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Quando se fala em Teologia Natural, a primeira coisa que vem à mente de quem já é familiarizado com o termo são os esforços de tentar “provar Deus a partir da natureza”, normalmente identificados com o trabalho dos arquitetos da chamada “Revolução Científica” do séculos XVII e XVIII. Se fala então de beleza, design e ordem, que seriam atributos de Deus revelados na natureza. Se você nunca ouviu falar do termo e procurar no Google, o Wikipedia trará uma definição parecida, porém mais inclinada a ideia de “provar Deus a partir da reflexão filosófica”, sem auxílio de revelação especial da escritura, por exemplo. No entanto, o termo não é unívoco, e significou e significa coisas diferentes para pessoas diferentes em tempos diferentes. Com certeza as breves definições acima fazem parte das maneiras de entendermos o termo e o empreendimento da Teologia Natural, mas não são as únicas.


Teologia Natural em 6 abordagens

O Prof. Alister McGrath, considerado um dos responsáveis pelo ressurgimento da discussão da Teologia Natural nos últimos anos, apresenta um panorama de seis maneiras em que se pode entender o termo. Vamos analisar brevemente cada uma delas.[1]

1) A Teologia Natural é o ramo da filosofia que investiga o que a razão humana sem a ajuda da revelação pode nos dizer a respeito de Deus. É aqui entendida como uma tentativa de determinar as características de Deus sem recorrer à revelação divina (escritura ou experiência mística) ou à qualquer ideia que não seja “natural”. Neste caso, não se trata de olhar para a beleza da natureza ou evidências de design, mas sim de através da razão humana apenas, do pensamento e de nada que não seja “natural”, se chegar a Deus.

2) Teologia Natural é uma demonstração ou afirmação da existência de Deus baseada na regularidade e complexidade do mundo natural. Esta formulação específica da Teologia Natural é frequentemente referida como theologia physica, por causa de seu apelo à um discernimento a posteriori da regularidade da natureza, que serve então como evidência ou implica existência divina, ao invés de ideias a priori sobre Deus. É a maneira clássica de entender Teologia Natural de Isaac Newton, William Paley, sobre a qual falaremos mais adiante: a beleza, ordem e complexidade da natureza revelando Deus como criador.

3) A Teologia Natural é o resultado intelectual da tendência natural da mente humana para desejar ou ser inclinado em direção a Deus. Haveria um “instinto natural” no ser humano de se buscar “algo maior”, uma busca para além dos limites da razão e da ciência. Esta abordagem tradicionalmente apela ao “desejo natural de ver Deus”, desenvolvido por Tomás de Aquino, embora a recente ciência cognitiva da religião abriu outras formas de desenvolver este tema bastante interessantes.

4) A Teologia Natural é a exploração de uma analogia ou de uma ressonância intelectual entre a experiência humana da natureza de um lado e o evangelho cristão de outro. Ela se limita a estabelecer a possibilidade de coerência ou congruência entre as alegações específicas do evangelho de Cristo e um conhecimento do mundo derivado de outras disciplinas ou áreas da vida. Estas duas áreas da experiência humana são diferentes, mas elas dialogam em harmonia e ressonância. Esta abordagem é encontrada nos trabalhos de John Polkinghorne, um dos mais importantes eruditos na área dos estudos entre ciência e religião.

5) A Teologia Natural é uma tentativa de demonstrar que as descrições puramente “naturalistas” do mundo e as realizações das ciências naturais são intrinsecamente deficientes, e que é necessária uma abordagem teológica para dar uma interpretação abrangente e coerente da ordem natural. Esta abordagem, presente nos escritos de Alvin Plantiga (principalmente em seu “Where the conflict really lies[2]), vai de encontro às proposições puramente naturalistas ou materialistas de descrição da realidade, como as do movimento neo-ateísta, em que apenas o que pode ser sujeito ao método científico é considerado real. Segundo esta abordagem, uma visão teísta da natureza e da existência provê uma descrição muito mais satisfatória intelectualmente do que apenas uma descrição naturalista.

