HOOGLAND, Jan; DER STOEP, Jan Van; DE VRIES, Marc J.; VERKERK Maarten J. Filosofia da tecnologia. Uma introdução. Viçosa, MG: Ultimato, 2018, 377 pgs.

 

Lá se vão 50 anos da publicação no Brasil de “A técnica e o desafio do século” (ELLUL, 1968) a emblemática obra de Jacques Ellul, originalmente de 1954. Essa obra ainda hoje possui um grande impacto entre quem se interessa por temas relacionados à tecnologia, no Brasil e no mundo. Apesar disso, é uma obra que não é mais editada no país.

Mais recentemente, temas concernentes à filosofia da tecnologia têm se tornado cada vez mais presentes no Brasil, tanto nas universidades quanto entre o público não especializado. Em uma busca rápida no Google Scholar (acadêmico) para o termo “filosofia da tecnologia” obtivemos 1260 resultados para o intervalo dos anos 2000 a 2018, enquanto que de 1990 a 1999 obtivemos somente 19 resultados. A despeito da simplicidade da busca, os números revelam uma tendência crescente no interesse pelo assunto no país nos últimos anos.

De fato, no Brasil ainda temos poucos livros que tratam especificamente de filosofia da tecnologia de maneira a produzir um conhecimento sistemático. Uma primeira incursão foi a obra “Ciência e Tecnologia. Introdução, metodologia e crítica”(MORAIS, 2002), pelo filósofo brasileiro João Francisco Regis de Morais, publicada originalmente em 1977, reeditada em 2002 com a inclusão de “Filosofia da” ao título. Uma obra mais temática que sistemática, que procura tratar de alguns temas relacionados à tecnologia. Outra obra que saiu recentemente, mas que se origina de um texto não publicado anteriormente é “Conceito de tecnologia” (PINTO, 2005) de Álvaro Vieira Pinto de 2005, que foi completado em 1973. Obra importante desse pesquisador brasileiro que procurou se debruçar sobre a tarefa hercúlea de definir tecnologia e sua relação com o ser humano e o ambiente. A preocupação do autor não foi esboçar a evolução e a relação dos diversos autores e correntes filosóficas que trabalharam com o tema, mas sim investigar analiticamente as implicações da tecnologia.

Sinalizando um renovado interesse no campo nos alvorecer do século XXI, a obra “Filosofia da tecnologia” do norte-americano Val Dusek (DUSEK, 2006) foi traduzida em 2009, esta sim, um esforço de sistematização, ainda que bem didática, do vasto e crescente campo da filosofia da tecnologia.

No Brasil, Renato Dagnino e Alberto Cupani são dois autores que têm buscado estudar sistematicamente a filosofia da tecnologia. O primeiro, com formação em Engenharia e doutorado em Ciências Humanas, escreveu, entre outros, “Neutralidade da ciência e determinismo tecnológico” (DAGNINO, 2008), onde procura abordar as diferentes visões sobre tecnologia, dando enfoque especial aos estudos marxistas. Cupani, professor há alguns anos na área de filosofia da tecnologia, publicou em 2011 (já em sua 3ª edição), o livro Filosofia da tecnologia: um convite (CUPANI, 2017). Como o próprio autor comenta em seu prefácio, a aspiração é divulgar a filosofia da tecnologia e apresentar obras de referência que ainda não tenham sido traduzidas para o português, uma dificuldade que pode apontar para o pouco interesse de estudantes de graduação pelo tema. Nesta obra, o autor procura apresentar as diferentes ênfases da problemática filosófica relativa à tecnologia, de maneira bastante sistemática.

Não devemos deixar de mencionar a coletânea de artigos de Hermínio Martins, reunidas no livro “Experimentum Humanum: civilização tecnológica e condição humana”, publicada em 2012 (MARTINS, 2012). Também mais temática que sistemática, é uma boa obra para perceber a aplicação de conceitos filosóficos em questões práticas.

Em 2016, foi lançado “Fé, esperança e tecnologia: ciência e fé cristã em uma cultura tecnológica” de Egbert Schuurman (SCHUURMAN, 2016), um autor que foi importante para a formação dos escritores da obra aqui resenhada. Este livro foi fruto de iniciativa de tradução da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²). Schuurman é professor de filosofia reformacional nas Universidades Tecnológicas de Eindhoven e de Delft na Holanda e profícuo escritor na área de filosofia da tecnologia. Esta obra em especial foi importante por introduzir no Brasil a relação entre cristianismo e tecnologia, um debate frutífero na Holanda e na Europa. Ainda que não sistemática, mas mais analítica e de cunho epistemológico, a obra é um panorama de questões éticas e acaba traçando um diálogo com autores importantes do campo da filosofia da tecnologia.

