Este artigo é parte da Série “A Ciência e a Doutrina da Criação na Teologia Moderna”. Leia o primeiro artigo aqui.

 

A história da criação

por Stephen John Wright

De acordo com Robert W. Jenson, a Escritura interrompe o desejo religioso de deificar o mundo. Onde as religiões antigas olhavam para as estrelas semidivinas com santo temor, o autor de Gênesis escreve com “deliberada irreverência: deuses coisa nenhuma! Fontes de energia que Deus pendurou lá em cima!”

Jenson conclui ironicamente: “Daqui para Galileu é uma questão de detalhes”. Para ele, uma doutrina cristã da criação biblicamente orientada subverte nossas mais fantasiosas descrições do mundo.

Jenson (1930-2017) foi um dos teólogos sistemáticos mais vibrantes e criativos da América. Educado no Luther College, Luther Seminary, e na Universidade de Heidelberg, sua teologia madura foi implacavelmente ecumênica, muitas vezes se afastando das fronteiras de sua própria identidade eclesiástica luterana. Ele escreveu sua dissertação de doutorado em Heidelberg e Basel, supervisionado por seu doktorvater, Peter Brunner, e em consulta com o objeto de seu estudo: Karl Barth. 

Jenson aprendeu com Barth a luta que a teologia precisa empreender para evitar a fantasia. O teólogo não constrói escadas conceituais até o céu, antes ele atende à revelação de Deus em Cristo – uma ideia que se mostrou agradável ao seu cristianismo luterano. Os trabalhos iniciais de Jenson sobre Barth levantaram todas as questões que fundamentam uma doutrina da criação: a relação da teologia com a modernidade, a relação entre Deus e o mundo, a relação entre tempo e eternidade e etc. 

Jenson posiciona a doutrina da criação para afastar duas falsas imagens da realidade criada: mecanismo e cosmos. Deus não cria uma realidade autocontida, seja ela imaginada como uma máquina cuidadosamente ajustada que funciona de acordo com suas próprias leis internas, ou um grande cosmos permeado de um espectro admirável de seres orientados para a transcendência. Por falharem em não considerar a providência e a relação positiva de Deus com a criação, ambas as perspectivas interpretam de maneira equivocada o relato bíblico da criação. Contra a pressão para ou adotar o reducionismo moderno ou recapitular o hierarquismo ontológico antigo, Jenson propõe algo ao mesmo tempo mais bíblico e mais extravagante: Deus cria uma história.


Ciência, modernidade e teologia

Jenson aprendeu a abordar a modernidade com Barth e Jonathan Edwards. Barth e Edwards traçam um caminho através da modernidade, e não em torno dela. O leitor encontrará pouca nostalgia em relação a vida pré-moderna em Jenson. Ele deliberada e intencionalmente recorre aos grandes filósofos do establishment europeu, embora nunca simplesmente adotando seus métodos. Poucos teólogos tentariam subordinar pensadores tão grandiosos quanto Hegel e Kant a seus próprios projetos, mas Jenson parece fazer exatamente isso, aproveitando qualquer ocasião em que possa usar seus pensamentos contra seus próprios propósitos.

Esta postura em relação a modernidade demonstra a aceitação aberta de Jenson das percepções da ciência para a reflexão teológica. Ele especula livremente sobre o surgimento da vida, descreve Adão e Eva como os primeiros hominídeos a orar e repensa completamente a doutrina da ascensão à luz do fato de que o céu não pode ser algo em algum lugar “lá em cima”. A abordagem de Jenson em relação as ciências é revelada em sua avaliação das artes liberais: elas tem valor porque “nos impelem a abertura” (citando Joseph Sittler). Falando no Luther College 50 anos depois dos dramas do início de sua carreira docente, Jenson negou que a teologia deveria recuar do engajamento aberto com as artes liberais: “Cada um pode abrir o outro a novas possibilidade de seu próprio poder”.

Tal engajamento não é livre de riscos. A ciência possui sua própria integridade explanatória. O que a teologia não deve fazer, segundo Jenson, é tentar se adequar a história da realidade contada pela ciência. Jenson considera brevemente três opções para a configuração narrativa da ciência e da teologia. 

