Este artigo é uma análise feita sob o olhar do Prof. Jean Francesco ao livro A Evolução e a Queda, editado por William T. Cavanaugh e James K. A. Smith. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2017. (xxix + 231 páginas). Traduzido por Tiago Garros e lançado pela Associação Brasileira de Cristãos na Ciência e Editora Thomas Nelson Brasil

A Evolução e a Queda é uma coleção de ensaios fruto de um experimento de três anos que reuniu uma equipe multidisciplinar e ecumênica de importantes estudiosos com o objetivo de discernir as relações entre a teoria da evolução, a queda e o pecado original. A problemática do livro é: “se a humanidade emergiu de primatas não humanos – como as evidências genéticas, biológicas e arqueológicas parecem sugerir – então quais são as implicações para o relato tradicional das origens da teologia cristã, incluindo tanto a origem da humanidade quanto a origem do pecado?” (p. xviii). O argumento central dos editores é o de que a tensão entre ciência evolutiva e convicções teológicas cristãs devem ser superadas à luz de uma “imaginação teológica calcedoniana” – que defendeu as duas naturezas de Cristo unidas em uma pessoa – ao invés de uma visão restrita de que a ciência, por si só, poderia expressar a verdade sobre o mundo e a realidade, reduzindo assim o cristianismo a um deísmo funcional (p. xvii).

Recentemente, Denis O. Lamoureux negou tanto a historicidade de Adão quanto a doutrina do pecado original. Ele escreve: “Todas as linhas de evidência bíblica e científica apontam para apenas uma conclusão: Adão nunca existiu… Ninguém hoje acredita em um firmamento, um mar celestial, um universo de três camadas ou um mundo geocêntrico. Nem devemos… acreditar na historicidade de Adão e, como consequência, na doutrina do pecado histórico.” ¹ Em resposta a tais declarações, os editores perguntam:

E se pensássemos no nosso momento não como um momento “galileu”, mas como uma oportunidade “calcedônica”? Para alguns – muitas vezes aqueles que colocam a questão em termos “galileus” – a escolha parece clara: se a humanidade surgiu como resultado da evolução humana, então não poderia ter existido um Adão. E talvez ainda mais importante: se a humanidade emerge dos primatas, então parece que nunca poderia ter havido uma “boa” criação ou “retidão original” – o que também significaria que não houve uma “queda” de uma inocência anterior. Se vamos afirmar um relato evolucionário das origens humanas, parece que precisamos desistir da doutrina da origem do pecado e do pecado original (p. xviii).

Este volume difere de outras obras que tentam superar a tensão contínua entre o cristianismo e a ciência evolucionária por pelo menos três razões. Em primeiro lugar, é um livro escrito por cristãos que estão engajados em suas tradições cristãs, principalmente católicos romanos e protestantes, e dirigido a um público confessional cristão. Em segundo lugar, este trabalho defende uma epistemologia que rejeita criteriosamente tanto o cientificismo quanto uma abordagem cristã que apenas reafirma formulações passadas da tradição. Em terceiro lugar, este volume se propõe a refletir sobre esta interface criação-evolução integrando os marcadores essenciais da tradição cristã e as descobertas da ciência evolucionária sem negar nenhum deles – como no caso das duas naturezas de Cristo definidas no Concílio de Calcedônia (451 AD) .

O livro é dividido em três partes que cobrem (1) as questões e desafios em jogo na conversa entre a teologia cristã e a ciência, (2) a análise do Antigo e Novo Testamentos e os relatos tradicionais que nos ajudam a construir uma imaginação teológica, e (3) algumas implicações culturais da queda que vão além de uma consideração superficial das origens.

Ao longo do livro, os leitores encontrarão contribuições valiosas para biologia, filosofia, teologia, história e política, tudo a partir de uma perspectiva cristã. Destaco o excelente artigo escrito por Darrel Falk (capítulo 1), que apresenta o status quaestionis das origens humanas de acordo com a perspectiva evolucionária. Falk observa que o registro fóssil continua a ser visto como uma explicação limitada das origens humanas, pois a história que os fósseis contam é “limitada pelo fato de que eles são inertes – cada conjunto de registros fósseis é como uma foto de um passado distante.” No entanto, ele sugere que “nossos genes fornecem, não uma foto, mas uma história antiga em movimento” (8). Falk também destaca que a maioria dos cientistas hoje considera a seleção natural por si só incapaz de explicar o surgimento da vida humana no universo. Eles argumentam que, junto com a seleção natural, as contingências históricas desempenharam um papel significativo de tal forma que sem elas seria virtualmente impossível que a vida surgisse (p. 15-20). Falk então sugere que o que os cientistas chamam de “sorte” é “a proposta teológica mais significativa que emerge das ciências biológicas hoje” (p. 21). Ele afirma: “O conhecimento adquirido a partir da fronteira científica abre a oportunidade para um novo conjunto de ferramentas baseadas em uma suposição diferente: a providência divina existe” (p. 22).