6) A Teologia Natural deve ser entendida principalmente como uma “teologia da natureza” – ou seja, como uma compreensão especificamente cristã do mundo natural, refletindo os pressupostos fundamentais da fé cristã, o que deve ser contrastado com os relatos seculares ou naturalistas da natureza. O movimento aqui é oposto ao da segunda abordagem: parte-se da fé cristã, da tradição de fé de um grupo, em direção à natureza. Em outras palavras, é como se apresenta o mundo natural a nós quando o olhamos de uma perspectiva cristã. A filosofia da ciência será a primeira a dizer que na verdade, qualquer observação do mundo natural não é uma mera observação neutra, mas está imersa em um pressuposto teórico, uma “lente” com a qual observamos. Observar é na realidade interpretar, e a Teologia Natural faz isso de uma perspectiva cristã.

Esta última abordagem é a favorita por McGrath, pois é a partir dela que uma compreensão teísta do mundo, advinda da fé em Cristo, nos faz olhar para a natureza como uma obra de arte, que contém a assinatura e revela a beleza de um Criador, e que mesmo sendo imperfeita, aponta para a perfeição e beleza absoluta daquele que está além e é maior do que ela, o Criador.

Apesar das dissonâncias quanto ao que exatamente se refere o termo Teologia Natural ou como entende-lo, vemos que em todas as abordagens uma temática permanece. A Teologia Natural se refere à maneira de relacionarmos Deus ao mundo natural. A partir disso, uma série de perguntas, reflexões e questionamentos podem ser levantados. A algumas delas nos dedicaremos agora.


A natureza aponta para Deus?

É impossível tratar da Teologia Natural sem mencionar o seminal livro de William Paley – Natural Theology (1802). Embora bastante posterior a Isaac Newton e aos pioneiros da ciência moderna, que viam no estudo da natureza (na época conhecido como filosofia natural) uma maneira de conhecer a mente do Criador, Paley desenvolve a noção de Deus como um artífice, um artesão, que planeja o mundo de uma certa maneira para um determinado propósito. Nesta obra ele desenvolve a famosa e bela ilustração do relojoeiro, talvez influenciado pelo maravilhoso mundo das “coisas” que a revolução industrial começava a trazer para os lares e dia-a-dia da Inglaterra. Assim como o relógio é produto da mente inteligente de um artífice, criado para um propósito e planejado em seus detalhes, o universo e a natureza revelam a mente do maior dos artífices – Deus. Paley era encantado com o mundo dos artefatos, e usava o olho humano como evidência inquestionável da ação e existência de um planejador inteligente, um artífice, que inventou um artefato biológico, planejando-o e desenhando-o para um propósito: ver.

A noção que Paley defendia era, dessa forma, que a natureza, com sua beleza, ordem e complexidade revelava a existência de Deus, e dava testemunho de seus atributos. No entanto, Paley não se enagaja profundamente com aqueles aspectos da natureza que aparentemente entravam em conflito com uma noção de um Deus criador benevolente. Sua visão era um tanto quanto “romântica” da natureza, esquecendo-se da visão da natureza como “Red in tooth and claw” (“vermelha em dentes e garras”) descrita em famoso poema de Lord Tenysson, que a perspectiva da natureza como uma teia alimentar nos apresenta, em que espécies comem umas às outras e vermes e fungos fazem carcaças apodrecerem nos campos por aí. A crítica a Paley na época já levantava esses pontos, mas a crítica mais severa viria alguns anos mais tarde.

Obviamente, Paley escreve 60 anos antes de Darwin, em uma época em que apenas se começava a falar de que as espécies não eram fixas mas mudavam com o tempo, e  não havia um mecanismo que pudesse explicar tal fenômeno. O grande mérito de Darwin foi sugerir esse mecanismo, chamado seleção natural, em que um processo puramente natural poderia ser o responsável por dar uma aparência de design para as coisas da natureza. É exatamente este o ponto do famoso livro de Richard Dawkins – O Relojoeiro Cego, onde o autor responde dizendo que o relojoeiro de Paley é na verdade a seleção natural, que age de forma cega, apenas respondendo às pressões seletivas encontradas na natureza.