Em primeiro lugar, é tentador interpretar as duas como metanarrativas em competição, cada uma conflitando com a outra em sua descrição das mesmas realidades da vida histórica. Podemos localizar aqui as origens da crise religiosa moderna. O arco íris é um sinal do cuidado providencial de Deus ou apenas luz refratada e dispersa?

Caso essa configuração se mostrasse insatisfatória, poderíamos demarcar territórios para as disciplinas. A ciência poderia fornecer regras epistemológicas para o estudo das aves e dos mares e a teologia se ocuparia da vida privada e do destino espiritual individual. Por dois séculos, lamenta Jenson, o cristianismo cedeu terreno às ciências supondo que as duas narrativas eram incomensuráveis ​​e, portanto, só poderiam viver em paz por meio da separação. 

A terceira opção seria ver a ciência a partir da história da realidade contada pela teologia. Deixe que a ciência conte sua história como jogos de causas e realidades imanentes, uma imagem parcial do mundo que Deus supervisiona. Tal relação permitiria o surgimento de uma narrativa científica “significativa”, a qual não buscaria propor uma descrição abrangente da realidade, mas que funcionaria dentro da história de Deus. 

Jenson defende a última opção.


Surgindo na história de Deus

Hans Urs von Balthasar certa vez afirmou que o objetivo de toda a vida cristã é estar despertado para a verdade de que não somos Deus. Na perigosa tarefa da ontologia teológica, teólogos cristãos tentaram despertar a si mesmos para essa realidade. Jenson admira a ousadia especulativa dos cristãos primitivos que rejeitaram as ontologias platônicas hierárquicas, buscando levar a sério a representação da realidade da Escritura.

A ontologia da Bíblia admiti apenas dois tipos de ser: o Criador de todas as coisas e as criaturas criadas. Basicamente, podemos dizer que “o Criador é aquele que faz algo e… as criaturas são o que ele faz”. Essa relação não pode ser reduzida, Jenson argumenta, a outros pares conceituais, como infinito e finito ou imanente e transcendente. Tais pares são úteis, mas apenas porque apreendem seu significado da relação fundamental do Criador com as criaturas.

Jenson argumenta que “na Escritura, a diferença entre o Criador e suas criaturas não é estabelecida conceitualmente, mas narrativamente”. Os dois não formam um par conceitual – ou mesmo dialético – puro que pode ser descrito por meio de vários pares de adjetivos. A teologia fala sobra a relação entre Deus e a criação apenas na medida em que comenta a história da Escritura.

Jenson considera a ideia de que a Escritura descreve a criação por meio de narrativa profundamente provocativa. Falando sobre Gênesis, ele argumenta que não há nenhuma razão porque “um poema sobre ouvir a criação não possa ser uma ontologia séria”. Deus fala as criaturas a existência, e nós surgimos como as criaturas que Deus narra. Nisto, Jenson encontra um mandato para evitar toda tentativa a-histórica de explicar a criação. Deus, ele propõe, cria uma história. 


A história da criação

Poucos teólogos foram tão importantes para a doutrina da criação de Jenson quanto Jonathan Edwards. Jenson descobriu Edwards no meio de sua carreira. Essencialmente uma figura do Iluminismo, Jenson admirava o uso que Edwards fazia de Locke e Newton para novos propósitos. A descrição matemática do movimento físico de Newton tornou possível a descrição do mundo como um jogo de causas puramente imanentes. Com Newton e o Iluminismo, as antigas causas aristotélicas começaram a ser abandonadas até que restaram apenas causalidades eficientes. Um mundo imaginado como animado apenas pela causalidade eficiente imanente seria algo como uma máquina.

Jenson se viu atraído pelo método particular de Edwards de negar o mecanismo. Ao invés de rejeitar Newton, Edwards o usou para fins metafísicos. O problema, afinal de contas, não era a descrição científica do movimento, mas as implicações metafísicas que as pessoas extraiam de tal descrição. Edwards diagnosticou uma identificação irrefletida entre os “corpos” de Newton e o conceito de “substância”, entendido como o “sujeito supostamente oculto e intrinsecamente potente dos… atributos e ações externamente manifestos”. Se os corpos são substâncias neste sentido, então a metáfora do mecanismo está correta. Para Edwards, no entanto, corpos não possuem nem substância intrínseca nem potência. Só Deus, de acordo com esta estipulação, poderia ser substância. Como não existem “pequenos agentes autossuficientes além de Deus, as entidades naturais não são divinas e, portanto, a harmonia do mundo não é autônoma”. Talvez antecipando Heidegger, Edwards pergunta sobre o Ser dos seres.

