Shannon Vallor

Autor: Luiz Adriano Borges

“Technology and the Virtues” (Tecnologia e as Virtudes) de Shannon Vallor, que possui o subtítulo “Um guia filosófico para um futuro que vale a pena desejar” foi publicado em 2016 pela Oxford University Press. Mesmo focando em filosofia da tecnologia, sua temática de virtudes “tecnomorais”, como chama a autora, é algo que deve ser profundamente refletido por todos nós.

Shannon Vallor resgata as ideias de Aristóteles, além de dialogar com Alasdair MacIntyre, entre outros filósofos da tecnologia, comparando com confucionismo e budismo, apesar de se concentrar mais no filósofo grego. Ela traça um histórico da utilização da noção de virtudes na história da filosofia, mas logo focando em sua aplicação para a tecnologia, no que ela chama de “ética da virtude tecnomoral”. Segundo a autora, vivemos num contexto de “opacidade tecnológica aguda”, onde não julgamos muito bem os riscos tecnológicos em nosso dia a dia.

A maior busca do ser humano, segundo Aristóteles, seria a eudaimonia (ora traduzido como alegria, ora como florescimento humano). Para este filósofo, a busca por atingir esse florescimento passaria pelo cultivar de várias virtudes, tais como coragem, honestidade, paciência, amizade, justiça, moderação e sabedoria prática. Em uma passagem que nos remete ao apóstolo Paulo, Aristóteles afirma em “Ética à Nicômaco”:

“Assim, a virtude se distingue segundo esta diferença de fato, dizemos que umas são intelectuais e outras morais; a sabedoria, a inteligência e a prudência são as intelectuais, enquanto a liberalidade e temperança são as morais. De fato, quando falamos a respeito do caráter, não dizemos que ele é sábio ou inteligente, mas que é moderado e prudente: mas nós elogiamos assim o sábio, segundo as suas condições, e dentre as condições, as dignas de elogios são as que chamamos virtudes.” (Aristóteles, Ética à Nicômaco. São Paulo, Martin Claret: 2015, p. 40).

Chama a atenção especialmente o conceito de phronesis ou sabedoria prática que o filósofo grego desenvolve no livro VI. Isto porque esse conceito se parece muito com a ideia de “conhecimento tácito” de Michael Polanyi. Para este autor, nós sabemos mais do que conseguimos falar e muitos dos nossos conhecimentos são adquiridos de maneira tácita, sem conseguirmos explicar muito bem. Isso é comum nas intuições dos cientistas e naqueles que dominam sua arte. Para Vallor é necessário construir uma sabedoria tecnomoral e isso se adquire justamente através do hábito, do cultivo dessa sabedoria prática; a isso ela denomina habituação moral, o que tem profunda ressonância com o que James K. A. Smith fala em sua trilogia das “Liturgias Culturais”. Somos o que amamos, logo devemos praticar os bons hábitos. Não vou adentrar aqui, mas o livro “Imaginando o Reino” se dedica mais a falar sobre tecnologia nesse sentido. Tudo isso tem implicações do conceito de sabedoria prática para se pensar em nossas ações face ao mundo tecnológico.

Por exemplo, o conceito de “atenção moral” que Vallor desenvolve é algo importante até para nosso cotidiano, quando o celular nos distrai de tudo, da família e das tarefas obrigatórias. Em suas palavras:

“O cultivo do autocontrole [na internet e nos smartphones] requer mais apoio da indústria e das normas sociais, mas também permanece ao alcance de nossas próprias práticas morais, especialmente o hábito da atenção moral. Na verdade, a atenção executiva, a capacidade de perceber o que em nosso ambiente físico ou mental estamos pensando e conscientemente modificar ou redirecionar esse pensamento, é uma parte essencial do autocontrole, envolvendo a capacidade de atrasar a gratificação, moderar nossos impulsos emocionais e restringir ações reflexivas e irrefletidas. Se os novos hábitos de mídia social desafiam nosso autocontrole, isso provavelmente tem muito a ver com nossas capacidades de atenção em ambientes tecnossociais. Como as novas mídias sociais moldam nossos hábitos de prestar atenção moral e as virtudes que esses hábitos promovem?” (Vallor. Technology and the Virtue).

Uma parte que tem grande impacto na vida tecnológica e que é profundamente influenciada pelo cristianismo (mesmo a autora não sendo cristã e não olhando para essa tradição em sua elaboração) é a da taxonomia das virtudes tecnomorais. É o ouro do livro; ao longo do capítulo 6 são trabalhados elementos tais como honestidade, autocontrole, humildade, justiça, coragem, empatia, cuidado, civilidade, flexibilidade, perspectiva, magnanimidade e sabedoria. Todas essas virtudes são fundamentais para o florescimento humano em nosso mundo dominado pelas tecnociências e comento brevemente cada uma delas.