A noção de filosofia reformacional é importante de se apresentar porque é a corrente por onde os autores de “Filosofia da Tecnologia” se orientam e ainda é pouco conhecida no Brasil. Esta linha de filosofia se originou na Holanda, no início do século XX, por Herman Dooyeweerd (DOOYEWEERD, 2010) e D. T. H. Vollenhoven, ambos professores na Universidade Livre de Amsterdam. A noção básica que permeia essa filosofia é a negação da autonomia humana e a busca por análises não reducionistas da realidade, que podem enfocar somente um aspecto da realidade, como o técnico.

De posse desse cabedal teórico, podemos nos aprofundar na obra “Filosofia da Tecnologia: Uma introdução” (VERKERK et al., 2018). Lançada em 2018 por iniciativa da ABC² se apresenta como um acréscimo importante na bibliografia brasileira sobre o tema.

A obra pretende abranger todas as escolas existentes na filosofia da tecnologia, ainda que os autores se identifiquem com a orientação filosófica holandesa, seguindo os passos de Herman Dooyeweerd e Hendrik van Riessen. Os quatro autores, Verkerk, Hoogland, der Stoep e de Vries são professores universitários na Holanda e tem trabalhado de uma perspectiva interdisciplinar em sala de aula, laboratórios e empresas. Apresento um pouco sobre cada autor, até porque eles são praticamente desconhecidos no Brasil, uma vez que não existe nenhuma obra deles anteriormente publicada no país.  

            Maarten J. Verkerk (1953) é professor de Filosofia Reformada na Universidade de Tecnologia de Eindhoven e na Universidade de Maastricht. Ele estudou química, física e filosofia em Utrecht e obteve seu doutorado na Universidade de Maastricht com uma tese sobre o limite da tecnologia, ciência organizacional e filosofia.

Jan Hoogland ( 1959 ) estudou sociologia e filosofia. Em 1992 obteve seu doutorado na Universidade Erasmus em Rotterdam com uma tese sobre metafísica em Adorno. Atualmente atua na Universidade Livre de Amsterdam.

Marc de Vries (1958) possui mestrado em física pela Universidade Livre de Amsterdam e doutorado em educação cientifica pela Universidade de Tecnologia de Eindhoven, sendo atualmente professor de Filosofia e ética da tecnologia nesta universidade.   Também é professor de filosofia cristã e educação científica na Universidade de Tecnologia de Delft. Outra obra importante do autor é “Teaching About Technology. An Introduction to the Philosophy of Technology for Non-Philosophers” (Ensinando sobre tecnologia. Um introdução à filosofia da tecnologia para não-filósofos) de 2005.

Por fim, o último autor, Jan van der Stoep (1968) estudou biologia na Universidade de Wageningen e filosofia na Universidade Livre de Amsterdam. Nesta universidade ele obteve seu doutorado sobre Pierre Bourdieu e a filosofia política do multiculturalismo. Trabalhou na Dutch Railways com uma comissão sobre a ética do trafego e do transporte, até que integrou a cadeira de mídia, religião e cultura na Universidade Cristã Ede de Ciências.

Portanto, é com esse contexto de autores filósofos de diversas formações e atuações que o livro “Filosofia da Tecnologia” acaba abarcando uma visão bastante expansiva de temáticas e práticas relacionadas à filosofia da tecnologia.

Trata-se de um esforço por uma sistematização e, diferente das outras obras comentadas acima, buscou fazer um balanço crítico de cada corrente de ideias e cada pensador esboçado. Além disso, ele é estruturado de uma maneira lógica que torna a exposição das ideias mais didática, sem perder a complexidade temática. São 3 grandes partes “Pensando e fazendo”, “Fazendo e projetando” e finaliza com “Projetando e pensando”, sinalizando o crescimento em complexidade do estudo das propriedades (ontologia) dos objetos técnicos e sistemas tecnológicos.  Cada capítulo vem acompanhado com o perfil de um importante pensador do campo (são quatorze capítulos e o mesmo número de perfis). Também, intercaladamente,  existem quatro estudos de caso que levam em consideração insights dos capítulos antecedentes. Esses estudos de caso, além dos exemplos inclusos dentro dos capítulos, apontam para a opção pela “prática”, enfatizada pelos autores e que está consoante com a chamada “virada empírica” dos estudos de tecnologia.