Adaptando as ideias de Edwards a seu próprio sistema, Jenson aponta para o caráter a-histórico de um universo mecanicista. O caráter básico de tal descrição da criação seria a pura “existência” da criação, sem nenhuma consideração sobre intenção ou direção. Construir uma teologia da criação a partir da distinção Criador/criatura, entretanto, não nos dá a liberdade de pensar no mundo como uma simples questão factual. Em vez disso, o Deus Criador do evangelho cristão se relaciona com o mundo por meio de alianças e promessas, expressando a intenção não apenas de que as coisas existam, mas de que sejam capturadas nas viradas dramáticas da história.

Assim como a metáfora do mecanismo, a descrição antiga da criação como “cosmos” as vezes adotada pelos teólogos sugere que o ato criativo de Deus inicia, mas não guia, a direção do mundo. “O mundo criado por Deus não é uma coisa, um ‘cosmos’, mas sim uma história… O chamado de Abraão, o Êxodo, a crucificação, a ressurreição e o Juízo Final não são eventos em uma criação a-histórica; são eventos da história que é criada”. 


O Espírito da história

Uma vez tendo negado a ideia de mecanismo e cosmos dessa forma, a noção de “intervenção divina” na história também é questionada. A metáfora da intervenção é baseada na ideia de que o universo é autossuficiente e, caso contrário, simplesmente seguiria seu curso. Como Jenson observa, os relatos que empregam essas metáforas têm dificuldade de explicar os movimentos de Deus ao longo da história. De acordo com os pressupostos do materialismo, a direção na qual as várias possibilidades criadas são atualizadas é ou determinada ou aleatória. Rejeitando ambas as opções, Jenson argumenta que a continuidade da história demonstra uma liberdade e “espontaneidade”, as quais ele identifica com a trabalho do Espírito. Deus não intervém na história, como se ele fosse um mecânico ajustando um motor, pois a criação não possui qualquer direção à parte da livre agência do Espírito. Para que ninguém pense que Jenson postula aqui um “Deus das lacunas”, ele esclarece que “não estamos localizando a agência libertadora do Espírito de Cristo em regiões supostamente não alcançadas pela descrição científica; o que é atribuído ao Espírito é uma característica universal do mundo precisamente como descrita cientificamente.”

Ao longo de sua pneumatologia, Jenson parece evocar uma representação da relação entre Deus e a criação semelhante a distinção de Tomás entre causalidade primária e secundária. Jenson argumenta que faz sentido orar porque o “curso real dos eventos cientificamente explicados pode e deve ser teologicamente entendido como um história da liberdade de Deus”. Respostas divinas a oração não são “intervenções” que violam ou suspendem as leis do universo material, pois tais leis não possuem qualquer realidade ou direção à parte do ato livre do Espírito. 

Jenson distancia essa visão do panenteísmo, uma vez a distinção “dentro/fora” foi rejeitada pela compreensão de que “Deus deseja conhecer um mundo e ele deseja conhecer este mundo ao invés de algum outro; portanto, o mundo é uma realidade desejada e Deus é uma realidade que não necessita ser desejada”. Seria inadequado, portanto, qualificar a relação de Deus com a criação em termos de distância ou direção.

Teria Jenson, ao utilizar o Espírito desta maneira, inserido Deus no tempo? Aqui encontramos o rompimento mais radical de Jenson com a tradição. Jenson rejeita a definição de eternidade como atemporalidade, evitando qualquer ambiguidade nesse ato. Como indicado anteriormente, Jenson estabelece todas as distinções entre Deus e nós na distinção fundamental entre Criador e criatura. A doutrina da analogia de Tomás só funciona por causa da realidade dessa distinção singular. O próprio tempo, Jenson propõe, deve ser análogo e, por isso, podemos descrever a relação de Deus com o tempo positivamente e não por pura negação. Além disso, a analogia mantém a distinção fundamental entre Criador e criatura, evitando reivindicações melodramáticas da suscetibilidade de Deus aos acontecimentos da história. Ao lado de Agostinho, Jenson trata o tempo como uma criatura; assim como todas as criaturas, o tempo pertence ao cuidado providencial de Deus. A providência, aqui, sinaliza a presença íntima de Deus para todos os tempos – passado, presente e futuro.