Honestidade está relacionada a respeitar a verdade, confiança e integridade, e em uma era de pós-verdade é algo fundamental, e infelizmente pouco valorizado. O autocontrole liga-se à temperança, moderação e paciência. Humildade se refere também à modéstia, maravilhamento e respeito. Em muitas culturas esta virtude não era valorizada, mas o cristianismo teve uma influência fundamental nesse sentido. Veja o livro de Jonas Madureira, “Inteligência Humilhada”, que traz inclusive uma discussão muito interessante da ética das virtudes e do conceito de phronesis. Em nossas redes falta a humildade para sabermos que não conhecemos tudo e que somos limitados.

A virtude da justiça se conecta com responsabilidade, reciprocidade. Temos muito o que pensar no sentido de que tipo de justiça seria a mais fundamental para o florescimento humano em um ambiente tecnossocial global. Soluções extremas liberais ou socialistas não parecem solucionar problemas de exclusão, crimes virtuais, racismos, propagação de fake news etc. Também em nossas atuações nesse mundo tecnológico é necessária a virtude da coragem, de perseverar e de ter esperança, não caindo em um pessimismo distópico, mas também ser utópico otimista em extremo. Outra virtude é a da empatia, de ser compassivo com os outros, exercendo caridade e compreensão. As telas dificultam o exercício dessa virtude, mas devemos nos esforçar para ver o outro em suas especificidades e dificuldades, e não somente alguém a ser ofendido e contradito. Mas também como engenheiros e produtores de tecnologia, pensar nas dificuldades que os outros possuem para utilizar ou adquirir certo produto. Esta virtude também se relaciona com a virtude do cuidado, do amor e serviço ao outro. Quão forte o cristianismo articulou essa virtude ao longo dos séculos! E também quão pouco os cristãos exercem plenamente essa virtude, e ainda mais quando pensamos em tecnologia.

Quando usamos tecnologia, também a virtude da civilidade é pouco exercida positivamente. Essa virtude se relaciona ao respeito, à tolerância e à amizade. Como formar comunidades políticas eficientes em redes e atuar de maneira boa através do uso de tecnologia. Trabalhar cooperativamente buscando bens tecnossociais é algo que deve ser perseguido. Também, para ter um bom uso da tecnologia é necessária flexibilidade, o ser tolerante com opiniões e posicionamentos de outros, claro que sem negar verdades absolutas. Também é importante ter perspectiva, isto é, ter discernimento do todo moral. A ética da magnanimidade, que é ser nobre de espírito, nos faz atuar com equanimidade, com tratamento igual a todos, mas também ter ambição de buscar sempre a excelência naquilo que fazemos e sermos líderes morais.

Por fim, Vallor indica a virtude da sabedoria, que acaba por unificar todas as virtudes tecnomorais, na medida em que a pessoa que possui essa virtude, consegue articular todas as virtudes e as usa para cultivar hábitos que levam ao florescimento humano.


Veja também: Preocupações de JRR Tolkien sobre Tecnologia, de Alister McGrath


Na parte 3, a autora vai fazer um exercício de ética aplicada, colocando em prática o que desenvolveu ao longo do livro até aqui, e escolhe quatro exemplos para se trabalhar de maneira mais aprofundada em cada capítulo: as redes sociais, as tecnologias de vigilância, a roboética e o transumanismo.

Muito tem sido falado sobre o impacto das redes sociais em nossas vidas; os cristãos brasileiros precisam refletir muito ainda sobre isso e a ética das virtudes é algo que se encaixa perfeitamente com a nossa cosmovisão. Vallor nos alerta para os problemas de vício (que inclusive é o oposto de virtude), de maus usos das redes. Aqui precisamos não somente fazer um bom uso, virtuosamente, mas também procurar nos envolvermos na produção dessas tecnologias. Temos que ter a noção de que as tecnologias não são neutras e, portanto, devemos nos envolver para aperfeiçoar as tecnologias de forma virtuosa. Mas também devemos refletir sobre o bom uso das redes sociais no nosso cotidiano, levando em consideração as virtudes acima elencadas. Vallor, demonstrando seu posicionamento mais otimista de moldagem social da tecnologia, diz que as “tecnologias são não tábuas de pedra entregues do alto. Elas são criações humanas maleáveis ​​que podem ser remodeladas a serviço de viver bem se nossa vontade coletiva assim o exigir”.