Na primeira parte, intitulada “Pensando e fazendo” e que é composta por dois capítulos, os autores iniciam uma espécie de genealogia do conhecimento em relação à filosofia da tecnologia. Concluem apontando que a tecnologia pode ser compreendida como uma busca por sentido, daí a importância da noção de cosmovisão e dos estudos de Heidegger, que apesar de não ser um filósofo da tecnologia, trouxe várias contribuições ao campo.

A parte 2, “Fazendo e projetando”, começa com uma abordagem da complexidade em que o engenheiro está envolvido, com relação aos vários aspectos dos produtos que ele projeta, com a percepção de que a tecnologia se tornou parte integral da sociedade e com a noção de que a própria tecnologia se tornou mais complexa. Por exemplo, citado pelos autores, quais são os impactos e consequências da aplicação de técnicas de modificação genética? Com certeza eles estão além de questões meramente técnicas. Nesta parte está exemplificado o diferencial da obra, no sentido de enfatizar o papel do engenheiro na concepção e execução da tecnologia.

Nos capítulos 4 e 5, é trabalhada a ontologia dos objetos técnicos, levando em consideração as análises desenvolvidas pelos filósofos holandeses, já mencionados, Dooyeweerd e Vollenhoven. Nestes capítulos, entre outros conceitos, é apresentada a noção de “aspectos modais” uma ferramenta frutífera para o exame filosófico de tecnologias. Para estes autores, qualquer objeto tecnológico funciona em todos os 15 aspectos modais, que se constituem em: aritmético, espacial, cinemático, físico, biótico, psíquico, analítico, formativo, lingual, social, econômico, estético, jurídico, moral e fé (ou pístico). Para demonstrar a plausibilidade de tal acepção, os autores utilizam como exemplo um robô. Por exemplo, o aspecto de fé transparece quando um trabalhador em um fábrica confia que um robô desempenhará as ações programadas. Outros pontos são abordados nesses capítulos em relação à ontologia da tecnologia e a filosofia de Dooyeweerd e Vollenhoven, mas pela sua complexidade e extensão não cabe descrevê-los aqui, mas o exemplo dos aspectos modais já denota as vastas possibilidades dessa linha filosófica.

Nos capítulos 6 (“Conhecimento de projetos”) e 7 (“Projeto e realidade”) cabe destacar os conceitos concernentes à projetos, enfatizando a necessidade de interdisciplinaridade no trabalho de engenharia: qualquer projeto tecnológico hoje em dia abarca diversas áreas para que se chegue à um bom resultado.

O capítulo 8, “Tecnologia e produção”, é apresentado de maneira prática como o conceito de eficiência nem sempre é o melhor medidor de qualidade de vida do trabalhador, como fica exemplificado pelos métodos considerados desumanizadores de Taylor e Ford e, portanto, são apresentados a alternativas, tais como a sociotecnologia, empreendida na Holanda e que busca um padrão humanamente factível para o trabalho.

A parte 3, “Projetando e pensando” tem como tema adjacente e que perpassa todos os capítulos a questão moral na tecnologia. Alguns temas abordados são: “não neutralidade de uma prática” (capítulo 9), pessimismo e otimismo (cap. 10), globalização e diversidade cultural (cap. 11), tecnologia como extensão do homem (cap. 12), aspectos normativos e de responsabilidade da tecnologia (cap. 13), religião e secularismo (cap. 14).

Avançando mais detalhadamente no teor dos capítulos, no capítulo 9 “As regras do jogo”, é introduzido o conceito de prática de Alisdair MacIntyre, quem entende que uma prática é um modo coerente e complexo de atividades humanas cooperativas, socialmente aceitas. Então, os autores empregam essa noção de MacIntyre e o aplicam ao exercício da engenharia o que é frutífera para fazer notar que a atividade com tecnologia não é neutra: cada pessoa envolvida no processo possui normas, valores, visões de mundo e questões sobre significado que dirigem e estruturam o contexto de uma prática.

