Por Ronald L. Numbers

O maior mito na história da ciência e religião é de que elas estão em constante conflito. Ninguém tem mais responsabilidade pela promoção dessa ideia do que dois polemistas norte-americanos do século 19: Andrew Dickson White (1832-1918) e John William Draper (1811-1882). White, jovem presidente da Universidade de Cornell, passou a acreditar no conflito entre religião e ciência após críticos religiosos o taxarem de infiel por, como ele dizia, tentar criar em Ithaca “um refúgio para a Ciência – onde a verdade deve ser buscada pela verdade, não esticada ou decepada precisamente para se moldar à religião revelada”. Em uma noite de inverno em dezembro de 1869 ele caminhou para o púlpito de um salão em Cooper Union na cidade de Nova York, pronto para ferir seus inimigos com a história, dar a eles “uma lição que jamais esqueceriam”. Em palestra melodramática com título “The Battle-Fields of Science” [Os campos de batalha da ciência], o historiador levantou “alguns dos campos de batalha mais difíceis” da “grande guerra” entre ciência e religião. Ele contou sobre Giordano Bruno sendo “queimado vivo como monstro de impiedade”, e Galileu sendo “torturado e humilhado como o pior dos descrentes” e muito mais, terminando com os mais recentes mártires científicos, a Universidade de Cornell e seu presidente sitiado. Como White deve ter antecipado, sua palestra levantou ainda mais controvérsia, iniciando, de acordo com um observador, “instantâneo protesto e oposição”. Ao longo dos 25 anos seguintes, White expandiu sua palestra em um enorme trabalho de dois volumes, A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom [A história do conflito entre a ciência e teologia na cristandade] (1896), traduzido para muitas línguas e frequentemente reimpresso até os dias de hoje. Nele, como foi notado por Elizabeth Cady Stanton, ele mostrou que “a Bíblia tem sido a maior pedra no caminho do progresso”.¹

Draper foi igualmente influente quando escreveu History of the Conflict Between Religion and Science [A história do conflito entre religião e ciência] (1874). Como físico, químico e historiador de renome, Draper de modo geral isentou o protestantismo e a Igreja Ortodoxa Oriental de crimes contra a ciência, ao passo que escoriava o catolicismo romano. Ele assim fazia, como escreveu, “em parte porque seus adeptos compõem a maioria da cristandade, em parte porque suas demandas são as mais pretensiosas, e em parte porque habitualmente buscou impor estas demandas pelo poder civil”. Além de relatar a antiga oposição da igreja ao progresso científico, ele ridicularizou a então recentemente promulgada doutrina da infalibilidade papal, que ele atribuía a homens de “pecado e vergonha”. Porém, ele nunca mencionou o que provavelmente foi o fator que mais o incomodou: sua antipatia com relação à própria irmã, Elizabeth, que se converteu ao catolicismo e, por um tempo, morou com os Drapers. Quando uma das crianças Draper, William, de oito anos, estava próxima da morte, tia Elizabeth escondeu seu livro preferido, um devocional protestante – e não o devolveu até após a morte do menino. O pai em luto a expulsou da casa, sem dúvida culpando o Vaticano pelo seu comportamento não cristão e dogmático. A história de Draper de “teólogos ferozes” perseguindo os pioneiros da ciência “com a Bíblia em uma mão e uma tocha na outra”, como um crítico caracterizou sua história, provocou, com razão, diversos contra-ataques. O norte-americano convertido ao catolicismo Orestes Brownson, que descreveu o livro como “um pano de mentiras do início ao fim”, mal conseguia conter sua fúria. “Mil roubos a mão armada ou mil assassinatos a sangue frio”, disse enfurecido, “seriam uma leve ofensa social comparado com a publicação de um livro como este”.²

Discussões sobre a relação entre “ciência” e “religião” começaram no início do século 19, quando estudantes da natureza começaram a se referir ao seu trabalho como ciência ao invés de filosofia natural (ou história natural). Antes deste tempo havia apenas ocasionais expressões de preocupação sobre a tensão entre fé e razão, mas ninguém opunha religião contra a ciência e vice-versa.³ Um dos primeiros, se não o primeiro livro na língua inglesa com as palavras “ciência” e “religião” no título foi publicado em 1823: o popular livro de Thomas Dick, The Christian Philosopher [O filósofo cristão]; ou The Connection of Science and Philosophy with Religion [A ligação da ciência e filosofia com a religião]. Em meados do século “ciência e religião” se tornavam tropo literário, e durante as décadas de 1850 e 1860 diversas faculdades e seminários norte-americanos estabeleceram cadeiras universitárias dedicadas à demonstração (e preservação) da harmonia entre a ciência e a religião revelada.⁴

