Humanos aprimorados ou uma nova criação?
por Denis Alexander
Tradução: Tiago Augusto

“Eu nasci humano. Mas isso foi um acidente do destino – uma mera condição de tempo e lugar. Eu acredito que é algo que temos o poder de mudar.”[1]
– Prof. Kevin Warwick, Universidade de Reading 

“Não mais deuses, não mais fé, não mais tímidas privações. Vamos explodir nossas velhas formas, nossa ignorância, nossa fraqueza e nossa mortalidade. O futuro é nosso.”[2]
Max More, escritor transumanista


Resumo

O aprimoramento envolve dar habilidades integrais ao corpo além daquelas que normalmente consideramos que um ser humano possua. O transumanismo é uma eminente filosofia baseada na autonomia humana, na qual as tecnologias de aprimoramento desempenham um papel central. Este artigo resume o transumanismo, descreve o escopo das atuais tecnologias de aprimoramento e fornece uma crítica cristã, apresentando a estratégia bíblica para a transformação humana como uma alternativa convincente ao projeto transumanista.


Introdução

Todos nós somos pessoas aprimoradas. Muitos de nós incorporamos dispositivos protéticos em nossos corpos – lentes de contato, próteses de quadril ou implantes cocleares. Todos nós fomos vacinados, recebendo proteção imunológica reforçada contra patógenos que teriam matado muitos de nós um século atrás.

O que é “aprimoramento”? A gama de exemplos destaca a ambiguidade do termo. De fato, não existe uma definição geral estabelecida, e existe uma zona cinzenta entre a terapia e o aprimoramento, mas a descrição de Kevin Warwick é tão boa quanto qualquer outra: o aprimoramento envolve dar habilidades integrais ao corpo além daquelas que normalmente consideramos que um ser humano possua.[3]

Para os propósitos presentes, podemos considerar três níveis de aprimoramento: o trivial, o convencional e o transumanista, indo da tecnologia direta à ideologia pura. Embora não haja uma demarcação precisa entre essas categorias, elas são bem distintas. A categoria “trivial” inclui vacinação e lentes de contato, nada triviais em seus benefícios, mas que não levantam questões éticas ou teológicas profundas. O “convencional” inclui cirurgia estética, o uso não terapêutico de drogas para aprimoramento cognitivo e dispositivos protéticos usados ​​por amputados que melhoram sua capacidade atlética além da dos seus pares sem deficiência.[4] O aprimoramento transumanista se distingue por colocar as tecnologias de aprimoramento no centro de um conjunto de crenças filosóficas explícitas, e por seu objetivo de desenvolver aperfeiçoamentos bem além do “convencional”, eventualmente levando ao ser “pós-humano”.


Transumanismo e pós-humanismo

O transumanismo ganhou uma posição significativa na vida acadêmica do Reino Unido na última década e as visões transumanistas são propagadas por meio de sociedades, websites, periódicos e filmes. O filósofo e cofundador da Associação Transumanista Mundial, Nick Bostrom, representa uma voz influente como Diretor do Instituto Futuro da Humanidade em Oxford,[5] assim como Julian Savulescu, Diretor do Centro de Ética Prática Uehiro, também em Oxford.[6] Na Universidade de Reading, o Prof. Kevin Warwick promove os benefícios da cibernética[7] e, em Manchester, o Prof. John Harris tem promovido vigorosamente as ideias transumanistas, apesar de não gostar do rótulo “transumanista”.[8] Histórias transumanistas são atraentes para a mídia por serem recebidas como controversas, ou por terem grande apelo visual, e estão se tornando incrustadas na cultura popular, especialmente através de videogames populares, como Avatar e Second Life, nos quais os jogadores criam versões alternativas digitalizadas e aprimoradas de si mesmos.[9] Primeiramente, descrevemos a ideologia transumanista brevemente abaixo; uma crítica segue adiante.

