Entrevista concedida por Francis Collins ao jornalista Peter Wehner, da revista The Atlantic, em 17/03/2020


Francis Collins é um cientista cristão, geneticista, diretor geral da maior rede de centros de pesquisas biomédicas dos Estados Unidos. Nesta entrevista, publicada em duas partes, ele fala sobre o coronavírus, a evolução da COVID-19 e as providências que estão sendo tomadas nos Estados Unidos para combater esta pandemia. É disso o que trata esta 1a. parte. Na 2a. parte, a ser publicada em breve, ele fala sobre sua fé e sobre sua amizade com o neoateísta Christopher Hitchens. 

 


“Há estimativas de que se nada der certo e se não conseguirmos achatar a curva e se os sistemas de saúde estiverem sobrecarregados, poderemos ter a morte de até um milhão e meio de pessoas nos Estados Unidos.”

Foi isso o que Francis Collins, diretor do NIH (National Institutes of Health¹), me disse no sábado [13/03/2020]. Collins é um dos médico-geneticistas mais respeitados do mundo, profundamente envolvido na contenção da pandemia de coronavírus. (Anthony Fauci, sem dúvida o principal especialista em doenças infecciosas do mundo, trabalha para Collins no NIH e é um amigo próximo.)

Collins não estava fazendo uma previsão, mas apresentando uma visão realista do pior cenário que aguarda os Estados Unidos nas próximas oito semanas, a menos que se adote, em suas palavras, “a versão mais extrema” do distanciamento social.

“Se você observar as taxas de novos casos que estão sendo diagnosticados, estamos em uma curva exponencial,” disse-me Collins. “Alguns dizem que essa curva nos coloca apenas oito dias atrás da Itália. Se isso for verdade, temos um período muito curto de tempo antes que isso se torne uma óbvia crise nacional, com muitas pessoas apresentando doenças graves e hospitais ficando rapidamente muito estressados com a capacidade de tratar todas essas pessoas doentes, especialmente as pessoas idosas que estão em maior risco e que podem precisar não apenas de uma cama de hospital, mas também de um aparelho de ventilação mecânica.”

Perguntei a Collins se isso significa que parecemos estar caminhando para o que aconteceu na Itália.

“Sim”, disse-me Collins. “Se você observar a curva de novos casos diagnosticados ao longo do último mês, basta olhar a curva do que aconteceu na Itália e, em seguida, a nossa curva nos EUA, e você dirá que se voltar oito dias a partir de hoje, eles tiveram o mesmo número de casos que temos hoje – ou seja, pouco mais de 2.000. Então, se seguirmos a mesma trilha, em oito dias a partir de [22 de março], acabaremos tendo o mesmo tipo de crise incrível que eles estão enfrentando.” 

(O New York Times descreveu assim a catástrofe que ocorre na Itália: “A epidemia de coronavírus na Itália já deixou ruas vazias e lojas fechadas, dado que 60 milhões de italianos estão essencialmente em prisão domiciliar. Médicos e enfermeiros exaustos estão trabalhando dia e noite para manter as pessoas vivas. Há crianças pendurando desenhos de arco-íris em suas janelas e famílias cantando em suas varandas. Mas a métrica definitiva de pandemias e pragas são os corpos que eles estão deixando para trás. Na Itália, com a população mais idosa da Europa, o custo tem sido alto, com mais de 2.100 mortes, o maior número fora da China. Só na segunda-feira [16/03/2020], mais de 300 pessoas morreram.”)

Collins acrescentou este importante qualificador:

“Neste momento, temos a chance de mudar isso, aplicando agora as medidas mais draconianas de distanciamento social para tentar limitar a disseminação do coronavírus de pessoa para pessoa. Mas não conseguiremos mudar o curso dessa curva exponencial, a menos que haja um pleno envolvimento nacional nesse compromisso de tentar reduzir a disseminação. Acho que estamos chegando lá; certamente nos últimos dias parece que muitos estão acordando para a gravidade da ameaça, mas obviamente isso não é universal em todo este grande e complicado país.”