O 10º capítulo, “Simetrias”, trata dos aspectos sociais da tecnologia e mais especificamente da virada empírica nos estudos desse tema. Parte da análise das contribuições de Heidegger e Ellul, indo para abordagens mais empiricamente orientadas, passando por Winner, até em Latour e a abordagem da SCOT (moldagem social da tecnologia). Segundo os autores, para Heidegger e Ellul, com visões mais pessimistas, a tecnologia é uma maneira particular de olhar e interpretar a realidade e autônoma; se desenvolve a despeito das vontades individuais. Já para os outros autores examinados no capítulo, existe uma possibilidade de intervir no processo tecnológico, que não é autônomo, mas tampouco plenamente racional.

O capítulo 11, “Mundos em colisão” discute o impacto da tecnologia nas culturas e na era da globalização e o 12º “Homo technicus” o papel dos artefatos como extensões de nossas capacidades humanas. Neste último capítulo há uma discussão do tema bastante atual do transhumanismo e uma crítica da percepção filosófica dessa linha, que tende a reduzir todos os problemas humanos à meros defeitos tecnológicos.

Como não poderia deixa de faltar em um texto que analisa a filosofia da tecnologia, existe um capítulo sobre questões éticas da tecnologia e o papel de responsabilidades: o capítulo 13 “A tecnologia é ‘boa’?”. O livro finaliza-se com um debate acerca de religião, secularismo e os limites da tecnologia, demonstrando como nem todos os problemas da condição humana são reduzidos e sanados por soluções tecnológicas (cap. 14, “Expectativas para o futuro”).

Assim, temos uma das mais completas e acessíveis obras disponíveis em língua portuguesa, que se apresenta como uma boa introdução para quem quer conhecer o campo de maneira mais abrangente. Logicamente, nem todos os autores e temas da filosofia da tecnologia são tratados e algumas passagens tendem a ser mais breves do que o interesse particular do leitor desejaria. Talvez uma obra de acompanhamento que possa diminuir essa angústia seja a importante antologia preparada por Val Dusek e Robert C. Scharff “Philosophy of technology: The technological condition” (SCHARFF; DUSEK, 2014).

Pela amplitude dos temas e a forma como são trabalhados didaticamente os temas da filosofia da tecnologia, esta obra é fortemente recomendada para todos aqueles que se interessam pelo assunto: estudiosos da tecnologia em suas diversas áreas, engenheiros e por aqueles que desejam se aprofundar neste debate tão atual e necessário. Por buscar compreender o fenômeno da tecnologia, o livro combina reflexão filosófica com reflexões práticas, o que enriquece muito o argumento. Essa obra com certeza é uma grande adição às poucas obras disponíveis no Brasil; ela pode auxiliar na mudança de percepção de que a tecnologia não é algo essencialmente ruim, nem neutra e de que devemos discutir mais sobre que tipo de tecnologia queremos, de uma forma cada vez mais interdisciplinar e não reducionista.

 

Bibliografia.

CUPANI, A. Filosofia da tecnologia: um convite. 3. ed. Florianopolis: UFSC, 2017.

DAGNINO, R. Neutralidade da ciência e determinismo tecnológico: um debate sobre a tecnociência. Campinas, SP: UNICAMP, 2008.

DOOYEWEERD, H. No crepúsculo do pensamento ocidental. São Paulo: Hagnos, 2010.

DUSEK, V. Philosophy of technology: an introduction. Malden, MA ; Oxford: Blackwell Pub, 2006.

ELLUL, J. Técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.

MARTINS, H. Experimentum humanum: civilização tecnológica e condição humana. 1. ed ed. Belo Horizonte: Fino Traço Ed, 2012.

MORAIS, J. F. R. DE. Filosofia da ciência e da tecnologia introdução metodológica e crítica. Campinas: Papirus, 2002.

PINTO, A. V. O conceito de tecnologia. 2a. ed ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.

SCHARFF, R. C.; DUSEK, V. (EDS.). Philosophy of technology: the technological condition: an anthology. Malden, MA: Wiley Blackwell, 2014.

SCHUURMAN, E. Fé, esperança e tecnologia: ciência e fé cristã em uma cultura tecnológica. Viçosa: Ultimato, 2016.

VERKERK, M. J. et al. Filosofia da Tecnologia. Uma Introdução. Viçosa: Ultimato, 2018.

Por Luis Adriano

 

 

 

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