Apesar de alguns pensadores liberais, particularmente Thomas Cooper do South Carolina College, denunciarem a religião como “a grande inimiga da ciência”, norte-americanos na época da guerra civil, especialmente a liderança eclesiástica, se preocupavam mais com a ameaça da ciência ao cristianismo ortodoxo do que com barreiras religiosas à ciência. No segundo terço do século 19 alguns observadores começaram a suspeitar que “toda nova conquista alcançada pela ciência envolvia a perda de um domínio da religião”. Desafios científicos aos primeiros capítulos da Bíblia eram especialmente perturbadores. Durante as três décadas entre 1810 e 1840, homens da ciência obtiveram sucesso ao promover a substituição da visão de criação sobrenatural do sistema solar pela hipótese nebular, expandindo a história da Terra de 6 mil anos apenas para milhões de anos, e reduzindo o dilúvio de Noé a um evento regional no Oriente Próximo. Muitos cristãos prontamente ajustaram sua leitura da Bíblia para acomodar tais descobertas, mas alguns literalistas bíblicos acreditaram que os geólogos da época eram excessivamente liberais em relação à palavra de Deus. O Reverendo Gardiner Spring, por exemplo, se ofendia com os esforços científicos para explicar a criação, que ele via como “o grande milagre”, incapaz de ser explicado cientificamente. “A colisão não é entre a Bíblia e a natureza”, declarou, “mas entre a Bíblia e filósofos naturais”.⁵

Naquele tempo não era incomum que homens da ciência se engajassem em exegese bíblica enquanto impediam que teólogos e clérigos monitorassem a ciência. Esta prática, juntamente com a crescente marginalização de teólogos no empreendimento científico, revoltou Charles Hodge, o mais eminente teólogo calvinista em meados do século 19 na América do Norte. Apesar de continuar venerando homens da ciência que revelavam “as maravilhosas obras de Deus”, no fim da década de 1850 ele estava cada vez mais frustrado com a tendência de tratarem teólogos que se expressavam em assuntos científicos como “invasores” que não deveriam se intrometer. Ele atribuía a crescente “alienação” entre homens da ciência e homens religiosos em parte à “pretensão de superioridade” dos homens da ciência, e sua prática de estigmatizar os críticos religiosos como “mesquinhos, fanáticos, mulheres velhas, adoradores da Bíblia etc.”. Ele lamentava a falta de respeito frequentemente mostrada a homens religiosos, que foram instruídos pelos seus colegas cientistas a pararem de se intrometer na ciência, enquanto eles menosprezavam crenças e valores religiosos. Hodge tinha a preocupação de que a ciência, sem a religião, estivesse se tornando “satânica”. Ele não tinha dúvida que a religião estava em uma “luta pela própria vida contra um grande grupo de homens da ciência”.⁶

O crescimento da ciência “infiel” – da geologia e cosmologia à biologia e antropologia – fez com que muitos cristãos, tanto conservadores quanto liberais, se sentissem sob ataque. De acordo com o intelectual sulista George Frederick Holmes, “A luta entre a ciência e a religião, entre a filosofia e a fé, se prolonga há séculos; mas é apenas nos anos recentes que a divisão tem se tornado tão aberta e reconhecida a ponto de ser declarada por muitos como irreconciliável”. Pior do que isso, até as classes trabalhadores se uniam à luta. Como um escritor britânico notou em 1852, “A ciência não é mais uma abstração sem vida voando acima das mentes da multidão. Ela desceu à Terra. Ela se mistura com os homens. Ela penetra nossas mentes. Ela entra em nossos espaços de trabalho. Ela corre adiante com o ferro cursor dos trilhos”.⁷

