Timothy Keller

Esta é a quarta de uma série de seis partes considerando perguntas que cristãos leigos trazem aos seus pastores quando apresentados ao ensinamento de que a evolução biológica e a ortodoxia bíblica podem ser compatíveis. Nos três primeiros posts, Dr. Keller deu uma visão geral da tensão entre os relatos bíblicos e científicos sobre a origem, do ponto de vista pastoral, dirigiu-se ao conflito entre evolução e uma leitura literal de Gênesis, e argumentou que um relato evolucionário das origens não necessariamente diminui a dignidade humana. Neste post, Keller se volta para questões sobre a origem do pecado e do sofrimento à luz da confiabilidade das Escrituras.


Três perguntas dos cristãos leigos

Pergunta: Se a evolução biológica é verdade e não houveram Adão e Eva históricos, como podemos saber de onde o pecado e sofrimento veio?

Resposta: A crença na evolução pode ser compatível com a crença em uma queda histórica e com Adão e Eva literais. Existem muitas perguntas não respondidas em torno desta questão e por isso os cristãos que acreditam que Deus usou a evolução devem estar abertos a diversos pontos de vista.

Minhas respostas para as duas primeiras questões são basicamente negativas. Eu resisto à direção do pensamento do investigador. Eu não acredito que você tem que tomar Gênesis 1 como um relato literal, e eu não acho que para acreditar que a vida humana surgiu através de PBE, você necessariamente deve apoiar a evolução como GTE.

No entanto, penso que as preocupações desta questão estão muito mais bem fundamentadas. Na verdade, devo revelar, eu as compartilho. Muitos cristãos ortodoxos que acreditam que Deus usou PBE para trazer a vida humana não apenas tomam Gênesis 1 como não literal, mas também negam que Gênesis 2 é um relato de acontecimentos reais. Adão e Eva, na opinião deles, não eram figuras históricas, mas uma alegoria, ou símbolo da raça humana. Gênesis 2, então, é uma história simbólica, ou mito, que transmite a verdade de que todos os seres humanos são pecadores, tem se afastado e continuam a se afastar de Deus.

Antes que eu compartilhe minhas preocupações com essa visão, deixe-me fazer um esclarecimento. Um dos meus escritores cristãos favoritos (para colocar de forma amena), C. S. Lewis, não acreditava em Adão e Eva literal, e eu não questiono a realidade ou solidez de sua fé pessoal. Mas a minha preocupação é com a igreja institucionalmente e para com o seu crescimento e vitalidade ao longo do tempo. Será que a perda de uma crença na queda histórica enfraquece alguns dos nossos compromissos históricos, doutrinais em certos pontos cruciais? A seguir listo dois pontos onde isso poderia acontecer.


A confiabilidade das Escrituras

A primeira preocupação fundamental tem a ver com a leitura da Bíblia como um documento confiável. Tradicionalmente, os protestantes têm entendido que os escritores da Bíblia foram inspirados por Deus e que, portanto, discernir o significado pretendido pelo autor humano é a maneira pela qual nós discernirmos o que Deus está nos dizendo em um texto em particular 16.

O que, então, os autores de Gênesis 2-3 e Romanos 5, que tanto falam de Adão, pretendiam transmitir? Gênesis 2-3 não mostra quaisquer dos sinais de “prosa narrativa exaltada” ou poesia. Lê-se como o relato de acontecimentos reais. O texto parece histórico. Isso não significa que o Gênesis (ou qualquer texto da Bíblia) é história no sentido moderno, positivista. Os escritores antigos, ao relatar eventos históricos, se sentiam livres para flexibilizar intervalos de tempo – omitindo uma enorme quantidade de informações que os historiadores modernos considerariam essenciais para dar ‘o quadro completo’. No entanto, os escritores antigos de história ainda acreditavam que os eventos que estavam descrevendo realmente aconteceram.

Os escritores antigos também usavam muita linguagem figurada e simbólica. Por exemplo, Bruce Waltke aponta que quando o salmista diz “me teceste no ventre de minha mãe” (Salmos 139.13), ele não estava dizendo que não havia sido desenvolvido de acordo com processos biológicos perfeitamente normais. É uma maneira figurativa de dizer que Deus instituiu e guiou o processo biológico da formação humana no ventre de sua mãe. Então, quando é dito que Deus “formou Adão do pó da terra” (Gênesis 2.7), o autor poderia estar da mesma forma falando em sentido figurado. Ou seja, que Deus trouxe o homem à existência através de processos biológicos normais 17. A narrativa hebraica é incrivelmente econômica – só está interessada em contar-nos o que precisamos saber para aprender os ensinamentos que o autor quer transmitir.

Apesar da compressão, omissões e linguagem figurada, há sinais no texto de que isso é um mito e não um relato histórico? Alguns dizem que devemos ler Gênesis 2 a 11 à luz de outros mitos antigos de criação do mundo no Oriente Próximo. Esta visão afirma que, dado que outras culturas estavam escrevendo mitos sobre eventos como a criação do mundo e o grande dilúvio, devemos reconhecer que o autor de Gênesis 2-3 estava provavelmente fazendo a mesma coisa. Nesta perspectiva, o autor de Gênesis 2-3 simplesmente conta uma versão hebraica do mito da criação e do dilúvio. Ele pode até ter acreditado que os eventos aconteceram, mas nisto ele estava apenas sendo um homem de seu tempo.

