recurso-2012

por Roberto Covolan

 

Agora que a ABC2 está sendo oficialmente criada, convém refletirmos sobre alguns dos pressupostos que orientaram a formulação deste projeto e sobre o caráter da organização que pretendemos construir. Não será possível esgotar o assunto neste breve artigo, nem é essa a intenção, mas alguns pontos centrais serão abordados. Este ABC da ABC2 será apresentado aqui em ordem reversa, começando pelo final.

C de Consciência. O tipo de consciência implicada na iniciativa para a construção de uma organização como a ABC2 é difícil de expressar em uma única palavra. Ao menos, em português. Ocorre-me, em italiano, uma palavra que também começa com C: consapevolezza. Usualmente esta palavra é traduzida simplesmente por consciência ou conhecimento. Ela se refere sim a consciência, mas de um tipo especial. Recorro ao site italiano Una parola al giorno para explicitar o seu significado. Consapevolezza não se resume a “um superficial estar informado ou simplesmente saber. E se afasta também do conhecimento meramente intelectual. Trata-se de uma condição na qual a cognição é interior, profunda, perfeitamente harmonizada com o resto da pessoa em um todo coerente. A consapevolezza não pode ser inculcada, pois não é um dado ou uma noção. É uma construção original, identitária, do próprio modo como nos relacionamos com o mundo.” Trata-se, portanto, de uma forma visceral saber, profundamente arraigado, algo que nos tempos bíblicos talvez fosse referido como um conhecimento que provém do coração. Pois bem, é deste tipo de consciência que estamos falando.

Consciência de quê? Em primeiro lugar, é necessário reconhecer que ciência e religião são duas das maiores forças capazes de promover mudanças e transformações, e operar como fontes de inspiração e influência no contexto da cultura global do século XXI [1]. Mais do que simplesmente “fazer a cabeça” das pessoas, trata-se de campos do conhecer e do fazer com potencial para moldar desde o setor produtivo da sociedade (algo mais próprio da ciência como fonte contínua de inovações tecnológicas) até os comportamentos e julgamentos morais pelos quais orientamos nossas tomadas de decisão ou, numa medida mais profunda, a forma mesma como nos entendemos enquanto seres humanos, com correspondentes impactos no relacionamento interpessoal e no campo espiritual.

Esta consciência nos leva, então, não só a não ignorar essas forças, mas a compreender o enorme potencial que elas poderiam ter atuando de forma convergente. É importante reconhecer este fato, a despeito do cenário de oposição entre elas, tão disseminado em nossa sociedade. (Mais sobre isso adiante.)

B de Bíblia. Houve um fato notável na vida de Blaise Pascal (1623-1662), o célebre matemático, físico e filósofo cristão francês. Após sua morte, foi descoberto que Pascal levava uma breve nota sobre o extraordinário encontro que ele teve com Deus, escrita num pedaço de pergaminho e costurada no forro de seu casaco. (Se você desconhece este fato, as anotações completas podem ser encontradas, p. ex., na Ref.[2].) O texto desta nota começa assim:

Ano da graça de 1654, segunda-feira, 23 de novembro, festa de São Clemente, (…).

Das dez e meia da noite, mais ou menos, até cerca de meia-noite e meia.

Fogo!

Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó, e não dos filósofos e dos sábios.

Certeza, certeza, sentimento, alegria, paz.

Deus de Jesus Cristo.

 

Recordo aqui este episódio fascinante, pois o que ele revela pode ser tomado como emblemático da nossa própria identidade como organização. Somos cristãos e, assim como para Pascal, um notável filósofo e cientista, o nosso Deus é o Deus da Bíblia, não o dos filósofos e cientistas. Ainda que as nossas atividades girem em torno de um binômio, a relação teologia-ciência, quando se trata de fé o nosso foco está no Deus da Bíblia, plenamente revelado na pessoa de Jesus Cristo.

A de Atitude. É fato histórico bem estabelecido que a ciência moderna, em sua origem, foi fortemente influenciada pela cosmovisão cristã dominante na Europa dos séculos XVI e XVII. Mais do que isso, o próprio desenvolvimento científico foi, em grande parte, sustentado por instituições religiosas durante extenso período. Ao longo do século XIX, porém, toma corpo um movimento revisionista que busca reescrever a história da relação entre religião e ciência, procurando enfatizar aspectos conflituosos na tentativa de caracterizar um quadro de contínua beligerância entre estes campos. Essa história, então, acaba sendo recontada de forma nem sempre precisa, quando não deliberadamente falsa. Na Inglaterra, por exemplo, Thomas Huxley (1825-1895), em seu empenho para superar o domínio cultural da igreja anglicana, foi um grande propagandista do naturalismo científico. Seu objetivo declarado era substituir a igreja de então por uma espécie de “igreja científica”. Ele próprio se referia às suas preleções como “sermões leigos” [3].