Os debates sobre A Origem das Espécies (1859) de Charles Darwin, onde o naturalista britânico tentou “derrubar o dogma de criações separadas” e estender o domínio da lei natural ao mundo orgânico, sinalizou uma mudança de ênfase. Cada vez mais os cientistas, como estavam sendo chamados, expressavam ressentimento em agir como serviçais da religião. Um após o outro pediram por liberdade científica, mas também pela subordinação da religião – e a reescrita da história com a religião como vilã. O discurso mais inflamado veio do físico Irlandês John Tyndall (1820-1893), que em sua fala em Belfast, 1874, como presidente da Associação Britânica pelo Avanço da Ciência, exclamou:

A inexpugnável posição da ciência pode ser descrita em poucas palavras. Nós reivindicamos da teologia, e arrancar-lhe-emos, o domínio completo da teoria cosmológica. Todos os esquemas e sistemas que infringem no domínio da ciência devem, contanto que assim o façam, submeter-se ao seu controle, e abrir mão de todo pensamento de controlá-la. Agir de outra forma provou ser desastroso no passado, e é simplesmente insensato nos dias de hoje.

Dois anos depois Tyndall escreveu um laudatório prefácio para uma edição britânica do The Warfare of Science [O conflito da ciência] de White. Com tal endosso, a tese do conflito estava no caminho para se tornar o dogma histórico de seu tempo, pelo menos entre intelectuais buscando liberdade da religião. ⁸

Historiadores da ciência sabem há anos que os relatos de White e Draper eram mais propaganda do que história.⁹ (Um mito oposto, que o cristianismo sozinho deu à luz a ciência moderna, é descartado no Mito 9.) Porém, esta mensagem raramente escapa da torre de marfim. O público secular, se é que pensa nessas questões, “sabe” que a religião organizada sempre se opôs ao progresso científico (prova são os ataques a Galileu, Darwin e Scopes). O público religioso “sabe” que a ciência liderou a corrosão da fé (através do naturalismo e antibiblicismo). Para dar o primeiro passo na direção da correção destas falsas percepções devemos dissipar os velhos mitos que continuam se passando por verdades históricas. Nenhum cientista, até onde sabemos, perdeu a vida por suas visões científicas, apesar de que, como veremos no Mito 7, a Inquisição Italiana incinerou o copernicano Giordano Bruno no século 16 por suas noções teológicas heréticas. 

Diferente dos mestres criadores de mitos White e Draper, os autores desse livro não têm nenhum interesse em desonrar a ciência ou a teologia. Quase metade (doze dos 25) se identifica como agnóstico ou ateu (ou seja, não creem em religião). Entre os outros treze estão cinco protestantes históricos, dois evangélicos protestantes, um católico romano, um judeu, um muçulmano, um budista – e dois cujas crenças não se encaixam em nenhuma categoria convencional (incluindo um piedoso spinozano¹⁰). Mais da metade dos que não creem, inclusive eu, foram criados em lares cristãos devotos – alguns fundamentalistas ou evangélicos – mas posteriormente perderam sua fé. Não sei o que concluir deste fato, mas suspeito que nos diz algo sobre por que nos importamos tanto com o esclarecimento dos fatos.

Uma palavra final sobre o uso do termo mito: Apesar de alguns dos mitos que buscamos desconstruir terem ajudado a dar sentido à vida de quem os abraçou, não usamos o termo em seu sentido acadêmico sofisticado, mas como se usa em uma conversa cotidiana – para designar uma falsa afirmação.


  1. White, “Battle-Fields of Science”, 4; Charles Kendall Adams, “Mr. White’s ‘Warfare of Science with Theology”, Forum (setembro 1896): 65-78, em 67 (protesto); Elizabeth Cady Stanton, “Reading the Bible in the Public Schools,’’ The Arena 17 (1897): 1033-37, em 1034. De tempos em tempos White escrevia “novos capítulos” para a Popular Science Monthly, e em 1876 ele lançou um pequeno livro, The Warfare of Science (Nova York: D. Appleton, 1876). Duas décadas depois ele publicou A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom, 2 vols. (New York: D. Appleton, 1896). White foi convencido a substituir “teologia dogmática” por “religião” por seu pesquisador associado; veja Henry Guerlac, “George Lincoln Burr,’’ Isis 34 (1944): 147-52. A melhor história da tese do conflito permanece sendo a de James R. Moore, The Post-Darwinian Controversies: A Study of the Protestant Struggle to Come to Terms with Darwin in Great Britain and America, 1870-1900 (Cambridge: Cambridge University Press, 1979), parte 1, 17-122; consultar também David C. Lindberg e Ronald L. Numbers, “Beyond War and Peace: A Reappraisal of the Encounter between Science and Religion,’’ Church History 55 (1986): 338-54.