O transumanismo vê a humanidade como um fenômeno em evolução, durante o qual os humanos desenvolveram consciência e habilidade tecnológica. O próximo passo na evolução está em nossas mãos – ir além da evolução não guiada e usar nossa tecnologia de maneiras radicais para o auto-aperfeiçoamento: “Não é a nossa forma humana ou os detalhes da nossa biologia humana atual que definem o que é valioso sobre nós, mas sim nossas aspirações e ideais, nossas experiências e os tipos de vidas que levamos.”[10]

Os transumanistas estão engajados em um projeto para superar as limitações da natureza humana.[11] Bostrom comenta que: “Os transumanistas veem a natureza humana como um trabalho em progresso, um início ainda imaturo que podemos aprender a remodelar de maneiras desejáveis.”[12]

A autonomia é o valor unificador do transumanismo, e as tecnologias de aprimoramento humano são consideradas “melhores”,[13] ao invés de simplesmente diferentes: “De acordo com o programa extremo do transumanismo, a tecnologia pode ser usada para aumentar enormemente a inteligência de uma pessoa; para adaptar sua aparência ao que eles desejam; para prolongar seu tempo de vida, talvez para a imortalidade; e reduzir enormemente sua vulnerabilidade a danos.”[14] Simon Young declara que “O avanço da evolução humana através da biotecnologia avançada não é apenas possível, mas inevitável”.[15]

O desfecho proposto por alguns transumanistas é o “pós-humano”: seres divinos, inteligentes e imortais, mas não membros da espécie Homo sapiens. Seu tipo de espécie é mal definido, mas pode ser ciborgue (parte humano, parte máquina) ou máquinas completas sem qualquer similaridade genética com humanos. O Homo sapiens será substituído pelo Homo cyberneticus.


Tecnologias de aprimoramento

Antes de podermos avaliar as questões éticas e teológicas envolvidas no aprimoramento, precisamos entender o escopo e as possibilidades realistas das tecnologias envolvidas.

Aprimoramento estético

Os aprimoramentos estéticos estão na categoria “convencional” e parecem resistentes a desacelerações econômicas. No total, 34.187 procedimentos foram realizados em 2008 no Reino Unido – 5% a mais que em 2007 e mais do que o triplo desde 2003,[16] embora ainda modestos em comparação com os 12 milhões de procedimentos atualmente realizados anualmente nos EUA.[17] No Reino Unido, o aumento de mama em mulheres aumentou em 30%, para mais de 8.000 em 2008, enquanto a redução de mama subiu 13%, para 3.845 procedimentos. Os homens também estão sendo cada vez mais cirurgicamente aprimorados. Claramente, muitas pessoas não estão satisfeitas com suas identidades físicas.

Aprimoramento cognitivo

As melhorias cognitivas abrangem toda a gama de categorias, do “trivial” ao distintamente transumano, e já são uma realidade presente, pelo menos no que se refere às drogas. Ritalina e Adderall são prescritos principalmente para o tratamento do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), mas são amplamente utilizados por estudantes que estudam para exames, chegando a 25% em alguns campuses americanos. Nos EUA, os soldados são legalmente obrigados a tomar medicamentos, se ordenados, em prol de seu desempenho militar.[18] A eliminação farmacêutica de memórias indesejadas é uma meta ativa de muitas empresas farmacêuticas, incluindo a Memory Pharmaceuticals.[19] Desenvolvido inicialmente para vítimas de trauma,[20] a extensão do uso de drogas para o apagamento de memória além de tais contextos é amplamente prevista.[21]

Embora em um ritmo mais lento, o aprimoramento cognitivo por meios não farmacêuticos está se desenvolvendo. Tal como acontece com as drogas, tais desenvolvimentos estão sendo conduzidos por razões médicas, mas têm desdobramentos que poderiam ser usados ​​para o aprimoramento. Implantes cerebrais para o controle de Parkinson, epilepsia e outros distúrbios neurológicos podem ter efeitos benéficos radicais, em particular a estimulação cerebral profunda.[22]

A atual tecnologia de aprimoramento cognitivo por meio de drogas ou Estimulação Magnética Transcraniana geralmente facilita, na melhor das hipóteses, uma melhoria de 10 a 20% em testes cognitivos, muito abaixo dos níveis alcançados por técnicas de treinamento mental.[23] No entanto, os transumanistas vislumbram uma era futura, quando os estados de humor pessoais e a eficiência cognitiva poderão ser autocontrolados pela tecnologia, conforme necessário. Naturalmente, se é o Eu ou o Estado que pode exercer tal controle é um ponto discutível.

