Uma interessante reflexão do nosso colaborador Breno Perdigão sobre os novos desafios bioéticos, a partir dos escritos de importantes pensadores cristãos. Vale a pena conferir o texto todo aqui.

  1. Fé Cristã e Ciência

O suposto e falso dualismo que encontramos atualmente entre a ciência moderna e a fé cristã é algo que não possui suas raízes nem nos fundamentos da fé cristã, nem nos primórdios da ciência moderna.

Em seu início, conforme argumenta Francis Schaeffer, a ciência era uma “ciência natural porque tratava de coisas naturais, mas longe estava de ser naturalista, pois, embora sustentasse a uniformidade das causas naturais, não concebia a Deus e ao homem como presos dentro do mecanismo. Tais cientistas nutriam a convicção, primeiro, de que Deus propiciou conhecimento ao homem – conhecimento de Si próprio e também do universo e da história; e, segundo, de que Deus e o homem eram partes do mecanismo e poderiam afetar a operação do processo de causa e efeito […]. Assim se desenvolveu a ciência, uma ciência que tratava do mundo natural e real que, porém, ainda não se havia tornado naturalista. ”[3]

A colocação de Robert Barron, em seu artigo intitulado “The myth of the eternal war between science and religion”, é imensamente necessária para este debate atual, uma contraposição sólida ao “cientificismo”, que segundo o autor é o “pressuposto filosófico de que o real é redutível ao que as ciências empíricas podem verificar ou descrever. […] Nunca ocorre a estes que pode haver uma dimensão da realidade cognoscível de uma maneira não científica, mas ainda racional. Em seu cientificismo, eles são cegos para a literatura, filosofia, metafísica, misticismo e religião.”

“Como observa Polkinghorne e outros, as ciências físicas modernas foram, de fato, possíveis graças ao ambiente religioso dos quais elas surgiram. Não é por acaso que a ciência moderna apareceu pela primeira vez na Europa cristã, onde a doutrina da criação dominava. Sustentar que o mundo é criado é aceitar, simultaneamente, os dois pressupostos necessários para a ciência: a saber, que o universo não é divino e que ele é inteligível.”

A religião cristã, por sua vez, não negligencia a criação, mas, muito pelo contrário, ela é totalmente oposta a uma visão dualista da vida que defende uma ruptura entre a vida da natureza e a vida da graça.

Muito antes de se opor à ciência, o cristianismo, e principalmente o calvinismo, encorajou o amor à ciência através da doutrina da Soberania de Deus (…) e do que ficou conhecido como o dogma da graça comum. Primeiramente, o amor pela ciência, visando à unidade em nosso conhecimento, é assegurado por nossa fé (…) na doutrina que afirma o decreto divino, a qual certifica que a existência e o curso de todas as coisas, ao invés de ser um brinquedo do capricho ou do acaso, obedece a uma lei e ordem, e existe ali uma vontade firme que coloca em prática seus propósitos na natureza e na história. Exatamente esta visão de mundo é que nos possibilita, como cientistas cristãos, a concepção indissolúvel de uma unidade toda compreensível, forçando sobre nós a certeza de que deve haver estabilidade e regularidade governando sobre tudo; sem isso não podemos confiar em nada, e o que é feito da ciência sob tais condições?

Como enfatizado por Abraham Kuyper, “fé numa unidade, estabilidade e ordem de coisas como esta, (…) cosmicamente manifesta como o conselho do decreto de Deus, não poderia senão despertar aos brados e vigorosamente encorajar o amor pela ciência. Sem uma profunda convicção desta unidade, estabilidade e ordem, a ciência é incapaz de ir além de meras conjecturas”.

De igual modo o dogma da graça comum permite compreendermos como aqueles que não abraçam a fé cristã e como mesmo civilizações pagãs produzem tesouros intelectuais. Partindo do conceito de pecado de acordo com as Escrituras Sagradas, concebemos que por causa do mesmo temos, imediatamente após a Queda, uma degeneração total da vida humana; em cada aspecto de sua existência o homem é depravado e corrompido, sendo assim incapaz de fazer, buscar ou desejar o que é bom. Mas Deus interrompe o curso do pecado para evitar a completa aniquilação de seu divino trabalho natural, o que inevitavelmente teria ocorrido. Ele interfere na vida do homem e na vida de toda sua criação por meio daquilo que conhecemos como graça comum.

Esta graça, apesar de não aniquilar a essência do pecado e nem salvar para a vida eterna, impede a execução completa do pecado e permite que haja certo grau de beleza, verdade e bondade; com isso, como afirmado por Nancy R. Pearcey e Charles B. Thaxton, a ciência não ocorre num vácuo conceitual quer religioso, filosófico ou cultural.

1.1 Materialismo e Cristianismo

Dando sequência ao pensamento de Abraham Kuyper, o cristianismo, especialmente o pensamento calvinista, como um sistema completo de vida, partindo do princípio da Soberania de Deus, obtém um discernimento peculiar nas três relações fundamentais de toda vida humana, que são, nossa relação com Deus, nossa relação com o homem e nossa relação com o mundo, o que se encontra diametralmente em oposição à visão materialista do mundo, que defende a ideia de que todos os objetos no nosso universo são constituídos tão somente de partículas físicas e que não há nada fora do aspecto material, afirmando que os seres humanos são objetos materiais; eles não têm um ser imaterial ou uma alma ou substâncias reunidas em um corpo, e eles não contêm nenhuma substância imaterial.