Sobre “Tecnologias de vigilância”, Vallor fala sobre como seria cultivar uma vida examinada e um self tecnomoral em um mundo panóptico, isto é, um mundo onde as câmeras nos filmam e os gadgets acumulam dados a nosso respeito o tempo todo. O desafio é viver em um mundo onde colocamos terabytes de informações sobre nós de forma pública ao mesmo tempo em que não temos espaço para um verdadeiro autoexame.

E num momento em que vivemos a 4ª Revolução Industrial, onde a automação é um grande tema de preocupação, a roboética também se coloca como algo a ser pensado. Os robôs são ou virão a ser agentes morais? Que valores permeiam as relações entre humanos e robôs?

Por fim, Vallor trabalha o transumanismo, a busca por transcender as limitações humanas por meio da tecnologia. Nesse último ponto, senti um tecnicismo mais exacerbado, com ela dizendo que não concorda com os bioconservadores nem tanto com os transumanistas, mas acabando indo mais para o lado destes últimos. (Sem falar que ela se baseou na crítica aos bioconservadores em somente três autores, alguns deles não sendo os melhores representantes). Curioso que a autora, aqui, foge do que ela mesma chamou de “julgamento prudencial” ao contrapor com a virtude da coragem. Mas coragem não é simplesmente optar pelo transumanismo a-crítico; isso é otimismo irracional.

E também senti que a fundamentação dessa ética das virtudes fica um tanto quanto solta, sem ancoragem, sendo que as pessoas deveriam simplesmente, por sentimento de obrigação, acatar a virtude como ação. Vallor fala da necessidade de uma ética das virtudes global (cap. 2). Mas sabemos que o ser humano por livre e espontânea vontade não vai passar da noite por dia a exercer virtudes naturalmente. Por isso vejo que o cristianismo é a fundamentação dessa ética das virtudes, porque o que a autora coloca como qualidades virtuosas, os cristãos já têm introjetados a milênios, procurando exercitá-las. Claro que a prática cristã nem sempre é exemplar, mas a ortodoxia cristã prega esses elementos. Então, o que acaba ecoando da autora é um humanismo secular que procura virtudes notavelmente incrustadas no cristianismo, mas tenta imanentizá-las. Não que TODAS as virtudes sejam exclusivamente cristãs, são marcas da boa vida que estão presentes nos gregos; mas vejo que o cristianismo as depurou e as aperfeiçoou, retirando-lhes as imperfeições. Só fortaleceu a noção de que o cristianismo tem muito a informar a uma filosofia da tecnologia.

É um livro excelente e necessário para nos fazer pensar sobre temas caros ao cristianismo e uma visão de tecnologia. Por fim, cabe refletir que ética queremos e como cristãos devemos atuar fortemente, porque temos, na minha opinião, a melhor teoria e a melhor prática no que se refere à ética. A autora mesmo acaba percebendo que a resposta não está num relativismo moral:

“O florescimento ativo da pessoa virtuosa não é uma aparência subjetiva, a virtude é apenas a atividade de viver bem. Isso significa que, embora a ética da virtude possa permitir muitos tipos diferentes de vidas florescentes, é incompatível com o relativismo moral. Há certos fatos psicológicos e sociais sobre pessoas humanas que restringem o que pode significar para nós florescer, assim como um gramado sem nutrientes e ressecado pela seca não consegue florescer, quer alguém perceba ou não seu mau estado.”

Há elementos fixos na ética e, portanto, já temos um cabedal ético para lidar com qualquer nova tecnologia que venha a surgir. Só precisamos refletir com sabedoria. A visão que a autora coloca aqui, encontrando relações na ética de diversas culturas, é algo que podemos visualizar através do conceito de graça comum e que C. S. Lewis explora em seu exercício de ética “A Abolição do homem”.

A conclusão de Shannon Vallor é que precisamos de educação para atingir uma sabedoria tecnomoral. Os cristãos têm séculos de reflexão sobre a ética das virtudes. A saída não parece nem um liberalismo extremado, nem um socialismo tecnológico, mas algo mais comunitário, de profundo senso de bem comum. Segundo Ortega y Gasset, mencionado por Vallor, no século XX, chegamos a uma crise de desejo. Com a ausência de sabedoria prática, de phronesis, desejamos mal (pedimos mal, conforme Tg 4:3-13). Precisamos reformar nossos hábitos mentais e corporais, para assim atuarmos de maneira virtuosa no campo da ética e termos um futuro em que o florescimento humano seja real. Sem essa reflexão e mudança de cosmovisão, nossas tecnologias nos condenam a ter uma vida que não traz florescimento, mas sim abolição do homem e destruição da terra.

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