coronavírus e a filosofia

por Luiz Adriano G. Borges

professor de história e filosofia da tecnologia, UTFPR-Toledo

Vivemos um momento complexo. A pandemia que nos forçou a viver em isolamento. Causada pelo vírus SARS-CoV-2, a covid-19 surgiu em dezembro de 2019 e rapidamente se espalhou pelo mundo todo, deixando em evidência como não estávamos prontos para lidar com algo dessa magnitude. Talvez a falta de comunicação entre diversas especialidades do conhecimento humano tenha tornado ainda mais demorada a tomada de ação. É sobre isso que quero tratar nesse texto, apontando, em teoria, como poderíamos melhor nossas respostas práticas.   

No século XIX, na medida em que a ciência e a tecnologia se tornaram mais complexas, ocorreu uma paulatina divisão do mundo e da vida humana dentro de diferentes categorias de fenômenos e uma separação de seu estudo em diversas disciplinas autônomas (VANDERBURG, 2011, p. 56). Essa divisão de trabalho criou uma ilusão de objetividade e controle, no sentido de que a vida humana e o mundo poderiam ser compreendidos através de uma categoria de fenômenos por vez. A ciência e a tecnologia ocidental, então, se separam da experiência humana lutando pela busca de eficiência, o que não necessariamente traz benefícios.

Cientificismo (a ciência tem todas as respostas) e tecnicismo (a tecnologia pode solucionar todos os nossos problemas) são problemas reais que vem sendo criticados por filósofos e diversos pensadores desde o final do século XIX. Mas há muita diferença entre criticar e propor algo. Ninguém vai mudar de paradigma se não houver um paradigma melhor para substituir o antigo. 

Uma das grandes colaborações da filosofia da ciência e da tecnologia é apontar a necessidade de uma abordagem interdisciplinar para se lidar com grandes problemas éticos. Precisamos da maior quantidade de informação, de diferentes perspectivas sobre grandes questões. O olhar a partir de somente uma disciplina é reducionista. E aqui o filósofo holandês Herman Dooyeweerd e sua teoria dos aspectos modais pode nos ajudar muito.

A teoria dos aspectos modais ecoa em muitos trabalhos, anteriores e posteriores a Dooyeweerd. Edmund Husserl, Martin Heidegger, Gilbert Simondon, Bruno Latour e Edgar Morin desenvolveram ideias em torno dos “modos de existência dos artefatos”, como lhe denomina Latour, que estabeleceu um diálogo com seus antecessores (GOLFO, 2014; GRUSZCZYŃSKI; VARZI, 2015, 2015; LATOUR, 2013; LAWSON, 2008; MORIN, 2015; SIMONDON, 2016; VERBEEK, 2005). Todos esses autores e noções carregam alguma similaridade com os conceitos do filósofo holandês. 

Como é do conhecimento de muitos, Dooyeweerd (1894-1977) desenvolveu análises importantes que serviram de base para a fundação da filosofia da tecnologia reformacional na Holanda e também tem sido bastante estudado quando se pensa em interdisciplinaridade, principalmente no que concerne a seu conceito de aspectos modais (ver BORGES, 2019). Dooyeweerd argumentava que o pensamento teórico é caracterizado por uma abstração da riqueza da experiência vivida. A abstração envolve separar partes da realidade de sua conectividade com toda a realidade e analisar essas partes independentemente. A biologia molecular, por exemplo, estuda as funções biológicas num nível molecular, sem levar em consideração os órgãos, que são estudados no campo da fisiologia, ou mesmo a interação de diferentes organismos entre si e com elementos não-vivos de seu ambiente, que é estudada na ecologia. Essa especialização e abstração geram as diversas disciplinas científicas que estudam um elemento a partir de um ponto de vista reduzido.  Assim, uma das grandes críticas de Dooyeweerd é com relação ao reducionismo em que podem recair as diversas disciplinas do conhecimento (DOOYEWEERD, 2010). Cabe ressaltar que ele possuía uma grande apreciação pela ciência e conhecimento teórico; o questionamento recaía na tendência de alguns setores em tentar interpretar toda a realidade a partir de um único aspecto. 

