Por Maarten J. Verkerk*

Traduzido por Pedro Silva15

Revisado por Luiz Adriano Borges

O documentário Uma Verdade Inconveniente, de Al Gore, gerou um avanço na opinião pública. Embora este documentário seja retórico, ele apresenta dados sugestivos e contém várias imprecisões, porem a mensagem está correta: o problema climático é causado em grande parte pelas ações humanas. A atribuição do Prémio Nobel da Paz a Al Gore (juntamente com o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas – IPCC)[1] apenas reforçou a autoridade deste documentário.

  1. Mais (melhores) tecnologias e livre mercado

O problema climático está realmente na agenda: a redução do jornal impresso (para versão digital), relatórios de combustíveis alternativos, edifícios carbono neutro, produtos sustentáveis, subsídios e medidas legais. Cada vez mais, se diz que o problema climático é um problema técnico e econômico. E com um pouco de boa vontade política, isso deve ser possível. A lógica por trás dessa sugestão é que no passado (todos) os principais problemas poderiam ser resolvidos com o auxílio da técnica. Basta pensar no buraco na camada de ozônio que está ficando cada vez menor devido à eliminação dos clorofluorcarbonos – CFCs. Pense também nos rios altamente poluídos na Europa que novamente se tornaram limpos por meio de uma política ambiental rígida, possibilitando o retorno dos salmões. Se conseguimos resolver esse problema no passado com técnicas mais eficientes, por que não conseguiríamos novamente? Ao mesmo tempo, argumenta-se que o livre mercado tem mecanismos corretivos suficientes para resolver esses tipos de problemas. Parece que a receita para o problema climático é: mais tecnologias e livre mercado.

O problema do clima pode ser resolvido por meios técnicos? O livre mercado possui mecanismos suficientes para tornar uma sociedade sustentável? Existe coragem – política –  suficiente para tomar as medidas necessárias? É impressionante que em todo o debate sobre a sustentabilidade há pouca atenção dada as raízes mais profundas do problema climático. Sem o conhecimento desses antecedentes, não estaremos aptos para julgar se as soluções propostas serão suficientes.

  1. Raízes históricas

Em 1967, Lynn White Jr. publicou o artigo “As raízes históricas de nossa crise ecológica ” na revista americana Science. Este artigo se tornou um clássico. Nele, White afirma que a maneira como as pessoas lidam com o meio ambiente é amplamente determinada por sua visão religiosa da realidade. Nas religiões pagãs, a natureza – incluindo o homem – era vista como um todo divino. A unidade do homem e da natureza estava cercada por todos os tipos de mitos e rituais. A adoração da natureza era central. O homem tentou influenciar o curso das coisas através de vários rituais. Sob a influência do cristianismo, a visão sobre a natureza do homem mudou. De acordo com White, a história da criação teve um papel importante nisso. O reconhecimento de que Deus criou os céus e a terra significava que a natureza não tinha o status divino. A criação do homem à imagem de Deus implicava, em sua opinião, que o homem era colocado no centro da natureza. A atribuição de trabalhar a terra significava que o homem poderia usar a natureza para realizar seus próprios objetivos. Lynn White, portanto, conclui que o cristianismo é responsável pela visão mutável da realidade: de um deus para ser adorado a um material a ser usado para seu próprio interesse. E essa visão abriu o caminho para a exploração da natureza.

Existem muitos argumentos que suportam a tese de White. A pesquisa mostrou – entre outras coisas, o trabalho Hooykaas e Mumford – que o cristianismo realmente abriu o caminho para o desenvolvimento e disseminação da ciência e da tecnologia. Além disso, os cristãos desempenharam um papel importante no crescimento da indústria e dos negócios. Eles muitas vezes buscam a maximização dos lucros às custas da natureza e do meio ambiente. Em alguns círculos cristãos, a atribuição de “trabalhar a terra” é explicada como “tirar o que está nela”. Conhecida é a tese de Weber que estabelece uma relação entre o calvinismo e a ascensão do capitalismo – esta tese que é discutível.

Mas também há muitas críticas à tese de White. O filósofo australiano John Passmore apontou que uma distinção deve ser feita entre “governar sobre a natureza” e “usar a natureza para nosso próprio benefício”. O primeiro significa que o homem tem o direito de usar a natureza dentro de limites estabelecidos – encontramos essa noção na Bíblia. O segundo significa que o homem pode fazer o que quiser com a natureza – encontramos essa noção nos estóicos, e não na Bíblia.