Aprimoramento genético

Como enfatizado anteriormente,[24] a complexidade do genoma humano provê sua melhor defesa. Dados mais recentes forneceram um suporte impressionante para essa afirmação. Múltiplos genes contribuem para o risco global de desenvolvimento de doenças.[25] Até mesmo a altura é influenciada por mais de 40 variações genéticas. Para a memória e a “inteligência”, a história genética é ainda mais complexa. Existe uma enorme lacuna entre as aspirações transumanistas para mudar a natureza humana geneticamente e a realidade técnica. Atualmente, não existe uma terapia genética de rotina para uma doença que seja segura, quanto mais um aprimoramento.

Aprimoramento antienvelhecimento

“O santo graal do aprimoramento é a imortalidade”.[26] Um refrão constante encontrado na literatura transumanista é que o envelhecimento é uma doença que deve ser abordada de frente com o objetivo de ampliar grandemente a expectativa de vida humana. Os seres humanos já vivem, em média, cerca de duas vezes mais do que viviam há um século, devido à melhoria do saneamento, imunização, nutrição e cuidados de saúde. Mas para Aubrey de Grey, presidente da Fundação Methuselah[27], isso não é suficiente, e ele formulou um plano exaustivo para o adiamento indefinido do declínio físico e mental relacionado à idade.[28] John Harris prevê que uma elite de “imortais” de vida longa irá surgir, em pequeno número devido aos enormes custos envolvidos em prolongar muito a vida. No entanto, “dado que as pessoas querem a vida e temem a morte, é difícil não ver a longevidade, e talvez a imortalidade, como um bem palpável.”[29] Uma visão transumanista além do mero antienvelhecimento está em curso, a ideia de que os humanos podem alcançar uma longevidade extraordinária, se não a imortalidade, tendo a informação em seus cérebros reproduzida em uma nova existência digital in silico, chamada de “independência de substrato”, “vivendo” em novas sociedades cibernéticas com suas próprias regras.[30]

Aprimoramento “ciborguiano”

Os transumanistas vislumbram uma nova geração de ciborgues. Em 2002, Kevin Warwick tinha um arranjo de 100 eletrodos implantados cirurgicamente nas fibras nervosas de seu braço esquerdo,[31] permitindo o controle sobre uma cadeira de rodas elétrica e uma mão artificial usando essa interface neural. Outros entusiastas de ciborgues embarcaram em auto-experimentos de “prova de conceito” semelhantes. Todd Huffman, por exemplo, trabalhando na Alcor, teve um ímã implantado em seu dedo anelar esquerdo para que ele pudesse sentir os campos magnéticos, dando assim o pequeno primeiro passo no sonho do aperfeiçoamento – aumentar o repertório de experiências humanas.[32]

Dados os riscos envolvidos, é provável que tais procedimentos permaneçam não mais que truques para um futuro próximo. Mais realista é a ideia de que os ciborgues se desenvolverão a partir de procedimentos médicos. Ouvir com um implante coclear é muito diferente da audição normal e tem que ser aprendido. Dispositivos similares estão sendo implantados experimentalmente em áreas acusticamente relevantes do cérebro.[33] Os entusiastas do aprimoramento têm sugerido que tais implantes poderiam ser usados ​​para a transferência direta de informações para o cérebro. Novamente, isso ilustra a maneira pela qual um aprimoramento “convencional” poderia ser desenvolvido em uma aplicação com um aspecto distintamente transumano.

