórico-universal no qual “Deus não desempenha o papel de Senhor.” [9] Consequentemente, ele descreve a revolução científica na Europa como o começo de uma trajetória em direção a um “cientificismo panteísta” [10]. E ele observa que, devido a “falta de disciplina religiosa, de ‘sobriedade’,” até mesmo cientistas cristãos estavam louvando a “ciência, ciência.” [11]

Não surpreendentemente, com tal miopia naturalista, a realidade estética da criação não foi considerada tão “natural” ou “real” quando os objetos que são observáveis ao olhar empírico. 

Para ser claro, nem eu nem Kierkegaard gostaríamos de sugerir que a verdadeira beleza deveria se tornar um objeto das ciências físicas, biológicas ou sociais. Ao mesmo tempo, quero arriscar uma proposta que, no mínimo, possa encorajar cientistas cristãos a estarem abertos à ordem estética da criação. Isto é: o cientista cristão deve evitar promover uma compreensão científica do mundo que alimenta a feiura de sua desordem. Eles não devem lidar com a ordem física da criação de maneiras que sirvam à desordem (ou seja, organizando os materiais de uma forma que não é adequada à sua ordem criada) ou que possam confundir nossas sensibilidades estéticas (ou seja, servindo a satisfação de sensibilidades estéticas desordenadas). Tais manipulações são tão desalinhadas com a realidade da criação quanto resultados fabricados em experimentos.

Vou me abster de fazer aqui qualquer julgamento sobre quais esforços científicos poderiam sustentar prazeres contrários à verdadeira beleza – embora não seja necessária muita imaginação. Fico feliz em deixar tais julgamentos para os próprios cientistas cristãos, que terão uma compreensão muito melhor sobre os objetivos de suas especialidades do que eu jamais terei. Tudo o que peço é que haja pelo menos algum autoquestionamento sobre se determinada prática científica está de acordo com a verdadeira beleza – na medida em que possamos saber o que é isso. 

Deve-se reconhecer que esse provavelmente será um desafio maior para alguns cientistas do que para outros. Em algumas áreas da ciência, é provável que um comprometimento com a verdadeira beleza da criação tenha um custo. Talvez impeça um cientista de atingir um nível de riqueza e poder que poderia trazer satisfação às suas sensibilidades estéticas mais básicas. Mas, para Kierkegaard, tais preocupações não deveriam importar para o cristão, pois o cristianismo “não enfatiza de forma alguma a ideia da beleza terrena” [12]. O cristianismo é manifesto nesse mundo através do sofrimento. E por trás de qualquer sofrimento que o mundo possa considerar feio, irradia a verdadeira beleza: “há verdadeiramente uma comunidade de sofrimento com Deus, um pacto de lágrimas, que em si mesmo é muito belo” [13].


A profundidade da verdadeira beleza

O que eu disse até agora levanta uma questão com a qual terminarei: como é a verdadeira beleza? Essa não é uma questão fácil de se responder. A verdadeira beleza é muito mais profunda do que somos capazes de compreender com nossas limitadas intuições estéticas. A criação é muito mais bela do que podemos sequer começar a ver. É por isso que é tão difícil para nós apreciarmos a verdadeira beleza da criação – porque tanta beleza é percebida como feia e porque tanta feiura é percebida como bela. É por isso que somos tão dependentes de Deus para nos guiar e ordenar nossas sensibilidades estéticas. 

É por essa razão que Kierkegaard escreve: “Eu não posso realmente dizer que eu positivamente aprecio a natureza [porque] eu não entendo com clareza o que é aquilo que aprecio.”[14] Ele continua:

As obras da divindade são grandes demais para mim; sempre me perco nos detalhes. Esta é também a razão das exclamações das pessoas ao observarem a natureza: é adorável, tremenda, etc. – serem tão frívolas. Todas elas são muito antropomórficas; eles cessam com o exterior; são incapazes de expressar interioridade, profundidade. [15]

Para Kierkegaard, a verdadeira beleza da criação é algo que não pode ser capturado nem mesmo pelo cristão mais devoto. Tudo o que o cristão pode fazer é buscar a beleza voltando-se para aquele que dá beleza à criação.