Assim ele desenvolveu a teoria de que certos aspectos se apresentam da seguinte forma:

Fonte: (BASDEN, 2018)


Veja também: Conselho aos filósofos cristãos – Alvin Plantinga


Argumento neste texto que, ao aplicar esses 15 aspectos ao estudo da pandemia do coronavírus, teríamos uma melhor elaboração de políticas públicas para restringir os danos materiais e humanos em decorrência do vírus. Como se pode perceber pela relação acima, e que iremos explorar, esses aspectos podem englobar as vastas áreas do conhecimento humano. Quando examinamos um problema sob esta perspectiva, conseguimos diminuir o reducionismo que o olhar por demais focado em uma só área pode causar; conseguimos analisar a questão que temos à nossa frente de diversas formas e olhares e, assim, ampliamos e aprofundamos a relação com a realidade. Apresento alguns exemplos, sem tentar ser exaustivo, somente para ilustrar a vantagem de se trabalhar a partir dos aspectos modais. A riqueza da teoria de Dooyeweerd pressupõe que se possa ampliar os aspectos para outras análises também.

1. Quantitativo/Aritmético

Começando pelo primeiro aspecto, o quantitativo/aritmético, vemos que, por exemplo, matemáticos e engenheiros da computação de todo o mundo têm trabalhado para compreender a epidemia [1], realizando simulações, elaborando estatísticas e pensando probabilidades de transmissão. Há importantes modelagens computacionais apontando os diferentes cenários possíveis de isolamento [2].

2. Espacial

O segundo aspecto, o espacial, também pode contar com a matemática para auxiliar no sentido de apontar as distâncias seguras. A arquitetura e o amplo ramo da construção civil podem pensar a concepção de espaços públicos e privados para evitar infecção. Como não há certezas quanto à questão de distância seguras, o que podemos é seguir as orientações e procurar evitar proximidades para tentar diminuir o contágio. 

3. Cinético

O aspecto cinético está relacionado ao movimento, e trazer estudiosos para apontar como o vírus se propaga pode auxiliar na elaboração de planos de contingência. Na internet, é possível encontrar simulações de como o vírus se propaga, como exemplificado em um vídeo elaborado por pesquisadores finlandeses, apontando que gotículas liberadas quando alguém tosse pode pairar no ar por vários minutos e viajar ao longo de dois corredores num supermercado. Isso modifica a forma como concebemos os espaços. 

4. Físico

No aspecto físico temos diversos estudos com fundamentação física na área de biologia estrutural, por exemplo. As fontes de radiação síncrotron são ideais para um procedimento chamado cristalografia macromolecular que possibilita a observação das moléculas do vírus, para se analisar sua estrutura e função. Com esse conhecimento em mãos, ficamos mais perto de remédios e vacinas. Lembrando que o Brasil possui uma fonte dessa radiação, o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron em Campinas, São Paulo. 

5. Biológico

O aspecto biológico seria o qualificante no caso do coronavírus, isto é, a função que a qualifica, que a caracteriza. Não há dúvidas que este aspecto é um dos mais importantes, mas, como a teoria de Dooyeweerd aponta, e como temos visto, tratar o vírus somente por esse aspecto é reducionista, não enxerga toda a realidade e, por consequência, trará ações insuficientes. Compreender como o vírus SARS-CoV-2 funciona é fundamental. Organizações de todas as áreas de saúde são movimentadas para tentar entender como o vírus é transmitido, quais os sintomas, como tratar ou evitar. 

6. Psíquico

Uma parte que não deve ser deixada de lado é o aspecto psíquico dos indivíduos. Como todos percebemos diariamente, o medo gerado pela doença tem afetado muitas pessoas psicologicamente [3].Governantes, diversos níveis governamentais, organizações não governamentais e líderes religiosos devem estar atentos para esse efeito colateral e deve-se pensar em políticas públicas para lidar com esse problema. A tecnologia pode ser uma ferramenta dúbia nesse sentido: pode gerar mais pânico, com as fake news, ou pode trazer informação. Essa é uma preocupação que não transparece muito em nossos líderes. 

7. Analítico ou lógico

O aspecto analítico ou lógico nos ajuda a lidar com o vírus trazendo consciência, clareza e conceitos, tornando as abordagens mais racionais. Analisar, teorizar, apresentar taxonomias, estabelecer teoremas e pensar em como as ações fogem da lógica filosófica e científica também é fundamental para estabelecer ações. Sempre levando em consideração que nós nem sempre agimos de maneira lógica. 

8. Histórico ou formativo

O aspecto histórico ou formativo pode trazer à luz maneiras como pandemias foram enfrentadas na história e suas consequências. Apesar de se tratar de contextos diferentes, a história pode trazer lições preciosas. Há inclusive um estudo apontando os efeitos econômicos da pandemia de gripe de 1918 e as implicações para a pandemia atual [4]. Mas há diversos outros do ponto de vista econômico e histórico [5]. 