Desde a nossa entrevista, estamos vendo o que “acordar” significa em termos concretos: Ohio está adiando sua primária presidencial e ordenando que restaurantes e bares fechem a partir das 21h; o estado de Washington e Maryland anunciaram o fechamento de restaurantes e bares (exceto para entregas e retiradas), além de locais de entretenimento e instalações recreativas. Os novos decretos do governador de Washington, Jay Inslee, também exigirão ocupação reduzida dos pontos de venda. A Califórnia pediu que todas as pessoas com 65 anos ou mais se recolham a suas casas. Em Los Angeles, o prefeito Eric Garcetti fechou cinemas e academias de ginástica, enquanto a Bay Area está fechada, exigindo que as pessoas fiquem em casa, exceto por necessidades essenciais. Mais de 30 estados fecharam escolas. Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CCPD) recomendaram no domingo [15/03/2020] que nenhum evento com 50 pessoas ou mais – incluindo casamentos, festivais, desfiles, shows, eventos esportivos ou conferências – seja realizado nos Estados Unidos pelas próximas oito semanas. Na segunda-feira [16/03/2020], deram um passo a mais, dizendo que deveríamos evitar encontros com mais de dez pessoas.

Quando perguntei a Collins o que mais o surpreendeu sobre o coronavírus, na sua perspectiva de médico e cientista, ele me disse: “O grau em que isso é tão rapidamente transmissível. Mais do que a SARS² era. A SARS foi uma situação terrivelmente assustadora para o mundo há 18 anos, mas nunca atingiu o nível de infecções ou mortes que temos através desse coronavírus, porque não era tão transmissível. A SARS era transmissível, mas apenas de pessoas realmente muito doentes. Este [vírus] parece ser transmissível por pessoas que têm doenças menos graves ou talvez nenhuma doença – e é por isso que tem sido tão difícil controlar ou saber quando você deve impor essas medidas rigorosas sobre as quais estamos falando. Se você esperar até que tenha visto muitos casos de pessoas afetadas, saberá que esperou demais, porque o número de pessoas que ainda não foram ao sistema de saúde, mas que já estarão infectadas, será provavelmente 100 vezes maior que o número de casos conhecidos.”

O que está sendo feito para ajudar os hospitais sobrecarregados, perguntei a Collins, e o que dizer sobre os aparelhos de ventilação e equipamentos de proteção?

“Há um grande esforço para tentar nos preparar para isso em termos de um levantamento de equipamentos de proteção individual; existe um estoque nacional e estamos tentando descobrir qual a melhor forma de distribuí-lo onde for mais necessário”, ele me disse.

“Todo hospital está analisando quais podem ser suas capacidades e o que eles precisam fazer para montar instalações adicionais nas proximidades. Com as universidades fechando para os estudantes, é possível que precisemos ter o espaço universitário usado como ambiente extra para atendimento aos pacientes. Há muitas preocupações sobre a existência de profissionais de saúde suficientes, especialmente em locais que já tinham poucos médicos, como nas comunidades rurais. Há um grande esforço organizado por meio dos [Serviços Humanitários e de Saúde], mas obviamente muito disso se resumirá ao que acontece no nível da comunidade. E muito disso dependerá se teremos êxito em achatar essa curva, de modo que a necessidade de atenção médica intensiva se estenda ao longo de vários meses, em vez de nos atingir de uma só vez nas próximas semanas.”

Como ainda não temos uma vacina, nem temos ainda uma terapêutica que funcione, o melhor meio de tentar impedir o que Collins diz que “poderia ser um resultado realmente terrível,” além do distanciamento social, é usar desinfetantes e lavar bem as mãos com água quente e sabão por 20 segundos tantas vezes durante o dia quanto possível. “Todas estas práticas parecem medievais, mas funcionam,” ele me disse.

Segundo Collins, o mais rápido que uma vacina estará disponível é de um ano a 18 meses, ainda que “seja desenvolvida em tempo recorde”, de modo que isto está fora de questão por enquanto. (Começaram os ensaios de fase 1 com uma vacina em 45 voluntários na segunda-feira [16/03/2020].) De forma mais encorajadora, ele disse: “Espero que os aspectos terapêuticos – principalmente com um medicamento chamado remdesivir, que está agora em testes clínicos na China, Japão, Coréia do Sul e EUA – mostrem que esse antiviral em particular tem uma eficácia considerável para pessoas que estão muito doentes. Ajudaria muito se tivéssemos um medicamento que pudesse ser oferecido às pessoas que mais precisam.”