À medida que o cientista estético cresce em sua apreciação pela verdadeira beleza, ele cresce em sua consciência de que há muito mais beleza para ser apreciada. À medida que aprende, ele será tomado de uma sensação cada vez mais profunda de admiração e deslumbramento. Ele reconhecerá que há sempre mais a ser descoberto na beleza da criação à medida que ele cresce em seu amor por seu Criador e à medida que sua imaginação cresce em sua consciência dos propósitos estéticos de Deus. [16]


 

Notas

  1. Kierkegaard, Kierkegaard’s Journals and Notebooks, Vol. 4, ed. by Niels Jørgen Cappelørn, Alastair Hannay, David Kangas, Bruce H. Kirmmse, George Pattison, Joel Rasmussen, Vanessa Rumble, and K. Brian Söderquist (Princeton: Princeton University Press), 60.
  2.  Kierkegaard, The Sickness Unto Death, ed. and trans. Howard V. and Edna H. Hong (Princeton: Princeton University Press), 7-8. [Edição em português: KIERKEGAARD, Søren. O desespero humano: Doença até a morte. Editora Unesp, São Paulo. 2010.]
  3.  Kierkegaard, Works of Love, ed. and trans. by Howard V. and Edna H. Hong (Princeton: Princeton University Press), 115. [Edição em português: KIERKEGAARD, Søren. Obras do amor: Algumas considerações cristãs em forma de discursos. Editora Vozes, Petrópolis. 2013.]
  4.  N. T.: “master pretenders” no texto original em inglês.
  5.  Kierkegaard, The Sickness Unto Death, ed. and trans. Howard V. and Edna H. Hong (Princeton: Princeton University Press), 82. [Edição em português: KIERKEGAARD, Søren. O desespero humano: Doença até a morte. Editora Unesp, São Paulo. 2010.]
  6.  Kierkegaard, Kierkegaard’s Journals and Notebooks, Vol. 4, ed. by Niels Jørgen Cappelørn, Alastair Hannay, David Kangas, Bruce H. Kirmmse, George Pattison, Joel Rasmussen, Vanessa Rumble, and K. Brian Söderquist (Princeton: Princeton University Press), 5033.
  7.  Kierkegaard, Jornals and Papers, vol. 4, ed. and trans. Howard V. and Edna H. Hong (Bloomington: Indiana University Press, 1967-1978), 5033.
  8.  Kierkegaard, Jornals and Papers, vol. 4, ed. and trans. Howard V. and Edna H. Hong (Bloomington: Indiana University Press, 1967-78), 5033.
  9.  Kierkegaard, Concluding Unscientific Postscript to Philosophical Fragments, ed. and trans. Howard V. and Edna H. Hong (Princeton: Princeton University Press, 1992), 156. [Edição em português: KIERKEGAARD, Søren. Pós-escrito às migalhas filosóficas, vol. I e II. Editora Vozes, Petrópolis. 2013.]
  10.  Kierkegaard, Kierkegaard’s Journals and Notebooks, Vol. 7, ed. by Niels Jørgen Cappelørn, Alastair Hannay, David Kangas, Bruce H. Kirmmse, George Pattison, Joel Rasmussen, Vanessa Rumble, and K. Brian Söderquist (Princeton: Princeton University Press), 71.
  11.  Kierkegaard, Kierkegaard’s Journals and Notebooks, Vol. 7, ed. by Niels Jørgen Cappelørn, Alastair Hannay, David Kangas, Bruce H. Kirmmse, George Pattison, Joel Rasmussen, Vanessa Rumble, and K. Brian Söderquist (Princeton: Princeton University Press), 71.
  12.  Kierkegaard, Jornals and Papers, vol. 4, ed. and trans. Howard V. and Edna H. Hong (Bloomington: Indiana University Press, 1967-78), 797.
  13.  Kierkegaard, Kierkegaard’s Journals and Notebooks, Vol. 3, ed. by Niels Jørgen Cappelørn, Alastair Hannay, David Kangas, Bruce H. Kirmmse, George Pattison, Joel Rasmussen, Vanessa Rumble, and K. Brian Söderquist (Princeton: Princeton University Press), 230.
  14.  Kierkegaard, Jornals and Papers, vol. 1, ed. and trans. Howard V. and Edna H. Hong (Bloomington: Indiana University Press, 1967-78), 117.
  15.  Kierkegaard, Jornals and Papers, vol. 1, ed. and trans. Howard V. and Edna H. Hong (Bloomington: Indiana University Press, 1967-78), 117.
  16.  Desenvolvi uma discussão mais completa acerca da teologia da criação de Kierkegaard no volume a ser lançado, The T&T Companion to the Theology of Søren Kierkegaard, ed. Aaron Edwards e David Gouwens.
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