9. Linguístico

Um elemento que é muito forte em nossa era da informação é a comunicação rápida, mas nem sempre eficiente ou satisfatória. Assim, profissionais que trabalhem o aspecto linguístico podem fazer análises de discurso, para aprimorar a comunicação e para compreender deficiências e equívocos. O trabalho é grande na seara das redes sociais e meios de comunicação no que concerne às fake news. Análises linguísticas em tempo real ou mesmo após pouco tempo combate equívocos e desfaz mitos. Divulgadores da ciência tem um papel aqui também. 

10. Social

No que se refere ao aspecto social temos um grande desafio em nosso país. Problemas sociais, questões de desigualdade, pobreza, acesso a tratamentos e desempregos são assuntos que movimentam todo um amplo grupo de pensadores, gestores e funcionários. Não é um trabalho que deve ser feito solitariamente, sem levar em consideração os outros aspectos, mas também desempenha um papel importante. Políticas sociais precisam ser pensadas para o momento atual, mas também para os próximos meses e anos, porque as consequências terão efeito a longo prazo. 

11. Econômico

Apesar de não ser o único aspecto que se deva levar em consideração no planejamento e execução de projetos com relação à covid-19, o aspecto econômico tem sido colocado em primeiro lugar em muitas discussões. Ele com certeza deve ser discutido, mas também deve-se ponderar sobre os outros aspectos. Este é o inestimável valor de se pensar interdisciplinarmente. Consequências econômicas ocorrerão, mas também outros problemas, psicológicos, emocionais e mortes devem ser trazidos à discussão. Pensar em um plano de ação no campo econômico para mitigar os danos do vírus deve levar em conta as pessoas. Utilitarismos não são uma opção cristã, como comentaremos mais à frente. 

12. Estético

O aspecto estético aparentemente não tem muito lugar quando falamos de um vírus que causa milhões de mortes e pode quebrar economias. Mas o ser humano não é um ser mecânico e somente material. Precisamos do belo para lidar com os dilemas e a dureza da vida. Muitas cidades são feias e tem o potencial de ficarem ainda mais horrendas em decorrência das necessidades de isolamento. Precisamos constituir locais onde a arte, a música e a natureza sejam resgatadas. A mente hipermoderna e acelerada não dá valor ao estético por considerá-lo inútil. Para que gastar dinheiro com arte quando temos outras necessidades? E o ser humano vai enlouquecendo e se tornando um ser mecanizado, autômato e estressado. 

13. Jurídico

No que se refere ao aspecto jurídico é pertinente se pensar e trazer especialistas dessas áreas para as políticas públicas, para que os direitos básicos sejam garantidos e a justiça seja aplicada. Em momentos de crise, de pandemia, deve-se redobrar os cuidados com extrapolações jurídicas. Iniciativas de diversos grupos, de frentes diferentes, são importantes para o equilíbrio do que é importante e do que não é em questões de justiça. Os novos desafios que surgem em um período como o que estamos vivendo trazem para o campo jurídico muitas questões singulares que exigem atenção redobrada. 

14. Ética

Na parte ética também se vê a polarização e a pluralidade de argumentos. Por um lado, temos utilitaristas, que têm a tendência de focar no lado econômico, mas também de outro há o extremo de se pensar que a economia não importa. Precisamos aperfeiçoar nosso cabedal de discussões e pensar em termos tradicionalmente cristãos como o bem comum, a bondade e a solidariedade. Posições comunitaristas são bem interessantes pra se pensar aqui que ponderam sobre essas questões e fazem uma crítica ao liberalismo individualista[6]. Mas não é um campo fácil. Mesmo assim, um governante deve pensar seriamente sobre as implicações de sua decisão ética, e cercar-se ou consultar especialistas nesse campo só ajuda a obter um melhor posicionamento possível.  

15. Pístico ou fideísta

Por fim, temos o aspecto pístico ou fideísta, que não está relacionado somente com a fé religiosa, mas também em como os seres humanos têm certas crenças (nem todas avalizadas) em política, ciência, enfim, em qualquer coisa. A fé desmedida em ciência é um problema que reconhecemos sob o nome de cientificismo. Mas a fé em um político ou um líder também é. O cristão ou o filósofo deve acessar a realidade com um viés crítico, sabendo que todo conhecimento e posicionamento é passível de erro e melhoramento. Como cristãos, devemos confiar em Deus, mas como seres racionais devemos apontar as formas como as crenças podem ser melhor definidas e aperfeiçoadas. Devemos ser cuidadosos com promessas de soluções miraculosas e imediatistas. 

Devemos ter esperança e depositar nossos esforços em aprimorar as ferramentas que Deus nos deu e, como co-criadores, melhorar esse mundo. A ciência trouxe melhorias para a vida humana indescritíveis. Mas o descuido com outras esferas da realidade trouxe algo que não conseguimos lidar com todo o progresso que achamos que temos. O descaso com a criação tem trazido problemas que empurramos para as próximas gerações resolverem. 

