Alasdair MacIntyre

por Marcelo Cabral

Não é novidade que a obra de Aristóteles Ética a Nicômaco serviu como o “manual” de filosofia moral por mais de um milênio. Nela, o filósofo apresenta a mais clássica formulação da “ética da virtude”, que é lida e relida ainda hoje.

Mais de 2.300 anos depois, em 1981, Alasdair MacIntyre publica Depois da Virtude (After Virtue), procurando estabelecer a filosofia moral da  “virtude” não apenas como uma dentre várias outras filosofias morais possíveis (como a deontologia e o utilitarismo), mas como a única formulação capaz de fornecer uma estrutura moral que escape o emotivismo contemporâneo, que para MacIntyre é um dos trágicos resultados da modernidade.

Para isso ele precisa fazer duas coisas: explicar o porquê, exatamente, os outros sistemas de filosofia moral fracassam em suas propostas e formulações e, então, defender uma formulação de ética da virtude que não se restrinja a um conjunto particular de valores ou concepções de mundo. Em outras palavras, MacIntyre precisa demonstrar que existe uma certa tradição ao longo da história da filosofia moral que conecta diversas formulações distintas de “listas de virtudes”.


EMOTIVISMO CONTEMPORÂNEO COMO RESULTADO DO ABANDONO DA ÉTICA DA VIRTUDE

Para MacIntyre, palavras como “bem”, “dever”, “justiça” existem apenas, hoje, em um vácuo de significado, já que, toda declaração moral contemporânea está presa ao que ele chama de emotivismo:

“é a doutrina de que todos os julgamentos avaliativos e, mais especificamente, todos os julgamentos morais não são nada mais do que expressões de preferência, de ponto de vista ou de sentimento” (MACINTYRE, 11-12).

Isso faz com que qualquer debate, sobre qualquer assunto moral e político (aborto, escola pública, direitos individuais, etc), esteja fadado a “acabar no grito”. Toda e qualquer base racional foi “roubada” do discurso.

Entretanto, o emotivismo é self-defeating, visto que ele faz uma alegação de verdade afirmando que todas as supostas alegações de verdade possuem o status de não-verdade.

MacIntyre então faz uma viagem no tempo, mostrando como as diversas filosofias morais iluministas falharam ao tentar encontrar um princípio, ou fundamentação para a ação moral. E o porquê disso? Porque todas elas abandonaram o conceito de telos.

Telos, ou finalidade, implica na pergunta: para que serve a vida humana? Qual é o propósito, ou finalidade, da vida humana? Essa pergunta já havia sido colocada por Aristóteles, mas abandonada no tempo moderno.

Dentro da perspectiva de telos, os comandos ou instruções morais são promulgados dentro de uma certa estrutura: eles devem mover a pessoa do seu lugar presente em direção ao seu alvo, telos. Assim, tais comandos não seriam simplesmente “regras” que, por sua vez, são baseadas em um princípio abstrato. As diferentes teorias modernas competem entre si debatendo o “princípio”; mas, argumenta MacIntyre, se não há telos, essa conversa será insolúvel. E se transformará em gritaria.

Para MacIntyre, então, uma verdadeira filosofia moral não pode escapar da pergunta: para que é a vida humana? Nietzsche, por exemplo, percebeu isso perfeitamente: com um “deus morto”, i.e., com toda cadeia de valores e propósitos (telos) que cercavam a vida humana desmoronando, todas as racionalizações sempre serão adições post-hoc das preferências subjetivas de cada filósofo. E o que sobra desse mundo? “O mundo emotivista não é nem estável nem autossustentável. Ao contrário, é um campo de batalha de vontades em competição, esperando pela emergência de um conquistador”.

Estamos diante de um dilema. E precisamos escolher entre Nietzsche e Aristóteles.


POR UMA TRADIÇÃO DA ÉTICA DA VIRTUDE, ou “ARISTÓTELES REDIMIDO”

Não se engane, MacIntyre não é apenas um “resumo” ou “comentário de Aristóteles”. MacIntyre deixa claro que o próprio filósofo grego herdou noções embebidas no rio cultural de seu tempo, e as organizou de uma certa forma. E o que ele herdou?

MacIntyre passa então a descrever a história da ética da virtude. Isso é essencial para o seu projeto, que quer demonstrar que embora em cada época tenham sido elaboradas diferentes “listas” do que conta, e do que não conta, como virtude, essas diferentes épocas e formulações estão unidas em uma certa tradição, que se desdobra e atualiza ao longo do tempo.

Rápido resumo: ele começa com as “sociedades heroicas” gregas, onde a “contação de histórias” dos grandes heróis eram a maneira preferida de educação moral: histórias que demonstravam situações-limite onde os heróis precisavam realizar escolhas cruciais e, assim podem emular um tipo de vida que valeria a pena ser imitada. Fundamental era a compreensão de que cada pessoa ocupava um certo “lugar social”. Em outras palavras, a resposta à pergunta “para que serve a minha vida” era respondida pelo espaço social ocupado, e pela performance em desempenhar tal papel. Virtudes, nessa etapa, seriam as qualidades ou excelências requeridas para realizar bem o papel social, fundamental para que o tecido coletivo fosse preservado e propagado.

Depois chegamos na sociedade ateniense, onde a emergência das pólis provoca uma extensão no conceito de virtude. Agora, virtude não é mais uma qualidade atribuída a cada função social específica, mas são aquelas qualidades gerais aplicadas à vida humana que davam condições para vida na pólis florescer. É isso que Platão chama de “felicidade”, o telos da vida humana: o florescimento da vida na pólis ideal. As 4 virtudes cardeais (coragem, temperança, prudência e justiça) são não só o caminho, mas a própria descrição do que é essa felicidade. Elas seriam encontradas e desenvolvidas não olhando para pólis terrena, mas através da contemplação da ordem moral da pólis ideal.