Uma perspectiva bíblica – o humano transformado

Propostas específicas de aprimoramento podem ser consideradas individualmente por seus próprios méritos ou deméritos. De maior interesse aqui é o papel que o aprimoramento desempenha como um projeto dentro da filosofia geral do transumanismo. As narrativas humanistas da vida variam amplamente, mas todas têm em comum uma narrativa cristã secularizada em que as raízes teológicas são prontamente discerníveis. O transumanismo não é exceção. O agente humano é central no discurso, mas também há um reconhecimento de que as coisas não são como deveriam ser. Como Savulescu afirma claramente: “Há muito que é profundamente maligno na natureza humana.”[34] Assim, os humanos precisam mudar para tornar o mundo um lugar melhor; existe a necessidade de “salvação”. Mas a esperança messiânica, neste caso, é colocada na tecnologia que moldará o ser humano melhorado, aperfeiçoado, talvez uma espécie totalmente nova, o pós-humano. E então, no futuro distante, jaz a esperança da imortalidade, quando o pós-humano se tornará independente do substrato, liberto das restrições da carne e do sangue para viver em um paraíso digital. A morte é um inimigo a ser superado pela tecnologia. A crítica bíblica abaixo segue este padrão narrativo.


Um falso conceito de humanidade

A compreensão cristã e transumanista do que significa ser humano difere profundamente. Para os transumanistas, somos identificados pelo pertencimento a uma espécie, embora em estágio de evolução “incompleto”, e “as pessoas propriamente ditas são indivíduos capazes de atribuir valor à sua própria existência”.[35] Para o cristão, as pessoas humanas são seres distintos dos animais, por serem feitos à imagem de Deus[36] e, portanto, têm um valor absoluto que não é relativo a variações em seus atributos físicos. A personalidade humana feita à imagem de Deus engloba os fracos, os desamparados e os pobres, todos preciosos à vista de Deus, mesmo que incapazes de “dar valor à sua própria existência”. O florescimento humano envolve uma vida relacional em harmonia com Deus e com os outros. Ser feito à imagem de Deus envolve responsabilidades para cuidar da Terra com toda a sua diversidade biológica e cuidar uns dos outros em nossa diversidade.[37] A verdadeira humanidade envolve uma humilde consciência de nossa dependência de Deus.

Talvez não seja por acaso que a maioria das principais vozes do movimento transumanista seja masculina, falando muitas vezes em termos de autonomia humana e exploração da criação, em vez de cuidados com a criação. Harris aponta de forma sucinta: “Eu pessoalmente não considero a humildade como uma virtude”,[38] observando no contexto do aprimoramento que “…nós certamente podemos nos orgulhar por escolhermos os meios apropriados para nossos fins e nos parabenizarmos por nossas sábias escolhas e pelo fato de termos feito a escolha que nos beneficia de maneiras que valorizamos.”[39] Apesar desse ar de auto-reconhecimento, não é claro nas pressuposições transumanistas por que a “humanidade imatura” deveria ser tão central para a história. Por que não melhorar animais?

Um falso diagnóstico

O conteúdo de nossos desejos pode facilmente iludir: muitas vezes não desejamos o que é realmente bom para nós. Obtenha o diagnóstico errado no começo e tudo dará errado. Os transumanistas veem nossa evolução como sendo um projeto incompleto, então olham para o próximo estágio, projetado por nós, no qual nos tornamos nossos próprios criadores, para nos removermos de nossas várias inadequações. Seu diagnóstico jaz em nossa biologia defeituosa. O diagnóstico cristão é muito mais profundo e vê as raízes do nosso problema central na nossa alienação de Deus.[40] É nesse afastamento egoísta da vontade de Deus para nossas vidas que se encontram nossos problemas mais profundos. A ausência de uma narrativa da Queda na filosofia ultra-pelagiana do transumanismo é uma de suas maiores fraquezas. Adão foi avisado por Deus que a autonomia humana era veneno (“No dia em que dela comer, você certamente morrerá”), e assim aconteceu.[41] A autonomia humana ainda permanece venenosa, criando confusão[42] e subvertendo as esperanças messiânicas baseadas nas tentativas humanas de auto-aperfeiçoamento.

Um falso salvador

Algumas aspirações transumanistas são boas e compartilhadas pelos cristãos: a derrota da doença; o melhoramento humano; um futuro com esperança e não desespero. É no modo de atingir essas aspirações que surgem as principais diferenças. No transumanismo, é a tecnologia que desempenha o papel messiânico de concretizar o auto-aperfeiçoamento. No cristianismo é Jesus o Messias que cura a alienação com Deus, restaura a imagem quebrada e capacita aqueles que aceitam a nova humanidade de Deus, em Cristo, para exercer domínio sobre a terra sem autonomia ou exploração, proporcionando assim transformação moral. Na encarnação, sem a qual essa salvação não teria sido assegurada pela morte e ressurreição de Cristo, encontramos um padrão para o ser humano perfeito que se opõe completamente à ideia transumanista do que significa ser humano.