  1. Draper, History of the Conflict, x-xi (catolicismo), 225-26 (infalibilidade); Donald Fleming, John William Draper and the Religion of Science (Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 1950), 31 (Elizabeth), 129 (conjunto); revisão do History of the Conflict between Religion and Science, por John William Draper, em Brownson’s Quarterly Review, último ser. 3 (1875): 145 (mentiras); revisão do History of the Conflict between Religion and Science, de John William Draper, em Brownson’s Quarterly Review, último ser. 3 (1875): 153-73, em 169 (assassinatos). 

  1. Veja Ronald L. Numbers, “Aggressors, Victims, and Peacemakers: Historical Actors in the Drama of Science and Religion”, em The Science and Religion Debate: Why Does It Continue? (New Haven, Conn.: Yale University Press). 

  1. Peter Harrison, “‘Science’ and ‘Religion’: Constructing the Boundaries”, Journal of Religion 86 (2006): 81-106. Consultar também James Moore, “Religion and Science”, em The Cambridge History of Science, vol. 6, ed. Peter Bowler e John Pickstone (Cambridge: Cambridge University Press, em impressão); e Jon H. Roberts, “Science and Religion”, in Wrestling with Nature: From Omens to Science, ed. Peter Harrison, Ronald L. Numbers e Michael H. Shank (Chicago: University of Chicago Press).

  1. Thomas Cooper para Benjamin Silliman, 17 de dezembro de 1833, citado em Nathan Reingold, ed., The Papers of Joseph Henry, vol. 2 (Washington, D.C.: Smithsonian Institution Press, 1975), 136; “Science and Religion”, Boston Cultivator 7 (1845): 344 (nova conquista); Gardiner Spring para Benjamin Silliman, n.d., citado em Francis C. Haber, The Age of the World: Moses to Darwin (Baltimore: Johns Hopkins Press, 1959), 260-63.

  1. Ronald L. Numbers, “Charles Hodge and the Beauties and Deformities of Science”, em Charles Hodge Revisited: A Criticai Appraisal of His Life and Work, ed. John W. Stewart e James H. Moorhead (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 2002), 77-101, de onde este relato é extraído. Este artigo é publicado novamente no capítulo 5 em Ronald L. Numbers, Science and Christianity in Pulpit and Pew (New York: Oxford University Press, 2007). 

  1. [George Frederick Holmes], “Philosophy and Faith”, Methodist Quarterly Review 3 (1851): 185- 218, na 186; James A. Secord, Victorian Sensation: The Extraordinary Publication, Reception, and Secret Authorship of Vestiges of the Natural History of Creation (Chicago: University of Chicago Press, 2000), 522.

  1. Charles Darwin, The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex, 2 vols. (New York: D. Appleton, 1871), 1:147 (derrota), 2:372 (quadrúpede); Ronald L. Numbers, Darwinism Comes to America (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1998), 31 (terremoto); John Tyndall, “The Belfast Address”, em Fragments of Science, 6th ed. (New York: D. Appleton, 1889), 472-534, na 530; Andrew Dickson White, The Warfare of Science, com prefácio do professor Tyndall (Londres: H. S. King, 1876). Para contexto, ver Frank M. Turner, “The Victorian Conflict between Science and Religion: A Professional Dimension”, Isis 69 (1978): 356-76.

  1. Veja Moore, The Post-Darwinian Controversies; David C. Lindberg e Ronald L. Numbers, eds., God and Nature: A History of the Encounter between Christianity and Science (Berkeley: University of California Press, 1986); John Hedley Brooke, Science and Religion: Some Historical Perspectives (Cambridge: Cambridge University Press, 1991); David C. Lindberg e Ronald L. Numbers, eds., When Science and Christianity Meet (Chicago: University of Chicago Press, 2003).

  1. Alguém simpático às visões teológicas do filósofo holandês Baruch Spinoza (1632-1677). [N. R.]

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