Ele acrescentou: “Trata-se de um medicamento que foi desenvolvido em parte por pesquisadores acadêmicos apoiados pelo NIH e depois utilizado pela Gilead³, e que demonstrou forte eficácia contra a MERS [4], relacionada ao coronavírus, em um modelo animal. Mas espera-se que este medicamento possa ser benéfico nesta pandemia atual. Se tivéssemos isso como uma potencial intervenção médica para as pessoas que mais precisam, isso poderia mudar muito as coisas para melhor, porque toda as previsões pressupõem que não há nada que possamos oferecer, exceto cuidados de suporte.” Os primeiros testes devem dar resultado ainda nesta primavera [outono no Brasil], segundo Collins.

Perguntei a Collins quando imagina que o sistema de testes chegaria a um ponto que o deixaria feliz e daria aos americanos as informações que ele considera necessárias.

“Espero que nas próximas duas semanas cheguemos lá. Pode começar nas regiões em que a incidência da doença pareça ser a mais alta, para depois ser estendido rapidamente pelo país. Esse modelo de instalações de teste drive-through em estacionamentos parece ser a melhor maneira de tornar isso acessível a pessoas que realmente deveriam fazer o teste. Mas isso é muito complicado de montar. Vai precisar uma quantidade enorme de partes móveis para serem montadas.”

Collins admitiu, como Fauci, que as falhas, muito divulgadas, dos testes do CCPD foram um fiasco. “É realmente lamentável que os testes tenham começado tão mal. O CCPD tinha um plano, e é certamente o que eles fizeram antes, como com o H1N1, para o qual eles têm capacidade de montar um teste rapidamente e distribuí-lo aos departamentos de saúde do estado. Lembre-se, o CCPD é uma organização federal, mas a maior parte do que eles tentam fazer tem que ser feita através dos departamentos estaduais de saúde, que geralmente são subfinanciados e despreparados para um evento como o que estamos vendo agora.”

Collins, que é um homem íntegro e honesto, acrescentou: “Infelizmente, o desenvolvimento muito rápido desse teste acabou fornecendo kits defeituosos por razões que eu não entendo completamente. Isso significa que perdemos um período de talvez três semanas enquanto eles tentavam descobrir como resolver o problema. Enquanto isso, o FDA (Food and Drug Administration), que normalmente é bastante rigoroso sobre quem pode oferecer testes desse tipo, que terão um impacto profundo na tomada de decisões clínicas, decidiu relaxar esse rigor para conceder licença a outros laboratórios que tinham feito seus próprios testes, para começar a usá-los. Mas isso aconteceu no último dia de fevereiro, depois de muito tempo, quando os testes já deveriam estar amplamente disponíveis. Em fevereiro, havia um plano para começar a amostragem em cinco cidades com qualquer pessoa que aparecesse em uma sala de emergência com uma doença semelhante à gripe e que apresentasse resultado negativo para influenza – para que pudéssemos começar a descobrir qual é a presença do coronavírus na comunidade. Mas esse plano não aconteceu porque o teste não estava funcionando. Agora estamos correndo atrás.”

Quando perguntei a Collins o que isso significa especificamente, ele disse: “Isso está indo na direção de termos instalações de drive-through na Walgreens, Walmart e Target, para onde você pode se dirigir após obter uma aprovação on-line. Isso significa que você deveria ter necessidade específica para o teste, ou seja, você precisaria ter algum tipo de sintoma. Você poderia, então, fazer o teste sem sair do carro, para não expor outras pessoas.” A esperança é que isso aumente muito a possibilidade de se fazer testes, o que aconteceu, por exemplo, na Coréia do Sul, onde eles realizaram dezenas de milhares de testes dessa maneira.

“Já existem instalações desse tipo drive-by em New Rochelle, Nova York, e em alguns outros lugares do país. Esse parece ser o tipo certo de modelo. Gostaria que tivéssemos essas coisas funcionando há um mês. Estaríamos em uma posição muito melhor para saber o que está por vir. Mas aí está, não podemos voltar atrás e reinventar isso, e estamos fazendo todos os esforços para que isso aconteça o mais rápido possível.” (Esta é uma incumbência muito mais do CCPD do que do NIH, mas o NIH está fazendo o possível para ajudar.)

