Teria a teleologia entrado em colapso por meio da tecnologia? 

por Fernando Pasquini

A atividade cultural do homem sempre esteve prevista e foi ordenada na criação (Gênesis 1.27). Assim, a pergunta acerca da razão e propósito no Universo também deveria abarcar a razão e propósito de nossa ação na cultura.

Nos últimos séculos, diversos autores alegaram que, em nossa civilização atual, é inexistente, ou quase inexistente, a razão e o propósito na atividade humana. Alexis de Tocqueville foi um dos primeiros a notar que a vida moderna envolvia uma agitação e dinamismo sem fim em direção a nada [1]. Jacques Ellul prosseguiu com a ideia, notando que “nós esquecemos nossos propósitos comuns, nós temos enormes meios à nossa disposição, e colocamos em operação máquinas prodigiosas para chegar a lugar nenhum.” [2] Para ele, “nossa civilização é, em primeiro lugar, uma civilização de meios; na realidade da vida moderna, os meios, ao que parece, são mais importantes do que os fins.” [3]

Teria a teleologia entrado 

em colapso por meio 

da tecnologia?

A pergunta, portanto, é: teria a teleologia entrado em colapso por meio da tecnologia? Talvez esta seja uma pergunta a qual não devamos responder com um ‘sim’ ou ‘não’ absolutos. Como boa parte da obra de Ellul, ela é mais uma voz profética do que uma constatação. A tendência está aí. Cabe-nos prosseguir ignorando-a ou nos arrepender. E a despeito de sua reputação como pessimista ou anti-tecnologia, Ellul cria numa saída, como veremos. Mas antes de procurarmos por ela, precisamos ter a visão clara da situação e desfazermonos das falsas soluções.

Por que chegamos aqui? O filósofo Charles Taylor sugere que vivemos em tempos de “liberalismo da neutralidade”. Um de seus princípios básicos é de que uma sociedade liberal precisa ser neutra a respeito de questões sobre o que constitui uma vida boa. A vida boa é o que cada indivíduo busca, à sua própria maneira, e o governo precisaria de imparcialidade, bem como no que diz respeito a todos os cidadãos, caso tomasse partido nessa questão [4]. Ou seja, a sociedade liberal não pode impor a qualquer individuo como ele deve buscar os seus próprios fins, e providenciá para ele apenas os meios.

O importante aqui é que tanto Taylor como o filósofo da tecnologia, Albert Borgmann, notam que tudo isso depende grandemente da tecnologia. Para garantir neutralidade, a sociedade moderna precisa promover infra-estruturas tecnológicas que permitam um (suposto) acesso maior e universal a vários tipos de comodidades. 

No entanto, nós sabemos que, no fundo, estas infra-estruturas e comodidades não são tão neutras quanto parecem, e isto parece consistir um problema fundamental e insolúvel dentro liberalismo. Borgmann ressalta:

“A teoria da democracia liberal tanto precisa como teme a tecnologia moderna. Ela precisa da tecnologia porque esta última promete fornecer as oportunidades neutras necessárias para estabelecer uma sociedade justa e deixar em aberto a questão da vida boa. Ela teme a tecnologia porque esta pode, de fato, entregar mais do que prometeu, ou seja, uma versão definida de uma boa sociedade e, mais importante ainda, uma que seja ‘boa’ em um sentido dúbio.” [5]

Langdon Winner captura muito bem esta não-neutralidade tecnológica ao notar que a tecnologia promove um tipo de “adaptação reversa”, ou seja, o homem acaba ajustando seus fins de forma a se adaptar aos meios disponíveis [6]. De repente, ter o mundo nas mãos significa assinar o último plano de banda larga. Os fins humanos ficam presos a determinadas soluções e sistemas tecnológicos que passam a integrar toda a sociedade. Ninguém consegue trabalhar sem um smartphone com Whatsapp.

No entanto, na falta de uma direção normativa clara, ou um horizonte de sentido (como coloca Taylor) para o desenvolvimento tecnológico, acaba culminando numa visão de liberdade na qual qualquer coisa pode ser produzida – a ética implicitamente pregada nos cursos de engenharia e tecnologia em geral: “perceba um problema qualquer, projete um dispositivo qualquer, coloque-o à venda para uma pessoa qualquer. Prolifere os meios. Os fins são genéricos. Você pode, então você deve.” 

Mas, então, como recuperar este horizonte de sentido? Será que deixar de buscar neutralidade implicaria aquilo que tanto tememos: Estados e empresas explicitamente dizendome quais são os meus fins? Como disse, há uma saída, e ela envolve, entre outras coisas, penetrar nas fontes morais do ideal de neutralidade e observar a partir de que ponto ele deixou de funcionar. Charles Taylor mostra que o horizonte de sentido só pode ser definido dialogicamente entre indivíduos e, por que não, juntamente com as próprias circunstâncias da vida [7]. Isso significa que o indivíduo tem voz, mas não tem voz absoluta, o que nos livra dos extremos do coletivismo e do individualismo. Finalidades são reconhecidas e preservadas em comunidades de diálogo, e contextualizadas em um engajamento com a realidade.