Desde então o modelo do conflito na interação fé-ciência tem tido “pregadores” notórios, dentre eles cientistas proeminentes e muito influentes como John William Draper (1811-1882) e Andrew Dickson White (1832-1918). Através das obras destes e de outros autores, esta visão acaba gradualmente tornando-se hegemônica, cenário que perdura até os dias de hoje.

Nas últimas décadas, porém, o trabalho preciso e amplamente documentado de historiadores como Reijer Hooykaas, John Hedley Brooke, Ronald Numbers e Peter Harrison, dentre outros, têm demonstrado que a tese do conflito perene entre fé e ciência constitui-se, na realidade, em um mito cuidadosamente construído e alimentado por interesses que não são obviamente aqueles de estabelecer a verdade dos fatos. Contudo, esta visão mítica do conflito continuado entre religião e ciência ainda goza de ampla aceitação. Aliás, esta visão tem sido até amplificada no imaginário popular através de versões contemporâneas veiculadas pelos chamados neoateístas, acriticamente disseminadas pela grande mídia.

Há, portanto, neste setor uma importante tarefa a ser realizada que é a de tornar conhecidas as obras de historiadores como os mencionados acima, cujo trabalho tem permitido corrigir erros, omissões e distorções históricas, demolindo o mito do conflito tão pernicioso para o diálogo entre fé e ciência. A ABC2 dará uma contribuição efetiva nesta direção com a publicação em futuro próximo do livro “The Territories of Science and Religion”, de Peter Harrison.

Evidentemente, o trabalho de resgatar e tornar conhecida a verdadeira história da complexa relação entre fé cristã e ciência é extremamente importante, mas esta é apenas uma das múltiplas tarefas que teremos pela frente.

O Pr. Guilherme de Carvalho tem enfatizado em nossos seminários que o diálogo entre fé e ciência não se dará simplesmente através de ideias, conceitos, artigos acadêmicos ou obras literárias. Tanto no campo da fé quanto no campo científico, as pessoas se organizam em comunidades, portanto, para um diálogo desta natureza se tornar efetivo e ter chance de sucesso, será necessário estabelecer uma comunidade-ponte. A ideia é que a ABC2 venha se constituir em um meio efetivo para que esta comunidade-ponte se estabeleça em nosso país.

Com isso chegamos ao tópico que dá título a esta seção: Atitude. Para realizarmos os propósitos mencionados acima, há evidente necessidade de pessoas imbuídas daquele tipo de consciência referida no início, pela qual compreenderão o caráter missiológico de que se reveste a atividade de se criar e gerir a ABC2 e a urgência de assumirem o protagonismo indispensável para dar corpo a esta organização.

Note-se que esta atitude requer, por um lado, consciência histórica do papel a ser desempenhado. Penso que isto se possa depreender do panorama histórico delineado acima. Mas, requer também algo que poderíamos chamar de paciência histórica. É necessário compreender que, muitas vezes, estaremos lidando com questões delicadas, extremamente complexas, para as quais não há respostas consensuais na atualidade. Portanto, haverá que se dar tempo para que o avanço nas pesquisas bíblico-teológica e científica possam revelar possibilidades até aqui desconhecidas.

Assim, em caso de questões polêmicas, penso deva prevalecer a posição já manifesta pela equipe que tem conduzido o projeto Cristãos na Ciência:

Não será papel da ABC2 arbitrar sobre pontos controversos na interação entre fé cristã e ciência, mas sim oferecer-se como fórum aberto para debates de alto nível, de forma que eventuais discordâncias entre seus associados possam resultar em diálogo produtivo e aprofundamento dos temas em questão.

Creio que a postura implícita nesta posição se coaduna com a recomendação bíblica de argumentarmos com mansidão, respeito e boa consciência (1 Pe 3.16). É esta a atitude esperada de todos nós. Assim seja!

 

Referências

[1] Joshua M. Moritz, Science and Religion (Anselm Academic, 2016).

[2] www.monergismo.com/textos/biografias/pascal_ciencia.pdf

[3] Nancy R. Pearcey e Charles B. Thaxton, The Soul of Science (Crossway Books, 1994).

 

 

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