Oro para que logo encontremos a cura para esse vírus. Mas se não mudarmos a nossa visão do mundo, a maneira como nos relacionamos com a realidade, prestando atenção em todos os seus aspectos, algo com que não contávamos sempre surgirá. 

Como afirmam Leo Pessini e Christian Barchifontaine, retirando ideias da bioética: 

Temos de ser mais conectados e inclusivos, reunindo-nos com os outros e trabalhando em colaboração com todos, para conseguirmos uma perspectiva holística sobre tudo o que está acontecendo. É preciso derrubar as barreiras entre setores e profissões para que possamos forjar parcerias mais eficazes ao nos engajarmos ao poder das redes. No mundo de rupturas e rápidas mudanças de hoje, o pensamento de silo e a visão fixa do futuro é algo fossilizante. Para operar em um ambiente cada vez mais complexo e destrutivo, requer-se agilidade intelectual. Em termos práticos, isso significa que os líderes têm de superar a mentalidade de silo. A abordagem aos problemas e desafios tem que ser holística, flexível e adaptável, e continuamente integrando diferentes interesses e opiniões (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2018, p. 139).


Conclusão

Analisando a teoria dos aspectos modais de Dooyeweerd (de uma maneira não-exaustiva) penso que se um governante tivesse uma equipe verdadeiramente multidisciplinar (com componentes de várias disciplinas) e interdisciplinar (com diálogo entre as várias disciplinas) para lidar com o fenômeno da covid-19, as chances de um país se sair melhor seriam aumentadas exponencialmente, porque o diálogo entre diferentes disciplinas pode apontar falhas, limitações e potencialidades na tomada de decisões. Longe de um cientificismo acrítico, um governo que levasse em consideração os princípios de Dooyeweerd iria abraçar a multiplicidade do conhecimento humano e tomaria os insights das diversas áreas para reduzir os impactos negativos. Somos seres limitados e falhos, e reconhecer isso em humildade é o primeiro passo para a sabedoria.


Leia também: Por que tantos cientistas desprezam a Filosofia?


Notas

 1. Há páginas que coletam informações sobre trabalhos de grupos de matemática sobre o assunto: http://iciam.org/mathematics-covid-19; também: https://www.sbmac.org.br/covid-19/
2. https://www.ime.usp.br/~patriota/Covid19.html
3. https://www.bbc.com/future/article/20200401-covid-19-how-fear-of-coronavirus-is-changing-our-psychology
4. https://www.stlouisfed.org/~/media/files/pdfs/community-development/research-reports/pandemic_flu_report.pdf
5. Uma busca com os termos “influenza”, “1918” e “economics” no google retornou milhares de resultados. 
6. https://theconversation.com/coronavirus-reminds-americans-that-pursuit-of-happiness-is-tied-to-the-collective-good-133599?fbclid=IwAR3wIE46_d1iCjOjW3erGxBvCWvzCi1w2d9WkNLa62LMapihrujvkO0hd8E

Referências

BASDEN, A. Examples of Aspectually-Qualified ThingsThe Dooyeweerd pages, 18 jun. 2018. Disponível em: <http://dooy.info/qualasp.html#things>
BORGES, L. A. Pensar a tecnologia interdisciplinarmente: a utilização metodológica dos aspectos modais. Anais do Vi simpósio nacional de ensino de ciência e tecnologia, 2019. 
DOOYEWEERD, H. No crepúsculo do pensamento ocidental. São Paulo: Hagnos, 2010. 
GOLFO, M. On the status of technology in Heidegger’s “Being and Time”. Studia Philosophiae Christianae, v. 50, n. 1, p. 79–110, 2014. 
GRUSZCZYŃSKI, R.; VARZI, A. C. Mereology then and now. Logic and Logical Philosophy, v. 24, n. 4, p. 409, 11 dez. 2015. 
LATOUR, B. An inquiry into modes of existence: an anthropology of the moderns. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2013. 
LAWSON, C. An Ontology of Technology: Artefacts, Relations and Functions. Techné, v. 12, n. 1, p. 48–64, winter 2008. 
MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2015. 
PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C. Bioética, Frankestein e a aposta de um futuro sustentável. São Paulo: Edições Loyola, 2018. 
SIMONDON, G. On the mode of existence of technical objects. Minneapolis, MN: Univocal Pub, 2016. 
VANDERBURG, W. H. Our war on ourselves: rethinking science, technology, and economic growth. Toronto: University of Toronto Press, 2011. 
VERBEEK, P.-P. What things do: Philosophical reflections on technology, agency, and design. University Park, Pa: Pennsylvania State University Press, 2005.
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