Isso significa o indivíduo tem

voz, mas não tem voz 

absoluta, o que nos livra dos 

extremos do coletivismo

e do individualismo.

lbert Borgmann nota como paradigma tecnológico atual é dominado por dispositivos que têm como objetivo fornecer comodidades descontextualizadas e desengajadas, e que, por isso mesmo, criam ambiguidades na vida individual e social. Na tentativa de se obter disponibilidade universal por meio dos dispositivos, acabamos por ignorar aquilo que o autor chama de coisas e práticas focais, capazes de nos orientar no tempo e no espaço. Mas é no “mundo real” das contingências naturais e sociais que encontramos a operação da graça de Deus e sua providência, acima de nossos desejos e aspirações, que sempre nos surpreende mostrando-nos meios e fins muito além do que cremos ser o melhor para nós.

Isso nos leva a uma constatação importantíssima: nas coisas e práticas focais, meios e fins andam juntos. Uma lareira não é simplesmente um “meio” para o calor, mas, como diriam os filósofos da arte, um “fim em si mesmo”. E é aqui que Jacques Ellul nota que isso se trata de um ponto teológico e, mais especificamente, escatológico: “Nosso ponto de partida é que, na obra de Deus, os fins e os meios estão juntos. […] Jesus Cristo, em sua encarnação, aparece como o meio de Deus para a salvação dos seres humanos e para o estabelecimento do reino de Deus. Mas onde Jesus Cristo está, ali está também a salvação e o reino. […] O fim, seu reino, que virá no fim dos tempos, já está aqui hoje, quando o meio de Deus (o único mediador!) está presente!” [8]

Em outras palavras, a solução encontra-se na tensão entre o já e o ainda não da escatologia cristã. É como se dispositivos fossem simplesmente alegóricos (no sentido de que a matéria em si não importa, apenas sua instrumentalidade) e coisas e práticas focais, tipológicos ou, talvez, sacramentais. E, uma vez que tudo ganha um horizonte sacramental, um universo inteiro de coisas que desprezaríamos como meios ineficientes passa a ganhar um valor à luz da eternidade.

Isso também implica que “o que importa não são nossos instrumentos e instituições, mas nós mesmos, porque somos nós mesmos os instrumentos de Deus. Nós, como igreja, precisamos representar diante do mundo esta unidade de fim e meio, da qual Jesus Cristo é a garantia. Pois os seres humanos não são aqueles que estabelecem o fim como tal ou que o realizam. É Deus quem o determina e o realiza.” [9, ênfase minha]

Em Deus, na pessoa de Cristo e pela obra do Espírito, entramos em contato com a teleologia que nos falta, o fim que está presente aqui e agora. Isso pode, inclusive, direcionar a tecnologia de forma adequada. “Toda técnica se torna morta quando não é ordenada, situada e julgada pelo reino de Deus que está vindo”. Mas todos os meios à nossa disposição “podem ser restaurados a seu lugar se forem situados na perspectiva deste fim que já está presente nos meios que Deus utiliza. […] Dessa forma, encontramos o verdadeiro sentido de nossas atividades e sua relação verdadeira com os fins secundários a que elas se propõem.” [10]

Na proliferação infinita de meios, que nos deixa perdidos quanto aos fins, o que cabe à igreja é pregar o único meio e fim, que garantirá todos os outros: “Buscai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e todas as coisas vos serão acrescentadas” (Mateus 6.33).


REFERÊNCIAS 

[1] de Tocqueville, Alexis (2004). Democracy in America. Library of America. Livro I, Capítulo XVIII

[2] Ellul, Jacques (2016). Presence in the Modern World: A New Translation. Wipf & Stock Publishers. p. 34 

[3] Ellul, Jacques (1964). The Technological Society. New York: Knopf. p. 19 

[4] Taylor, Charles (2010). A ética da autenticidade. É Realizações. p. 26 

[5] Borgmann, Albert (1987). Technology and the Character of Contemporary Life: A Philosophical Inquiry. University of Chicago Press. Cap. 13. 

[6] Winner, Langdon (1977). Autonomous Technology: Technics-out-of-Control as a Theme in Political Thought. The MIT Press. p. 234-36.

[7] A ética da autenticidade, p. 42. 

[8] Presence in the Modern World, p. 51 

[9] Ibid., p. 52-53 [10] Ibid., p. 56-58

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