Por Davi Pereira do Lago

 Considerando a missão da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência em operar como uma embaixada de sentido entre o universo da fé cristã e o universo da ciência, e seu objetivo em “promover o diálogo aberto, honesto e respeitoso entre estes dois campos, tendo sempre e conta a liberdade e a soberania das respectivas esferas sociais e as finalidades intrínsecas de cada esfera”[1], propomos no presente texto algumas reflexões a partir de uma leitura de Tzvetan Todorov – sobretudo sua análise do cientificismo e do moralismo a partir do Iluminismo.

Nascido na Bulgária e radicado na França desde os anos 1960, Todorov faleceu no dia 7 de fevereiro de 2017, aos setenta e sete anos. Intelectual prolífico, defendeu a tese Literatura e significação (1967) sob orientação de Roland Barthes e deixou diversos ensaios abrangendo temas literários, políticos e filosóficos. Dedicou-se especialmente nos últimos anos ao estudo dos impasses da civilização, como os novos totalitarismos políticos que emergem no seio das democracias liberais.

Em 2006 Todorov publicou ensaio intitulado O espírito das Luzes, onde reconstruiu a trajetória do Iluminismo. Nessa pesquisa, Todorov apresentou o desenvolvimento do arcabouço teórico do Iluminismo (com as noções de autonomia, laicidade, humanidade, universalidade e verdade) e apontou desvios que esse projeto sofreu em sua implementação histórica. O estudo de Todorov apresenta a distinção iluminista da ação/discurso em dois tipos: aquele cuja finalidade é promover o bem e aquele que aspira a estabelecer o verdadeiro. Os iluministas estabeleceram uma dicotomia entre o domínio da vontade, cujo horizonte é o bem; e o domínio do conhecimento, orientado para o verdadeiro. O exemplo da primeira ação seria a atividade política; da segunda, a ciência. Os iluministas concebiam, assim, uma diferença entre fato e interpretação, entre ciência e opinião, verdade e ideologia.

Nessa perspectiva, o bom desempenho da vida política numa república estaria ameaçado por dois perigos simétricos e inversos: o moralismo e o cientificismo. O moralismo reina quando o bem domina o verdadeiro e, sob pressão da vontade, os fatos se tornam uma matéria maleável. O cientificismo se impõe quando os valores parecem decorrer do conhecimento e as escolhas políticas se travestem em deduções científicas sendo definido por Todorov como “uma doutrina filosófica e política nascida com a modernidade, que parte da premissa de que o mundo é inteiramente passível de conhecimento; então passível de transformação de acordo com os objetivos que nos colocamos”[2].

De acordo com Todorov, nos regimes totalitários do século XX, moralismo e cientificismo foram engolfados por um terceiro fator ainda mais danoso: a apropriação do Estado da própria noção de “verdade”. Segundo Todorov:

não é somente que nele os homens políticos recorram ocasionalmente à mentira – eles o fazem em todo lugar. É antes a própria distinção entre verdade e mentira, verdade e ficção que se torna supérflua, face às exigências puramente pragmáticas de utilidade e de conveniência. É por isso que nesses regimes a ciência não é invulnerável aos ataques ideológicos e a noção de informação objetiva perde seu sentido. A história é reescrita em função das necessidades do momento, mas as descobertas da biologia ou da física podem também ser negadas se forem julgadas inapropriadas[3].

Para Todorov, moralismo, cientificismo e as mudanças no estatuto da verdade foram gravemente comprometidos após as experiências totalitárias do século XX. Contudo, essas ameaças às estruturas sociais não deixaram de existir, simplesmente assumiram novas formas no início do século XXI. Então, como cientificismo, moralismo e totalitarismo se reconfiguraram no mundo contemporâneo?

Tzvetan Todorov apresentou novas reflexões sobre o assunto em 2012 no estudo Os inimigos íntimos da democracia. Após examinar o tema da barbárie em 2008[4], sua pesquisa de 2012 partiu da ideia de que o principal acontecimento político do século XX foi o choque entre o espírito democrático e o espírito totalitário. Todorov afirmou que a derrocada do nazi-fascismo em 1945 e o fim do comunismo soviético – simbolizado na queda do Muro de Berlim em 1989 – cravaram a vitória das democracias liberais. Segundo Todorov, os países mundo afora que continuam a invocar a ideologia comunista, “não são percebidos como uma ameaça, e sim como anacronismos que não podem sobreviver por muito tempo”[5]. Desse modo, as democracias liberais no início do século XXI não teriam mais nenhum inimigo externo. O terrorismo islâmico, por exemplo, não representaria um opositor teórico sério. Segundo Todorov, “nenhum modelo de sociedade diferente do regime democrático se apresenta hoje como seu rival; muito pelo contrário, vê-se uma aspiração à democracia se manifestar quase por toda parte onde ela antes estava ausente”[6]. Assim, os novos inimigos da democracia liberal seriam aqueles gerados dentro de si própria. Esses inimigos sutis são travestidos como autênticos valores democráticos. Todorov afirmou que as democracias atuais são um complexo e intricado arranjo de valores como: autonomia, liberdade e progresso. Mas se qualquer desses valores se emancipar de suas relações com os demais, se torna uma ameaça, como por exemplo: populismo, ultraliberalismo, messianismo.