Kenneth Kitchen, no entanto, protesta que não é assim que as coisas funcionavam. O proeminente egiptólogo e cristão evangélico, ao responder à acusação de que a narrativa do dilúvio (Gênesis 9) deve ser lida como “mito” ou “proto-história” como outras narrativas de dilúvio de outras culturas, respondeu:

O antigo Oriente Próximo não historicizou o mito (ou seja, o leu como ‘história’ imaginária). Na verdade, exatamente o inverso é verdadeiro, houve, sim, uma tendência a ‘mitificar’ a história para celebrar eventos históricos reais e pessoas em termos mitológicos… 18

Em outras palavras, a evidência é que ‘mitos’ do Oriente Próximo não evoluíram para relatos históricos ao longo do tempo, mas sim que eventos históricos tendem a evoluir para histórias mitológicas ao longo do tempo. O argumento de Kitchen é que, se você ler Gênesis 2-11 à luz de como funcionava a antiga literatura do Oriente Próximo, você no mínio concluiria que Gênesis 2-11 foram relatos ‘elevados’, com muita compressão e linguagem figurada, de eventos que realmente aconteceram. Em resumo, parece que uma forma responsável de ler o texto é interpretar Gênesis 2-3 como o relato de um evento histórico que realmente aconteceu.

O outro texto relevante aqui é Romanos 5.12, onde Paulo fala de Adão e a queda. É ainda mais claro que Paulo acreditava que Adão era uma figura real. N. T. Wright, em seu comentário sobre Romanos diz:

Paulo claramente acreditava que tinha havido um único primeiro casal, cujo homem, Adão, tinha recebido um mandamento e quebrado. Podemos ter certeza de que Paulo era ciente do que poderíamos chamar de dimensões míticas ou metafóricas desta história, mas ele não teria considerado que estas dimensões colocavam em dúvida a existência, e o pecado primordial, do primeiro casal histórico 19.

Então chegamos a este ponto. Se você subscreve à visão de que Adão e Eva não foram literais, e percebe que o autor do Gênesis provavelmente estava tentando nos ensinar que Adão e Eva eram pessoas reais que pecaram, e que Paulo certamente também estava tentando fazer o mesmo, em seguida, você tem que enfrentar as implicações de como ler a Escritura. Você pode dizer: “Bem, os autores bíblicos foram homens de seu tempo e estavam errados sobre algo que eles estavam tentando ensinar os leitores.” A pergunta óbvia que se segue é: “como saberemos quais partes da Bíblia devemos confiar e quais não devemos?”

Eu não estou argumentando algo tão bruto como “se você não acreditar em Adão e Eva literais, então você não acredita na autoridade da Bíblia!” Eu sustentei anteriormente que não podemos levar todos os textos na Bíblia literalmente. Mas a chave para a interpretação é a própria Bíblia. Eu não acredito que Gênesis 1 pode ser tomado literalmente porque eu não acho que o autor esperava que nós assim fizéssemos. Mas Paulo é diferente. Ele definitivamente queria nos ensinar que Adão e Eva eram figuras históricas reais. Quando você se recusa a tomar um autor bíblico literalmente, quando ele claramente quer que você faça isso, você se afasta do entendimento tradicional da autoridade bíblica. Como eu disse acima, isso não significa que você não pode ter uma fé forte e vital, mas eu acredito que tal movimento pode ser ruim para a igreja como um todo, e que certamente pode levar a certa confusão por parte dos cristãos leigos.


Na próxima parte, o Dr. Keller continua a explorar os problemas do pecado e sofrimento, com foco na visão de Paulo da obra da salvação de Cristo.

16 É verdade que frequentemente os escritores do Novo Testamento veem significados messiânicos nas profecias do Antigo Testamento que eram sem dúvida invisíveis aos próprios profetas do AT. Entretanto, embora os escritos de um autor bíblico possam ter mais significados verdadeiros do que este pretendia ao escrever, não pode ter menos. Isto é, o que o autor humano quis nos ensinar não pode ser visto como incorreto ou obsoleto sem abrir mão do entendimento tradicional da autoridade e confiabilidade bíblica.

17 Ver Bruce Waltke, Genesis: A Commentary (Zondervan, 2001) p.75. É claro, Waltke nota que Salmos 139 é poesia e Gênesis 2 é narrativa, mas isto não significa que prosa não possa usar figuras de linguagem e a poesia discurso literal. Apenas significa que poesia é mais figurada do que prosa. Outro exemplo de uma narrativa que fala do poder divino por trás de um processo natural é Atos 12:23. Neste versículo é dito que Herodes Agripa estava discursando publicamente a uma audiência quando “um anjo do Senhor o feriu; e ele morreu comido por vermes“. Josefo relata que Agripa de fato adoeceu nesta época, mas devido a uma “severa obstrução intestinal”. Ver John Stott, The Message of Acts (IVP, 1990) p.213. Aqui novamente vemos a Bíblia falando da ação de Deus por trás de um processo biológico natural.

18  K. A. Kitchen, On the Reliability of the Old Testament (Eerdmans, 2003) p. 425. Citado em Collins, p. 252.

19  N. T. Wright, “Romans” in The New Interpreter’s Bible vol. X, p. 526.


Traduzido do original em http://biologos.org/blogs/archive/creation-evolution-and-christian-laypeople-part-4
Por Leopoldo Teixeira

Leia a parte 5 aqui.


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