Perguntei ao diretor do NIH qual seria o melhor cenário. “A melhor expectativa seria que as medidas que estão sendo implementadas na maioria dos estados, algumas mais rápidas que outras, retardem a transmissão do vírus, para que se estenda por muitos meses, e não pelas próximas três semanas”, disse ele. “É isso que queremos dizer com ‘achatar a curva’ para dar ao sistema de saúde a chance de cuidar daqueles que estão gravemente doentes. Dessa forma, não teremos um exemplo como o da Itália em nosso próprio país. Além disso, espero que a chance de esse vírus começar a desaparecer durante a chegada de temperaturas mais altas se torne realidade. Isso certamente ajudou com a gripe. Não temos motivos para pensar que isso se aplique necessariamente ao coronavírus, mas pode ser. Então, vamos torcer por isso.”

Collins também falou sobre responsabilidade cívica e a importância do altruísmo em meio a uma pandemia.

“Acho que nós, como nação, temos que tomar a atitude de não apenas pensar em nós mesmos, mas pensar em todos os outros ao nosso redor, e particularmente nas pessoas mais vulneráveis ​​- aquelas que são mais velhas e as que têm doenças crônicas. Os jovens podem ter um risco relativamente baixo de doenças graves, as crianças parecem ter um risco muito baixo, mas se você quiser evitar o que poderia ser a morte de centenas de milhares de pessoas, então todos nós devemos limitar drasticamente nossas interações sociais. Precisamos nos perguntar sobre todas as interações que temos, se são necessárias ou não. Eu quero enfatizar muito isso. Obviamente, as pessoas precisam ter comida em casa e fazer outras coisas absolutamente essenciais, mas, mais do que isso, devemos nos predispor a nos submetermos ao mais rigoroso isolamento.”

Ele acrescentou: “Isso significa que todos precisamos assumir a responsabilidade, mesmo que pensemos que somos relativamente impermeáveis ​​a esta doença. Seria fácil para um jovem olhar os dados e dizer: ‘Bem, sabe, e se eu pegar isso? Provavelmente vou ficar bem.’ Mas você tem que se considerar também como um veículo [do vírus] para outras pessoas vulneráveis. Mesmo que você ache que não precisa deste tipo de isolamento para o seu próprio bem, deverá fazer isso pelo resto do país – e principalmente pelos seus avós e outras pessoas que estão em estado vulnerável.”

Collins também apresentou uma perspectiva geral para os americanos.

“Acho que as pessoas precisam estar preparadas para que estejamos nesta situação por mais tempo do que gostariam,”

disse ele. “De certa maneira, o melhor sinal de que estamos progredindo será se a duração da epidemia for um pouco maior. É isso o que significa achatar a curva. Isso significa que os casos mais graves se estendem ao longo do tempo e nem tudo acontece logo no começo. Portanto, qualquer pessoa que esteja imaginando que tudo vai acabar dentro de um mês precisa pensar no fato de que estamos nisso, eu acho, por um longo período. Não consigo imaginar que as escolas que decidiram dispensar os alunos por duas semanas voltarão às aulas após esse período, nem provavelmente durante todo o ano letivo. Penso que estamos enfrentando o fato de que, pelo menos até junho, todos precisamos tomar a atitude de encarar isso com a maior seriedade – o que significa que todas as pessoas devem se responsabilizar por isso e não ficar inventando razões pelas quais isso não seja necessário.”


Tradução: Roberto Covolan


Leia a Parte 2.


Notas

  1. Os Institutos Nacionais da Saúde (em inglês: National Institutes of Health, NIH) são um conglomerado de centros de pesquisa que formam a agência governamental de pesquisa biomédica do departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, com sede em Bethesda, Maryland. É o maior centro de pesquisa biomédica do mundo, com cerca de vinte mil funcionários. (Fonte: Wikipedia)
  2.  SARS: Severe Acute Respiratory Syndrome (Síndrome respiratória aguda grave).
  3.  Gilead é uma empresa norte-americana de biofarmacologia.
  4.  MERS: Middle East Respiratory Syndrome (Síndrome respiratória do Oriente Médio).

Leia em seguida: Coronavírus e Progresso

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