O engenheiro e filósofo holandês Egbert Schuurman afirma que o pensamento do homem como centro da criação não vem da Bíblia, mas do Renascimento e do Iluminismo. Essas correntes enfatizaram a autonomia do homem. O ‘eu’ humano tornou-se o ponto de partida para o pensar e o agir. Segundo ele, foi precisamente essa última atitude que levou os tempos modernos sua crença no progresso.

  1. Antropocentrismo

Se permitirmos que a tese de White e a crítica que foi liberada se estabeleça, uma nítida imagem emerge. Assim que o homem se denomina soberano e senhor da realidade, a natureza é degradada em um objeto que pode ser explorado. Tão logo o homem se coloque no centro da cultural, a natureza perde seu próprio sentido e valor. Se olharmos por trás dessa imagem, ficará fácil identificar as raízes profundas do problema climático: a autonomia do homem. O homem autônomo, em nome do progresso, explora a natureza e utiliza as escassas matérias-primas a um ritmo elevado. Ele se coloca no centro da realidade e não reconhece a natureza e o valor do meio ambiente, vivendo em um terreno muito maior do que o nosso planeta consegue suportar. Concluímos, portanto, que o pano de fundo do problema climático está na pessoa autônoma que esgota a natureza em benefício próprio.

Não há dúvida de que essa atitude – filosoficamente falando – se encontra no Renascimento e no Iluminismo. No que diz respeito à Renascença, por exemplo, estamos pensando no conde e pensador italiano, Pico Della Mirandola (1463-1494), que enfatiza que o homem deve se transforma na forma que desejar. Na sua opinião, o homem “molda-se” numa forma auto escolhida “como um artista livre e soberano”. Um destaque nesta tradição é o “Cogito, ergo sum – penso, logo existo” de Descartes, onde não há lugar para seres humanos e natureza. Schuurman contrasta com razão o cristianismo e o renascimento / iluminismo: o cristianismo pode ser caracterizado como teocentrismo (Deus é central) e o renascimento / iluminismo como antropocêntrico (o homem é o centro). Com base nessa análise, podemos concluir que a tese de Lynn White é suficientemente refutada: o cristianismo não é culpado pelos problemas climáticos.

Mas não quero tirar essa conclusão. Se aprofundarmos um pouco mais, perceberemos que a tese de Lynn White apresenta uma perspectiva diferente. Não nos movemos mais no nível do pensamento teórico, mas no nível individual. Colocar-se no ‘centro’ não é uma característica típica somente dos pensadores do Renascentismo e do Iluminismo: se encontra em todas as pessoas. Os cristãos também são controlados por ela. O pecado está no fundo do coração do homem. Essa ideia é tão fundamental na tradição cristã que é explicitamente articulada nas várias confissões. Em última análise, o cerne do pecado é que o homem não adora a Deus, mas se coloca no centro. E deste centro ele “modela” sua própria vida.

Existe também o seguinte. A história da nossa sociedade mostra que os cristãos e os humanistas estavam lado a lado na construção de nossa cultura. Juntos, eles contribuíram para o desenvolvimento da ciência, tecnologia e economia. Juntos, eles permitiram que a construção do estado de bem-estar prevaleça sobre a gestão da criação (Hösle). Os Cristãos e os humanistas são corresponsáveis por isso.

  1. Dívida

Como lidar com essa dívida? A cresça ocidental no progresso quase não oferece espaço para honestidade. Para isso, nós realmente temos que voltar às antigas tradições religiosas. No culto judaico-cristão, a culpa do homem podia ser reconciliada por meio do sacrifício. O sacrifício pela culpa tem como pano de fundo um senso de satisfação. Trata-se de organizar uma compensação pelo que foi retido ou retirado. O sacrifício poderia ser apresentado pelos pecados cometidos em momentos “de fraqueza” ou por algum “erro”, seja individual ou coletivo. O poder do sacrifício não está somente na satisfação em si, mas também, no processo litúrgico – como a aspersão do sangue ao redor do altar – é particularmente importante. Isso significa que encontramos de imediato um ponto cego no atual debate climático: as ideias de “satisfação” e “liturgia” estão ausentes no diálogo. Ocasionalmente, fala-se em “satisfação” quando se trata de tecnologias sustentáveis ​​(gratuitas) aos países em desenvolvimento. Também encontramos a idéia de satisfação no green card em que todo impacto ambiental é compensado pelo plantio de árvores. Porém, o processo litúrgico para purificação de nossos “pecados” está fora deste cálculo.