No capítulo 3 James K. A. Smith destaca que a reformulação mítica do pecado original tem se mantido como uma posição dominante nos discursos atuais entre a teologia cristã e relatos evolutivos. Smith pergunta: “Seria a queda apenas um mito para obtermos alguma luz sobre ‘a condição humana’, uma história recebida para obtermos algo da nossa pecaminosidade – ‘pecado original’ – em vez de um relato da origem do pecado?” (p. 49). Para ele, esse espírito revisionista carece de imaginação teológica e falha em avaliar o que está em jogo na doutrina tradicional da queda. Smith está certo quando argumenta que qualquer encontro com a ciência evolucionária com o objetivo de modificar a tradição cristã precisará ser responsável pelo enredo central da criação, queda, redenção e consumação (p. 51). Quando qualquer ato deste drama redentor sai de cena, o cristianismo perde não apenas um pedaço da história, ele perde todo o seu significado.

Por outro lado, parece que Smith e alguns criacionistas-evolucionários ²se equivocam um pouco na interpretação que fazem da metáfora dos dois livros (cf. Confissão Belga, artigo 2), insistindo que as descobertas do livro da natureza não podem conflitar com o livro da Escritura (p. 55, 61). Em minha análise, essa metáfora não pode ser empregada para justificar quanta concordância existe entre o que a Bíblia e a ciência nos dizem sobre a natureza do mundo físico. Mary L. VandenBerg corretamente sugere que “a harmonia dos dois livros reside no fato de que ambos os livros oferecem ao leitor conhecimento do autor, conhecimento suficiente de Deus, de fato, para deixar alguém sem desculpa se afastando de Deus.”³ Peter Harrison (capítulo 10) vai na mesma direção, alertando sobre o perigo de tentar artificialmente estabelecer relações pacíficas entre ciência e religião (p. 226). Dado o caráter provisório da ciência, Harrison recomenda que sejamos prudentes, como Agostinho, em nosso compromisso com teorias científicas específicas.

No capítulo 5, Joel B. Green conclui que “as Escrituras não exigem a crença em um primeiro casal humano, Adão e Eva, ou nas noções tradicionais de uma ‘queda’ histórica, ou na visão tradicional da transmissão genética do pecado” (p. 116) . Embora eu aceite a rejeição de Green da noção de transmissão genética, considero problemática e apressada a rejeição do casal histórico e da origem do pecado. A tendência de separar a teologia da história acaba por reduzir a narrativa bíblica a “verdades espirituais” atemporais e arquetípicas que são desvestidas de sua realidade histórica. Devemos resistir a essa tentação teológica e manter unidas doutrina e história. Afinal, teologia não é construída no vácuo, mas é a gramática do drama histórico da redenção que culmina na encarnação, morte e ressurreição de Cristo.

Apesar de algumas limitações, A Evolução e a Queda é uma contribuição inestimável para a discussão criação-evolução dentro do cristianismo. Ao contrário de alguns livros que discutem o tema apenas no nível acadêmico, – e normalmente o fazem de um ponto de vista revisionista – este trabalho leva a sério tanto as doutrinas centrais do cristianismo quanto os desafios evolutivos contemporâneos. No geral, o volume é muito agradável de ler, tem uma proposta criativa para superar a tensão criação-evolução, e introduz as questões em jogo na interação cristã com a ciência evolutiva de forma rigorosa.

Jean Francesco A. L. Gomes

Doutorando (PhD) em Teologia Sistemática pelo Calvin Theological Seminary


Notas

[1] Denis O. Lamoureux, “Beyond Original Sin: In a Theological Paradigm Shift Inevitable? Perspectives on Science and Christian Faith 67 (2015): 35-49, esp. 40, 46.

[2] Deborah B. and Loren D. Haarsma, Origins: A Reformed Look at Creation, Design, and Evolution (Grand Rapids, MI: Faith Alive, 2007), 58-59.

[3]Mary L. VandenBerg, “What General Revelation Does (and Does Not) Tell Us,” Perspectives on Science and Christian Faith 62, no. 1 (2010): 16-24, esp. 20.

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