A oração respondida

Poucos intérpretes de Jenson têm prestado a devida atenção a sua doutrina da criação. Muitos de seus mais ousados experimentos cristológicos são trabalhados em relação as afirmações centrais apresentadas aqui. Muito mais que poderia ser dito sobre a doutrina da criação de Jenson, mas, em vez disso, irei terminar com algumas observações relacionadas à ciência e à modernidade.

O que Jenson admira em Edwards em particular é que, ao rejeitar a visão de um universo mecanicista, Edwards não retornou a compreensão antiga clássica do universo, mas inaugurou uma nova especulação sobre o universo científico moderno. A teologia ousada de Edwards demonstrou que problemas levantados pela ciência frequentemente rearticulam problemas já internos à teologia.

Ao localizar a discordância entre ciência e teologia na metafísica, Jenson liberta ambas para suas próprias tarefas. “Cada um pode abrir o outro a novas possibilidades de seu próprio poder”. Jenson resiste à modernidade por meio da modernidade. Os teólogos têm pouca necessidade de questionar o relato descritivo da ciência sobre a criação, mas a tarefa da teologia talvez resida em interrogar a metafísica que a acompanha tais relatos científicos. Ao descartar as metáforas do mecanismo e da intervenção, Jenson evoca uma paisagem metafísica diferente por meio da qual é possível imaginar a relação da ciência com a teologia: a história. Tal ideia abre espaço para se pensar a providência.

Não temos nenhuma razão para supor que a questão da providência não se tornará mais urgente na igreja nos próximos anos, uma vez que a oração peticionária e o do dom se tornam cada vez mais centrais para as formas crescentes de cristianismo na igreja global. Poucas teologias parecem estar equipadas para explicar de modo coerente a oração respondida. A oração, Jenson sugere regularmente, deve ser entendida como uma participação na providência. Mas o que se espera, por exemplo, quando se ora pela recuperação de Suzie de sua doença? Que Deus seja o Deus da história, o narrador de nosso conto comum. Sob estas condições, não podemos mais pensar em termos de intervenção. Afinal de contas, narradores não intervêm nas histórias, eles as contam. Uma oração respondida seria apenas um momento da liberdade do Espírito nos movimentos da história de Deus, independente do que um cientista possa enxergar.


Notas

  1. Robert W. Jenson, A Religion Against Itself (Louisville: Westminster John Knox Press, 1967), 22.
  2.  Um episódio anterior lamentável deu origem a uma divisão entre o corpo docente e administração por causa de um número de questões relacionadas a Jenson, incluindo sua franqueza para com os estudantes sobre a questão da evolução. Sua resignação foi recusado pela administração, o que levou vários colegas a oferecem as suas em protesto.    
  3.  Hans Urs von Balthasar, Heart of the World, trans. Erasmo S. Leiva, (San Francisco: Ignatius Press, 1954), 32.
  4.  Robert W. Jenson, “Creator and Creature”, International Journal of Systematic Theology 4:2 (2002), 2017.
  5.  Ibid., 219.
  6.  Robert W. Jenson, Systematic Theology, 2 vols. (New York: Oxford University Press, 1997-99), 2:157.
  7.  Robert W. Jenson, America’s Theologian (New York: Oxford University Press, 1988), 25.
  8.  Ibid., 26.
  9.  Jenson, Systematic Theology, 2:14.
  10.  Ibid., 2:43. Ênfase no original.
  11.  Ibid., 2:44.
  12.  Robert W. Jenson, On Thinking the Human (Grand Rapids: Eerdmans, 2003), 52.

Este texto foi publicado originalmente no periódico digital Sapientia do Henry Center e faz parte de seu projeto sobre a doutrina da criação

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