Aí chegamos em Aristóteles, e em sua formulação de ética da virtude. Fundamental para ele é que a virtude, conectada a natureza humana, significa não apenas responder a ordem moral externa, mas agir de acordo com a natureza interna humana. A eudaimonia (felicidade), declara Aristóteles, é o telos humano. Entretanto:”O exercício das virtudes não é, nesse sentido, um meio para se chegar ao bem/telos humano. Pois o que constitui e bem para o homem é a vida humana completa vivida no seu melhor, e o exercício das virtudes é uma parte central e necessária de tal vida, não apenas um exercício preparatório para chegar lá. Assim, não podemos caracterizar a felicidade para o homem sem fazer referência às virtudes” (MACINTYRE, 149)

Com esse framework em vista, MacIntyre então apresenta sua concepção de virtude através de 3 conceitos centrais: Prática, Narrativa, Tradição.

Prática

 “qualquer forma coerente e complexa de uma atividade humana corporativa socialmente estabelecida através da qual bens internos àquela forma de atividade são realizadas no curso de tentar atingir os standards de excelência que são apropriados a, e parcialmente definidores de, essa forma de atividade, de tal modo que as capacidade humanas para atingir tal excelência, e as concepções humanas de fins e bens envolvidos, são sistematicamente estendidos” (MACINTYRE, 187)

O conceito de prática é bem rico, e com muitas aplicações. Importante compreender que ele não significa simplesmente “uma ação” ou “simples atividade” que realizamos no dia a dia. Mas é caracterizado por ser um corpo complexo e sistemático, que apresenta fins, graus de excelência, requerimentos para realização, e claro, aprendizado. Nesse sentido “tirar sangue” não é uma prática, mas “enfermagem”, com todas suas técnicas, procedimentos, instituições, é uma prática. Do mesmo modo, podemos dizer que “arremessar uma bola em um aro” não é uma prática, mas o “basquete”, com seu conjunto de regras, modos de arremesso, funções, táticas, aprendizado, grandes nomes, etc., é uma prática.

Um dos “pulos-do-gato” pra entender a importância disso para MacIntyre é a noção de “bens internos”, certas disposições que só podem ser aprendidas e desenvolvidas ao se tornar participante de uma prática. Ganhar dinheiro, por exemplo é bem externo, e não bem inteiro, porque há vários caminhos, inclusive maliciosos, para se atingir tal fim. Mas desenvolver a habilidade, o prazer, a precisão, a compreensão de jogar muito bem basquete, por exemplo, é um bem interno à essa prática, porque não há nenhum outro meio de conquistá-lo a não ser se tornando um aprendiz de tal prática. Outro exemplo, poderíamos dizer, são as disciplinas espirituais. Ao mergulhar nelas como um aprendiz, o que você ganha não pode ser conquistado de, absolutamente, nenhum outro modo. Também não é possível se tornar justo (adquirir a virtude da justiça) a não ser que, em todas as práticas e meios sociais nos quais você esteja inserido, você pratique a justiça, de acordo com os padrões de excelência de cada prática em particular.

 

Narrativa

cada ação particular só tem sentido quando enquadrada por uma narrativa. Para MacIntyre, cada ação particular só pode ser entendida dentro de uma certa história, que por sua vez é enquadrada dentro de uma narrativa ainda mais ampla, que confere as intenções, objetivos, e telos da própria vida. Aqui é um ponto onde ele se distancia de Aristóteles, que procurava a integridade da pessoa humana em uma certa “biologia metafísica”. MacIntyre insiste que tal integridade é encontrada na história da qual fazemos parte.

Agora, nossa história é sempre a história da comunidade da qual fazemos parte. São os papéis, funções que assumimos na história da vida de outras pessoas, e dos sistemas sociais, que formam certa teia social fundamental da nossa própria existência.

 

Tradição

Um argumento historicamente estendido e socialmente incorporado, e um argumento precisamente em parte a respeito dos bens que constituem a tradição.” (MACINTYRE, 222)

Tradição é extensão da narrativa. Assim como cada indivíduo encontra sua unidade por fazer parte de um único caráter ao longo de sua vida, assim também a comunidade tem sua continuidade porque ela mesma é um CARÁTER, uma “personagem” em uma narrativa que é mais longa do que a duração de uma única vida humana.

Ela só pode se constituir por aqueles que colocam sua lealdade corporativa no TEXTO autoritativo da tradição. Desse modo, práticas se estabelecem dentro de uma tradição, que são realizadas em narrativas.

Fundamental, é que o telos da vida humana não é simplesmente o florescimento da pólis, mas sim uma verdadeira busca espiritual por significado e unidade, que se materializa (sempre em parte) dentro das tradições nas quais nos encontramos, da realização de certas práticas, e no desenvolvimento do caráter necessário para realizá-las.

Assim, “as virtudes, portanto, devem ser compreendidas como aquelas disposições que não apenas sustentarão as práticas e nos permitirão atingir os bens internos às práticas, mas que nos sustentarão no tipo relevante de busca pelo bem, ao nos habilitar para que superemos as dores, os perigos, as tentações e distrações que nos encontrarão, e que nos forjarão com uma maior autocompreensão e maior conhecimento do bem” (MACINTYRE, 219)


Referências:

MACINTYRE, Alasdair. After Virtue: A Study in Moral Theory. Third Edition. University of Notre Dame Press, 1981.

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