por Roberto Covolan

Biogênese: a singularidade da vida

Registros fósseis indicam que a vida começou na face da Terra há mais de 500 milhões de anos, durante a chamada “explosão do Cambriano”. Esta expressão refere-se à “explosão” de novas formas de vida animal e estruturas corporais que começaram a surgir cerca de 525 milhões de anos atrás e a partir das quais praticamente todos os animais com os quais estamos familiarizados hoje foram derivados [1]. A questão fundamental aqui é: Como foi que a vida, tal como a conhecemos, começou? “Há um buraco negro no coração da biologia. Dizendo sem rodeios, não sabemos por que a vida é como ela é.” [2]

Muitos preferem tratar a origem da vida em termos de abiogênese, hipótese segundo a qual a vida poderia surgir espontaneamente, de forma contínua, a partir de matéria inanimada. Esta hipótese não encontrou até hoje comprovação experimental não obstante as inúmeras e sofisticadas tentativas de simular em laboratório condições que supostamente reproduziriam os meios físicos e químicos necessários para que alguma forma elementar de sistema orgânico vivo desse o ar da graça.

É importante salientar que, a rigor, esta questão se distingue de discussões quanto ao processo evolucionário de matriz darwiniana já que este presume a existência de organismos vivos suscetíveis a mutações e seleção natural, enquanto que o problema de origem da vida se refere, de maneira simples e direta, a uma suposta sequência de processes físicos e químicos que teriam viabilizado a existência da primeira célula autorreplicante.

Dito isso, não se pode ignorar também que uma parcela considerável da comunidade científica que atua nessa área presume a existência de mecanismos evolutivos atuando através de seleção natural ao nível molecular como que perscrutando rotas bioquímicas que permitiriam a síntese de macromoléculas necessárias à emergência de sistemas vivos.

Nas últimas décadas, o conceito de complexidade tornou-se uma categoria central para as investigações sobre a origem da vida. Os proponentes da teoria do design inteligente (TDI) consideram que a existência de complexidade irredutível representa um obstáculo instransponível, de forma que o problema da origem da vida por processos exclusivamente naturais seria insolúvel, ou seja, tentar resolvê-lo seria uma causa perdida.

Michael Behe, um dos principais teóricos da TDI, coloca o problema nos seguintes termos: “Com irredutivelmente complexo quero dizer um sistema único composto de várias partes compatíveis, que interagem entre si e que contribuem para sua função básica, caso em que a remoção de uma das partes faria com que o sistema deixasse de funcionar de forma eficiente. Um sistema irredutivelmente complexo não pode ser produzido diretamente (isto é, pelo melhoramento contínuo da função inicial, que continua a atuar através do mesmo mecanismo) mediante modificações leves, sucessivas, de um sistema precursor, porque qualquer precursor de um sistema irredutivelmente complexo ao qual falte uma parte é, por definição, não-funcional. Um sistema biológico irredutivelmente complexo, se por acaso existir tal coisa, seria um fortíssimo desafio à evolução darwiniana. Uma vez que a seleção natural só pode escolher sistemas que já funcionam, então, se um sistema biológico não pudesse ser produzido de forma gradual, ele teria que surgir como uma unidade integrada, de uma única vez, para que a seleção natural tivesse algo com que trabalhar.” [3]

Não obstante as relevantes objeções apresentadas pelos teóricos da TDI, há uma corrente no meio científico que busca encontrar quais teriam sido os passos dados pela natureza para construir os blocos fundamentais que deram origem ao mais simples sistema vivo. Nos últimos anos, esta busca tem se concentrado em estabelecer possíveis vias para a geração de precursores essenciais à constituição de uma protocélula. Um dos pesquisadores mais respeitados nessa área, John Sutherland, descreve as atividades desenvolvidas pelo seu grupo nos seguintes termos: “Estamos interessados em descobrir sínteses prebioticamente plausíveis das moléculas informacionais, catalíticas e formadoras de compartimento necessárias para o surgimento da vida.” [4]

Recentemente, seu grupo conseguiu resultados notáveis nessa direção ao mostrar que os precursores de ribonucleotídeos, aminoácidos e lipídios podem ser simultaneamente obtidos de uns poucos compostos que estariam presentes na Terra primitiva [5]. Este, porém, é um dos últimos resultados mais notáveis que se inserem em um panorama de vários cenários especulativos, como RNA world e outros, que tentam encontrar um caminho viável para estabelecer a origem da vida a partir de processos inteiramente naturais [6]. Alguns, otimistas com os achados do grupo de Sutherland, julgam que isto acontecerá inevitavelmente nas próximas décadas. Outros pensam que isto jamais acontecerá. Teríamos, então, também na origem da vida, assim como no caso do início do universo, uma singularidade fundamental?

Para mim, a resposta é um sonoro sim! Mas isto, em minha opinião, independe de que se consiga ou não sintetizar uma protocélula ou algo do tipo em algum momento futuro. Penso que a questão aqui é diferente, mas guarda uma possível analogia com o que ocorre com a teoria do Big Bang no seguinte sentido. Quando tratam deste assunto (Big Bang), frequentemente as pessoas se prendem à origem temporal do universo e desatendem à questão da origem ontológica de sua existência (aspecto que procurei destacar no artigo anterior). De maneira análoga, no caso da biologia, o foco de atenção acaba sendo posto na origem temporal da vida (obviamente, assunto de importância colossal), mas deixa-se à margem o fato de que as leis de todo o universo foram desenhadas para acolher e dar suporte à vida. Ou seja, o universo todo conspira em favor da vida! Que o universo na sua imensidão seja assim como é, tenha a estrutura e a dinâmica que tem, para operar em favor da vida, é algo extremamente singular, reflexo direto do caráter racional e contingente da criação divina.

Creio que esta maneira de pensar é inteiramente compatível com o que disseram alguns teólogos fundamentais do cristianismo clássico. “Muitos dos Pais [da Igreja] – Orígenes, João Crisóstomo (349-407), Agostinho (354-430), por exemplo – tomaram o ‘começo’ como uma referência ao ‘princípio’ eterno do Logos de Deus. Assim, fazia sentido para Gregório de Nissa e Agostinho especularem que, embora o ato da criação seja intemporal, o mundo se desdobrou progressivamente no tempo, por suas próprias potências e princípios intrínsecos, com a própria natureza atuando como artesão.” [7]

* Está é a segunda parte de um artigo publicado originalmente no Boletim da ABC2 de Dezembro/2017. 


Referências

[1] Denis Alexander: Criação ou Evolução – Precisamos escolher? (Ultimato, 2017). [Há registros que indicam o início de formas primordiais de existência em épocas bem anteriores, algo entre 3 e 4 bilhões de anos atrás – ver, por exemplo, www.livescience.com/59025-oldest-evidence-for-life-found-in-australia.html][2] Nick Lane: The Vital Question (Profile Books, 2015).

[3] Michael Behe: A caixa preta de Darwin (Jorge Zahar Editor, 1997).

[4] John Sutherland: www2.mrc-lmb.cam.ac.uk/group-leaders/n-to-s/john-sutherland/

[5] BH Patel, C Percivalle, DJ Ritson, CD Duffy, JD Sutherland: Common origins of RNA, protein and lipid precursors in a cyanosulfidic protometabolism (Nature Chemistry 7: 301-307, 2015).

[6] Aqueles interessados em se aprofundar neste tema poderão encontrar no último capítulo do livro de Denis Alexander, citado em [1], uma visão panorâmica sobre o assunto.

[7] David Bentley Hart: The experience of God (Yale University Press, 2013).


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