Dessa forma, o raciocínio de Paley foi posto à prova, e muitas outras questões oriundas do estudo da biologia se colocaram diante de nós aguardando uma resposta. Essas respostas vieram sob novas formulações da Teologia Natural, como por exemplo de Charles Kingsley, na sua palestra de 1871 “The Natural Theology of the Future”. As velhas teologias naturais, como as de Paley, afirmavam acertadamente que Deus era tão sábio que poderia fazer todas as coisas. Mas a nova Teologia Natural apontava para um Deus “muito mais sábio que isso, que pode fazer com que as coisas façam-se a si mesmas.”[3]

Darwin, vemos, não representou uma falência da Teologia Natural – pelo menos na sua Inglaterra natal, mas sim possibilitou o desenvolvimento de uma teologia muito mais articulada com a realidade da natureza.

Novos esforços dentro da Teologia Natural têm se preocupado a responder a estes questionamentos levantados a partir da observação da natureza. Seria a natureza um caminho para nos levar até Deus, ou o contrário, a cuidadosa observação e estudo do cosmos nos leva para um universo onde não há Deus? Certamente, há defensores das duas posições. Richard Dawkins é sem dúvida o mais famoso dos que advogam pela segunda posição:

O universo que observamos tem precisamente as propriedades que deveríamos esperar se, no fundo, não há projeto, propósito, bem ou mal, nada a não ser uma indiferença cega, impiedosa.[4]

Entretanto, não são poucos os que advogam justamente o contrário, como o próprio McGrath, que afirma que a cuidadosa observação da natureza nos revela uma realidade que aponta para além dela mesma – a Criação aponta para o Criador. Em outras palavras, o estudo cuidadoso e metódico da natureza feito pela ciência aponta para coisas além dos alcances dela. A ciência, como diria Thomas Torrance, acaba nos levando a perguntas que ela própria não consegue responder.


Limites para a Teologia Natural?

O problema muitas vezes apontado nas abordagens da Teologia Natural é que a contemplação e estudo da natureza possibilitado pela ciência só conseguem nos levar no máximo a um deus deísta – aquele que “deu corda” no universo e sumiu para nunca mais voltar. O deus deísta não interfere, não se revela, é apenas o planejador inteligente, o “grande arquiteto” mas que está muito longe de ser o Deus teísta judaico-cristão.

Ademais, há o constante risco de tentar encontrar Deus nas lacunas do conhecimento científico – o célebre deus das lacunas, que só aparece nas coisas que não conseguimos explicar. A natureza seguiria seu curso através de leis naturais, com deus interferindo aqui e ali, onde as “leis naturais não bastam”. Ora, se Deus é Deus, haveria alguma lei natural não criada e planejada por ele? Por isso, a Teologia Natural contemporânea rejeita o deus das lacunas, ao invés afirmando que Deus é criador e sustentador do mundo natural, agindo constante e poderosamente na natureza através de suas leis.

Mas poderia a natureza nos levar para um conhecimento de Deus além do deísmo, em direção a um Deus teísta, salvador e redentor, revelado na pessoa de Jesus Cristo? Se a natureza  fosse capaz de fazer isso, haveria necessidade do que chamamos de Revelação?

O Célebre Karl Barth rejeitava veementemente a Teologia Natural por causa justamente desse ponto. Para ele, ela representava a asserção da autonomia humana à Deus, além de não ter justificativa na escritura e não ser apoiado pelo cristianismo reformado como o de João Calvino. No seu Church Dogmatics II/1 §26, Barth oferece uma crítica extensa e sistemática da Teologia Natural, que ele define como uma teologia “que vem ao homem pela natureza”, e que expressa “a auto-preservação e auto-afirmação humana em face à Deus”. Segundo ele,

A Teologia Natural agora se torna o exemplo paradigmático do desejo humano de se auto-justificar, com a aparição de um controle dialético entre a verdadeira teologia baseada na revelação e a auto-justificação humana baseada na antropologia.[5]

A hostilidade de Barth em direção a Teologia Natural repousa, assim, em sua crença fundamental de que ela mina a necessidade e a singularidade da auto-revelação de Deus. Se o conhecimento de Deus pode ser alcançado independentemente da auto-revelação de Deus em Cristo, segue-se que a humanidade pode ditar o lugar, tempo e meio de seu conhecimento de Deus.