Em Filipenses 2:5-11, Paulo nos lembra que Cristo é Deus, mas ele não se aproveitou de sua divindade, mas “esvaziou-se a si mesmo, assumindo a forma de servo”. Jesus, personificação da humildade, revela-nos um aspecto fundamental da natureza divina. A salvação não reside no auto-aperfeiçoamento, mas em seguir os passos daquele que “se humilhou e foi obediente até a morte – e morte de cruz!”[43] Não há lugar para se vangloriar, nem espaço para as elites humanas.

O transumanismo entrega os mesmos velhos seres humanos ajudados e remendados por algumas correções e dispositivos técnicos. O cristianismo entrega seres humanos transformados, “novas criaturas em Cristo”,[44] que começam a conformar suas vidas àquele que estava disposto a tomar o lugar do pecador para tornar esse novo Caminho possível.

Uma falsa esperança para o futuro

Por todo o discurso sobre o corpo, a visão transumanista do futuro é notavelmente platônica. Uma futura reprodução digital da humanidade, independente de substrato, destinada em qualquer caso a enfrentar a eventual morte térmica do universo, contrasta com a plena humanidade que o crente cristão desfrutará em um corpo ressurreto nos novos céus e nova terra “em que a justiça habita”.[45] Isso ocorrerá não por aprimoramento pessoal, mas baseado exclusivamente na graça de Deus, enraizado firmemente nas promessas de Deus, dando origem a uma vida abundante na qual o que significa ser humano encontra sua realização final: perfeição física e moral unidas em corpos ressurretos.[46] Todos os melhores aspectos e realizações do mundo atual encontrarão uma continuidade transformada na criação futura.[47] Essa grande esperança escatológica é também um lembrete de que a humanidade feita à imagem de Deus não é um conceito estático. Os cristãos estão sendo renovados e moralmente transformados agora, mas também esperando ansiosamente pelo dia final da ressurreição, quando este processo encontrará sua plena realização.[48]


Como os cristãos devem responder?

Os cristãos tendem a ser culpados por resistir a novas tecnologias ou, seguindo os passos de Bacon, por serem excessivamente entusiastas no seu uso. Ao abordar três aspectos diferentes do compromisso cristão, apontamos para um caminho intermediário entre esses extremos.

Uma questão de mordomia

Os cristãos devem enfrentar as realidades atuais à luz das prioridades últimas: somos confrontados com escolhas difíceis como todos os outros. Já nos referimos às formas “convencionais” de aprimoramento, como a cirurgia estética. A cirurgia é cara, então haverá a questão da mordomia: esse gasto é justificado quando tantos no mundo carecem das necessidades básicas da vida? Há também a questão mais profunda de autoestima e identidade. Se o meu valor final é porque eu sou um filho de Deus, sendo renovado diariamente à sua imagem, então eu preciso dessa mudança integral no meu corpo? A resposta pode ser “sim”: para alguns, a mudança pode ser psicologicamente crucial. Os cristãos devem ser tolerantes com aqueles que fazem escolhas diferentes das suas; no grande esquema das coisas, há assuntos mais importantes. Mas todo cristão precisa fazer as perguntas difíceis primeiro: a minha escolha reflete a renovação da minha mente pelo Espírito de Deus?[49] Como a minha escolha afetará os outros? O dinheiro poderia ser usado melhor em outra coisa?

Uma questão de prioridades

Um refrão recorrente na literatura do aprimoramento é: “Quem é você para me impedir de fazer o que eu quero fazer?” A prioridade cristã é diferente: “Como eu glorifico a Deus através do meu serviço positivo à humanidade?”[50] As prioridades do cristão são estabelecidas pelo imperativo bíblico de cuidar dos pobres e desprovidos, daqueles menos afortunados que nós, e de procurar construir sociedades relacionais saudáveis. A tecnologia é uma das grandes dádivas de Deus e pode ser usada para curar e satisfazer as necessidades humanas. Mas, em contraste com a cura, parece não haver um mandato bíblico claro sobre o uso da tecnologia para ampliar os poderes e capacidades humanas intrínsecas.