Este é o pensamento predominando em pessoas como Richard Dawkins, que segundo afirma o filósofo Alvin Plantinga, dizem existir um conflito entre ciência e religião porque imaginam haver um conflito entre “evolução e teísmo; a verdade, entretanto, é que há um conflito entre ciência e materialismo, não entre ciência e crença em Deus. ”

Neste momento, se queremos entender o universo e com isto a forma como lidamos com o mundo criado, é de extrema importância a distinção entre o materialismo e o cristianismo, o entendimento bíblico defendido por Jonathan Edwards em seu tratado denominado “O Fim para o qual Deus criou o Mundo”[8] do sentido ou proposito teológico-moral de todas as coisas criadas, o que implicará diretamente no papel da tecnologia.

Primeiramente, contradizendo a visão materialista do universo, segundo a qual muitos pensadores têm elaborado teorias com base nas premissas de que o universo é essencialmente impessoal, Edwards defende a Pessoalidade no centro da realidade, dedicando tempo e esforço intelectual para nos mostrar por meio da razão e por meio da revelação que no amago do universo se encontra um Deus amoroso e com isso temos um universo essencialmente pessoal. Os relacionamentos mais essenciais no universo são igualmente pessoais e exatamente esse amor é a dinâmica por trás da criação.

No ápice da moda intelectual dos dias de Edwards encontramos o deísmo, que semelhantemente ao materialismo enxerga o universo como uma máquina que, apesar de ser altamente complexa, é governada por leis impessoais. A verdade a respeito de toda a realidade depende puramente de leis abstratas, as quais poderiam ser descobertas por processos racionais e impessoais. Edwards, entretanto, apesar de estar igualmente impressionado pelo entendimento newtoniano da realidade física, caminha em uma direção claramente oposta. Ele enxerga nas leis previsíveis da natureza uma manifestação real do amor de Deus.

Partindo da beleza deste amor se derramando como motivo básico de todas as coisas, a verdadeira virtude, o bem mais elevado é retornar este amor a Deus, diferentemente do pensamento moderno predominante, que vê a felicidade e a satisfação humana como objetivo, ou fim último da criação.

1.2 O domínio do homem sobre a natureza

Se posicionando com uma análise magistral, Marsden defende que a civilização moderna tem desenvolvido diversas habilidades para controlar aspectos físicos de nosso ambiente e embora se aprecie as formas de conforto humano cada vez mais abundantes e os avanços que as tecnologias tem proporcionado, a preocupação com o controle do mundo material de forma soteriológica, ou seja, como fonte de salvação, tem encorajado o ponto de vista materialista da realidade, tendendo ao relacionamento com as pessoas baseado em posses materiais ou poder- e, assim, acarretando um reducionismo que pensa toda a realidade em termos de forças materiais e uma busca por uma explicação, não encontrada, para todas as coisas nesses termos.

Uma expressão que é habitualmente utilizada para expor esse progresso das ciências aplicadas é “A conquista da Natureza pelo Homem”, tema este grandemente abordado por C. S. Lewis em seu livro “A abolição do homem”. Alguns defensores desta visão, desprezando o sentido correto em que o homem possui um poder crescente sobre a natureza, afirmam que este derrotou a natureza; entretanto, o que se tem visto é a revelação do exercício deste poder por alguns homens sobre outros, tendo a Natureza como instrumento, onde muitos têm usado erroneamente e contra seus próprios semelhantes o poder que a ciência lhes outorgou.

Assim, realiza-se o antigo sonho tecnológico do iluminismo de controlar e melhorar a natureza estendendo-se para o próprio corpo humano, sendo este considerado mera matéria-prima, a qual tem um potencial para ser modificado ou intensificado de acordo com os nossos desejos. Se o corpo humano não é nada mais do que o produto de forças aleatórias e cegas da natureza, então não existem motivos para hesitarmos em modificar sua estrutura ou aperfeiçoar seu esquema, em fazermos uso da biotecnologia para oferecer ao homem a possibilidade de solução completa e imediata para os antigos problemas da raça humana, como suas limitações físicas – envelhecimento, enfermidades, morte.

“A filosofia-emergente do trans-humanismo”, como afirma o professor John Wyatt, investe na promoção da ideia de que as diversas tecnologias de aprimoramento humano devem ser disponibilizadas e aplicadas de forma ampla e livre, acreditando que a tecnologia, especificamente a de aprimoramento humano, “pode levar a um novo tipo de seres, os seres pós-humanos, os quais teriam uma saúde ilimitada, faculdades intelectuais muito maiores se comparadas as dos seres humanos atuais, novos tipos de percepção sensorial e um controle maior sobre seu funcionamento intelectual e emocional.” O físico Stephen Hawking, defensor deste auto aprimoramento sistemático da espécie chegou a declarar na Casa Branca que era a hora da humanidade assumir o controle da sua evolução.

Esta situação, de acordo com Francis Collins, está muito longe de ocorrer, se é que de fato poderá se tornar realidade um dia, entretanto, como o mesmo questiona, quem decide o que é “aprimoramento”? Até que ponto seria um desastre realizar uma reengenharia da nossa espécie? E como esse remanejamento afetaria nosso relacionamento com o Criador?

 

 

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