Nesse sentido, gostaria de destacar duas palavras da tradição judaico-cristã: ‘conversão’ e ‘renascimento’. A palavra “conversão” refere-se, em particular a uma atitude diferente: você se vira na estrada que percorre. E isso é muito importante no debate sobre o clima: precisamos de uma atitude diferente. Mais uma vez, parece que medidas técnicas, como a economia de energia, estão sendo anuladas pelo desejo pessoal de consumir cada dia mais. E o renascimento indica algo novo. Você nasceu de novo, e se torna uma pessoa diferente, e vai se comportar de maneira diferente. Assim, o renascimento pode levar a uma técnica diferente, há uma nova economia e uma melhor política mundial. Isso nos remete ao início deste artigo. Se a causa do problema do clima está na atitude do homem (antropocentrismo), então teremos que questionar essa atitude. E então, de fato, teremos que usar palavras como ‘culpa’, ‘conversão’ e ‘renascimento’. Sem o reconhecimento da culpa, o desenvolvimento de novas técnicas faz pouco sentido. Sem conversão, a economia continuará a crescer e as emissões de CO2 continuarão a aumentar. Sem renascimento, o livre mercado simplesmente fará seu trabalho e os países ricos se tornarão mais ricos e os países pobres mais pobres (Noreena Hertz). Em outras palavras, sem o reconhecimento de culpa, sem arrependimento e sem renascimento, a solidariedade, a sustentabilidade e a justiça nunca se conectarão.

  1. Significado religioso

Eu gostaria de destacar o seguinte ponto. Na tradição judaica, a oferta pela culpa também tem um significado religioso: o homem é culpado diante de Deus. Este último pensamento é particularmente evidente na oferta pelo pecado. A dívida tem a ver com a manifestação da santidade de Deus. O ‘sagrado’ está em jogo. Você pode se perguntar sobre até que ponto termos como “culpa”, “conversão” e “renascimento” em uma sociedade pluriforme devem ser interpretados religiosamente. Isso é justificado em uma perspectiva judaico-cristã. Mas podemos impor esse requisito aos não-cristãos, como humanistas e adeptos ao iluminismo? Eu acredito que eles também não possam ignorar uma interpretação secular-religiosa. Até mesmo porque a crença ocidental no progresso – refiro-me às análises de Goudzwaard, Szerzinski e Gray – pode ser visto como uma versão secularizada da expectativa cristã do futuro. Além disso, os não-cristãos também terão que interpretar o significado e o valor do meio ambiente em termos que excedam o homem. Em outras palavras: os humanistas críticos e os pensadores do iluminismo fundamentalista também devem se relacionar com o “sagrado”. Eles também carregam “culpa”, devem “arrepender-se” e orar por “renascimento”. Neste contexto, gostaria de destacar uma observação de Vittorio Hösle. Em suas conferências Mosaicas, ele afirma que aqueles que não estão enraizados em uma tradição não podem moldar o futuro.

Conclusão

Então, não devemos desenvolver novas técnicas? Sim, devemos. Não deveríamos usar os meios econômicos para alcançar o uso sustentável de energia e matérias-primas? Sim, devemos. Não devemos ter a liberdade de consumir o que o nosso coração deseja? Sim, devemos. Mas se todas essas medidas permanecerem em uma perspectiva autônoma e individual, novas técnicas; sistemas econômicos e estruturas democráticas serão apenas uma gota no oceano. É primariamente sobre culpa, conversão e renascimento: ter uma atitude e um comportamento diferente. Somente assim conseguiremos desenvolver novas técnicas, medidas econômicas e políticas públicas que gerem um maior significado. Se em um país rico há venda de produtos orgânicos em um mercado justo – como a Holanda – provavelmente esse é um bom indicador da condição espiritual de nosso povo, e dificilmente falaremos em ‘conversão’ de atitude. Agora, enquanto os fabricantes de carros ainda estiverem lançando carros de classe média com um consumo de dez quilômetros por litro e incentivando descaradamente a venda de SUVs com um consumo entre sete e oito quilômetros, o ‘renascimento’ é necessário. É hora de nós humilharmos! É exatamente neste contexto que é feita referência à teologia de Francisco de Assis na conclusão do artigo de Lynn White. Francisco de Assis, enfatiza a virtude da humildade; uma virtude que dá todo o espaço a outros seres humanos e a toda a criação.

 

*Dr. Maarten J. Verkerk é professor por nomeação especial de Filosofia Reformacional na Universidade de Tecnologia de Eindhoven. Esta contribuição é uma adaptação de sua palestra na conferência de estudos da Associação de Filosofia Reformada em 12 de janeiro de 2008.

[1] É uma organização científico-política criada em 1988 no âmbito das Nações Unidas (ONU) pela iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e da Organização Meteorológica Mundial (OMM). [N. do T.]

 

 

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