Por ser possível tratar a tecnologia como tendo atributos quase divinos, os cristãos às vezes reagem em oposição instintiva. Mas isso é desnecessário. O reconhecimento de que a tecnologia é um falso salvador não é um chamado às armas ludistas[51]. Por essa razão, a oposição cristã às tecnologias de aprimoramento não parece ser uma prioridade, a menos que seu potencial de dano seja muito significativo e passível de ser cumprido. O estado protecionista já é super-regulado e muito ágil para interferir na vida privada dos cidadãos. Se as pessoas quiserem cutucar seus cérebros com eletrodos, enfiar chips em seus braços ou sentir campos magnéticos, então deixe-os seguir em frente, e que tenham a maior sorte. Na prática, de qualquer maneira, no futuro próximo a maioria das melhorias continuarão a vir como desdobramentos de intervenções médicas. Quando isso acontecer, seja grato. Se a sua prótese de quadril funciona melhor do que a original, ótimo. Se a sua droga contra o câncer não apenas cura o seu câncer, mas também lhe dá alguns anos extras de vida por razões bem diferentes, excelente. Por favor, não leia este artigo como ingratidão a Deus pelas maravilhas da tecnologia.

Eu penso que a prioridade para os cristãos é diferente: descrever para a sociedade os atrativos dos humanos transformados agora, em vez do nebuloso futuro pós-humano, que parece mais uma esperança digital ilusória. A resposta cristã ao transumanismo deve se focar na transformação humana que se encontra em Cristo, delineando a positiva alternativa relacional, que está em forte contraste com a perspectiva sombria mantida por soluções tecnológicas intermináveis ​​e individualistas. Muitos entusiastas do aprimoramento são nerds masculinos brincando com brinquedos de meninos. Um pouco de humor e ironia poderia subverter as especulações da visão transumanista mais rapidamente do que a aplicação de sermões pesados. Na verdade, não há visão mais patética do que humanos tentando se portar como deuses. No final das contas, a visão transumanista para o futuro é uma repetição ultraconservadora do idealismo neoplatônico – essencialmente entediante em seu desenvolvimento atual sobre buscas triviais, mas é melhor deixar isso claro ao enfatizar a alternativa cristã mais convincente: humanos transformados pelo Espírito Santo tanto agora quanto no futuro.

Uma questão de saúde relacional

O transumanismo é depressivamente egocêntrico. Um tema marcante nos escritos transumanistas é o compromisso com os direitos e liberdades individuais, “a capacidade e o direito dos indivíduos de planejar e escolher suas próprias vidas”, com apenas um aceno ocasional para o bem comum. Harris escreve que “os cidadãos devem ser livres para fazer suas próprias escolhas à luz de seus próprios valores, sejam ou não essas escolhas e valores aceitáveis ​​para a maioria”.[52] O conceito de “bom” nessa visão refere-se à ampliação da escolha pessoal. Mas, na realidade, a escolha pessoal é exercida em relação com a desigualdade que necessariamente surge no que diz respeito aos bens e serviços escassos distribuídos pelos mecanismos de mercado.[53]

Já existem tantas desigualdades no mundo que parece difícil justificar novas adições. A objeção transumanista usual a essa crítica é que nós não retemos de nossos próprios cidadãos as terapias médicas mais recentes, alegando que outros no mundo não podem se beneficiar. E em qualquer caso, as terapias mais recentes eventualmente se tornarão mais baratas e mais disponíveis. É verdade, mas o argumento erra o ponto: dois erros não fazem um acerto. Na prática, há uma grande diferença entre atender às necessidades básicas de saúde e às necessidades médicas do mundo, em que a malária que pode ser evitada mata uma criança africana a cada 30 segundos, e financiar outra droga com potencial de aprimoramento com efeitos colaterais ainda desconhecidos, ou um implante que detecta campos magnéticos. O bem comum envolve obedecer ativamente ao mandamento de Jesus de “amar nosso próximo como amamos a nós mesmos”.[54] Muitos argumentos transumanistas parecem egoístas e narcisistas, apesar da extensa literatura sociológica mostrar que o bem-estar humano está intimamente ligado à saúde relacional.[55] O cristão irá pressionar por ações que igualem as oportunidades entre diferentes populações humanas, não aquelas que gerem ainda mais divisões.