Este episódio despertou outro célebre teólogo da época a rebater as críticas de Barth e defender o empreendimento da Teologia Natural: Emil Brunner. O episódio ficou conhecido como o famoso “Debate Barth-Brunner”.

Brunner responde a Barth dizendo que a Teologia Natural é amplamente justificada na escritura e que a Criação era o “ponto de contato” (anknüpfungspunkt) entre Deus e a humanidade, além de preparar o caminho para a revelação. Ademais, Barth não teria lido direito Calvino, pois ele sim apoia o empreendimento da Teologia Natural.

O modelo de Brunner, apesar do mais profundo respeito por Barth, é hoje o adotado pela Teologia Natural contemporânea. McGrath, por exemplo, juntamente com o que podemos chamar de ortodoxia cristã reformada, entendem a revelação de Deus no universo como dupla: uma através da natureza e outra através da pessoa de Cristo – o duplex cognitio Dei de Calvino. A Criação de Deus não exclui a necessidade da revelação em Cristo e na escritura.[6]

Mas pra que serve então a natureza, e o que ela realmente pode nos revelar a respeito de Deus? Sobre isso nos ocuparemos no próximo texto!

Até lá!
Tiago Garros


Tiago é bolsista do CnPq e pesquisador na área da interface entre as ciências naturais e a religião. Mestre em teologia pela EST – Escola Superior de Teologia e atual doutorando, orientado pelo Prof. Dr. Rudolf von Sinner. Licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista Oxford-Templeton no Ian Ramsey Centre for Science and Religion da University of Oxford, UK, orientado pelo Prof. Alister McGrath e pelo Dr. Ignácio Silva.

[1] O exposto aqui baseia-se em aulas com o Prof. McGrath na disciplina  Science and Religion e Christian Doctrines of Creation no Hillary Term de 2016 na Universidade de Oxford, bem como de uma palestra proferida por ele no Faraday Course “Biology and Belief”, na Universidade de Cambridge em Fevereiro de 2016.

[2] PLANTINGA, Alvin. Where the conflict really lies: science, religion, and naturalism. New York: Oxford University Press, 2011. Sem tradução para o português.

[3]We knew of old that God was so wise that He could make all things; but behold, He is so much wiser than even that, that He can make all things make themselves.” KINGSLEY, Charles. The natural theology of the future: a paper read in the hall of Sion College, Jan. 10, 1871. Ebook, domínio público. Versão consultada: Adelaide, Australia: University of Adelaide Library, 2014. Disponível em: https://ebooks.adelaide.edu.au/k/kingsley/charles/lectures/natural-theology-of-the-future/ . Acesso em: 7 Apr. 2016.

[4] Dawkins, Richard. O Rio Que Saía Do Éden: Uma Visão Darwiniana Da Vida. Trad. Alexandre Tort.  Rio De Janeiro: Rocco, 1996. p. 70.

[5] MCGRATH, Alister E. A scientific theology vol. 1 – Nature. Grand Rapids, MI: W.B. Eerdmans Pub., 2001, p. 269. referenciando Karl Barth, ‘Schicksal und Idee in der Theologie’, in Theologische Fragen und Antworten. Zollikon: Evangelischer Verlag, 1957, p. 54-92, especialmente 85-7.

[6] Um amplo tratamento de debate Barth-Brunner bem como do lugar da Teologia Natural na teologia cristã pode ser encontrado em MCGRATH, Alister E. A scientific theology vol. 1 – Nature. Grand Rapids, MI: W.B. Eerdmans Pub., 2001, p. 264-278ss.


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