O desfecho pós-humano do projeto transumanista é aquele no qual as elites serão alienadas de seus primos distantes não aprimorados. No desfecho cristão, pessoas transformadas de todos os grupos étnicos do mundo estarão unidas em adoração conjunta.[56]


Conclusões

Aprimoramentos triviais e convencionais por si só não representam ameaça à fé cristã e devem, em geral, ser tratados com gratidão ou tolerância bem-humorada, dependendo do contexto. O papel divino que o aprimoramento desempenha dentro da filosofia transumanista é um assunto diferente. A resposta cristã ao transumanismo deve focar-se na transformação humana que se encontra em Cristo, delineando a alternativa relacional positiva que se posiciona em forte contraste com a autoajuda através da tecnologia. As pessoas serão mais felizes e mais satisfeitas ao adotar a visão cristã para a humanidade, porque o bem-estar a longo prazo surge da saúde relacional, e não de simulações artificiais solitárias. Não são transumanos ou pós-humanos que precisamos na sociedade, mas seres humanos mais transformados.


Agradecimentos

Sou grato à Dra. Clare Redfern e a James Crocker por sua ajuda na pesquisa. O Dr. Jonathan Moo fez contribuições úteis como visitante do grupo de escritores.

Denis Alexander é diretor do Instituto Faraday para a Ciência e Religião no St. Edmund’s College, em Cambridge, onde é membro.


Referências:
Cambridge Papers (2009), vol 18, n 2, Published by The Jubilee Centre
Fonte
[1] Kevin Warwick, Wired, Feb. 2000.
[2] Max More, Transhumanism – Towards a Futurist Philosophy, www.maxmore.com/transhum.htm, acessado em 11 Fev 2009.
[3] Ver Peter Moore, Enhancing Me – the Hope and the Hype of Human Enhancement, Wiley, 2008.
[4] Isso levou o velocista sul-africano Oscar Pistorius, um duplo amputado que corre com lâminas curvas de fibra de carbono, a se qualificar para as Olimpíadas de Pequim. Ver Julian Smith, ‘We Have the Technology’, New Scientist, 3 Jan 2009, pp.36–39.
[5] www.nickbostrom.com  Ver N. Bostrom e J. Savulescu (eds), Human Enhancement, OUP, 2009.
[6] www.practicalethics.ox.ac.uk/nstaff.htm
[7] www.kevinwarwick.org. Ver K. Warwick, March of the Machines: The Breakthrough in Artificial Intelligence, University of Illinois Press, 2004.
[8] www.law.manchester.ac.uk/aboutus/staff/john_harris/default.htm. Ver John Harris, Enhancing Evolution – the Ethical Case for Making Better People, Princeton University Press, 2007.
[9]  www.avatarthevideogame.com (‘Você decide como seu personagem domina os elementos!’); http://secondlife.com (‘O mundo virtual do Second Life oferece liberdade quase ilimitada aos seus Residentes. Este mundo é realmente você que faz!’).
[10] Transhumanist FAQ 1.1 Acessado em 3 Fev 2009. www.transhumanism.org/index.php/WTA/faq21/46/
[11] M. J. McNamee e S. D. Edwards, ‘Transhumanism, medical technology and slippery slopes’, J. Med. Ethics 32: 513–518, 2006.
[12] Nick Bostrom. ‘Transhumanist Values’, acessado em 3 Fev 2009. http://transhumanism.org/index.php/WTA/more/transhumanist-values/
[13] Uma questão chave aqui é, claro, como definimos o que é bom e desejável.
[14] M. J. McNamee e S. D. Edwards, op. cit. p.514.
[15] Simon Young, Designer Evolution: A Transhumanist Manifesto, Amherst NY: Prometheus Books, 2006, p.22, itálico no original.
[16] http://news.bbc.co.uk/go/pr/fr/-/1/hi/health/7846555.stm. Acessado em 26 Jan 2009.
[17] www.cosmeticplasticsurgerystatistics.com/statistics.html. Acessado em 12 Fev 2009.
[18] J. D. Moreno, Mind Wars: Brain Research and National Defense, Dana Press, 2006.
[19] S. S. Hall, ‘The quest for a smart pill’, Scientific American, Set 2003, pp.54–65.
[20] Nature Neuroscience, Fev 2009.
[21] O apagamento de memórias pela empresa Lacuna Inc. é um tema central do filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, 2003.
[22] Ver www.dana.org/events/detail.aspx?id=7326 para uma demonstração em vídeo. Acessado em 12 Fev 2009.
[23] N. Bostrom e A. Sandberg, 2007, ‘Cognitive enhancement: Methods, ethics, regulatory challenges’, Science and Engineering Ethics, 2009. K. Morris, ‘Experts urge smart thinking on cognitive enhancers’, The Lancet Neurology, 7: 476–477, 2008.
[24] D. R. Alexander, ‘Genetic Engineering in God’s World’, Cambridge Papers, Vol. 6 No.2, Junho 1997.
[25] Nature 447, 661–678, 2007; P. Donnelly, Nature 456, 728–731, 2008.
[26] John Harris, op. cit., 2007, p.59.
[27] N.T.: Em português, “Matusalém”, personagem bíblico do Antigo Testamento, conhecido por ser o que teve mais longevidade de toda a Bíblia.
[28] Aubrey de Grey e Michael Rae, Ending Aging: The Rejuvenation Breakthroughs that could Reverse Human Aging in our Lifetime, St. Martin’s Press, 2007. De Grey comentou em 2004, um pouco otimista: ‘Eu acho que a primeira pessoa a viver até 1.000 anos pode já estar na casa dos 60.’
[29] John Harris, op. cit., p. 64.
[30] P. Moore, op. cit., Ch. 3.
[31] www.kevinwarwick.com
[32] P. Moore, op. cit., pp.117–132.
[33] J. Clausen, ‘Man, machine and in between’, Nature 457: 1080–1081, 2009.
[34] Ingmar Persson e Julian Savulescu, ‘The perils of cognitive enhancement and the urgent imperative to enhance the moral character of humanity’, Journal of Applied Philosophy, 25: 162–177, 2008.
[35] John Harris, op. cit., p.97.
[36] Gn 1:26–27.
[37] Gn Cap 2.
[38] John Harris, op. cit., p.113.
[39] John Harris, op. cit., p.133.
[40] Ef 2:12–13; Cl 1:21–22; Rm 3:10–12.
[41] Gn 2:17; 3:8–24.
[42] Gn 11:4–9.
[43] Fp 2:8.
[44] 2Co 5:17.
[45] 2Pe 3:13.
[46] 1Co 15:49.
[47] Ap 21:24.
[48] 2Co 3:18; Cl 3:10; 1Co 15:51–52.
[49] Rm 12:1–2.
[50] Mc 12:29–30.
[51] N.T.: O ‘luddismo’ ou ‘ludismo’ foi um movimento de trabalhadores ingleses do ramo de tecelagem, no início do século XIX, que se notabilizou pela destruição de máquinas como forma de protesto. Ao longo do tempo, prevaleceu o uso do termo ‘ludismo’ como um movimento de reação ao progresso técnico. O termo ‘ludita’ ou ‘ludista’ designa, em sentido depreciativo, toda pessoa que se oponha à industrialização ou a novas tecnologias.
[52] John Harris, op. cit., p.6.
[53] A. Buchanan et al., From Chance to Choice: Genetics and Justice, Cambridge University Press, 2000.
[54] Lc 10:27. A Parábola do Bom Samaritano define a compreensão de Jesus de quem é o próximo (Lc 10:29–37).
[55] David G. Myers, ‘Religion and Human Flourishing’, in M. Eid e R. J. Larsen (eds), The Science of Subjective Well-Being, The Guilford Press, 2008.
[56] Ap 7:9–10.
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