Assim, no início do século XXI, aquilo que os iluministas enfrentaram como moralismo e cientificismo, de acordo com Todorov, enfrentamos hoje como descomedimentos internos nas democracias liberais. Entre esses descomedimentos, omessianismo político seria um dos mais complicados. Para Todorov o messianismo político atravessa uma fase específica na contemporaneidade: a imposição da democracia pelas bombas. Nessa fase, que se iniciaria nos anos 1989-1991, os Estados ocidentais atuariam para impor o regime democrático e os direitos humanos pela força. O messianismo político seria, assim, um novo moralismo, um novo modo de impor o Bem. As guerras da história recente como Kosovo, Afeganistão, Iraque, Líbia seriam exemplos disso, e se assemelhariam às Cruzadas medievais. E por que isso é perigoso? Por que é arriscado o projeto de impor o Bem? Todorov responde:

Ao longo da história, numerosas intervenções militares recorreram a essa postura quase moral, mas elas parecem caracterizar mais particularmente o messianismo político ocidental. O esquema é o mesmo: no momento da ação, anunciam-se as intenções universais e morais – trata-se de melhorar a sorte da humanidade, ou a de uma de suas partes –, o que provoca um movimento de entusiasmo e, por conseguinte, facilita a realização do projeto. As pessoas se persuadem de que, pelo simples efeito da vontade coletiva, é possível alcançar qualquer fim e avançar indefinidamente no caminho do progresso. Algum tempo depois – um ano, um século –, percebe-se que o objetivo pretensamente universal não o era, que ele correspondia sobretudo aos interesses particulares daqueles que o tinham formulado[7].

Depois desta obra, Tzvetan Todorov escreveu e publicou seu último trabalho em 2015: Insoumis (ainda sem tradução para o português)Nesse livro, Todorov deu sua última contribuição intelectual apresentando o perfil de “resistentes” ou “dissidentes” de regimes políticos/ideológicos opressores – como a etnóloga francesa Germanine Tillion, o poeta russo Boris Pasternak e o ativista Nelson Mandela[8].

A análise de Todorov é extremamente útil pois amplia nossa compreensão sobre as tensões teórico-políticas que delineiam hoje as relações entre Estado, ciência e a fé cristã. Como discípulos de Jesus comprometidos com o testemunho fiel do evangelho, consideramos ser muito importante uma visão ampla e acurada dos componentes estruturantes do debate público contemporâneo. Isso nos permite traçar linhas de reflexão e ação sérias e produtivas. Como afirmou James W. Skillen, “o testemunho público cristão é fundamental para nossas vidas em Cristo como discípulos fiéis em tudo aquilo que ele nos chamou a fazer”[9].

Assim, a partir das questões levantadas por Todorov e suas interseções no diálogo entre fé cristã e comunidade científica, propomos as seguintes reflexões:

Primeiro, é necessário confrontar a nebulosa ligação que o cientificismo contemporâneo estabelece entre teoria científica e discurso político. Todorov demonstrou a desonestidade intelectual e violência política cometida pela postura cientificista que tenta dar ares de “ciência” à decisões puramente ideológicas. Contudo, podemos também apontar a inconsistência conceitual em que o cientificismo cai ao tentar expandir uma teoria científica ao discurso político. Isto porque, por definição, uma teoria científica não é uma verdade. Ciência não é a “verdade” ou a “conclusão”, ciência é um devir, devir do avanço do saber humano. Ciência não é uma última palavra, mas uma interminável e exigente perquisição, pautada em axiomas, saltos epistemológicos e raciocínio indutivo. Desde Karl Popper, a ciência possui um caráter teoricamente provisório daquilo que ainda não foi demonstrado falso.

Ademais, ao propor que entre uma teoria científica e o discurso político exista um nexo lógico obrigatório, os cientificistas contemporâneos retrocedem às concepções positivistas da ciência do século dezenove – que foram atropeladas após a experiência dos totalitarismos do século XX. Teorias, dados científicos, fatos tecnológicos obviamente são referências importantes para decisões jurídico-políticas, mas sempre em conjunto com outras estruturas discursivas que compõem a sociedade. Quando o cientificismo se coloca como juiz supremo acima de outros saberes ou crenças, ele na verdade se equipara a esses saberes e crenças. Em quais bases filosóficas poderia se impor o cientificismo sobre as demais crenças numa sociedade plural? Como observou J. V. Casserley, o cientificismo acaba se tornando nada mais que uma nova forma de crença, com uma nova forma de salvação[10].

Segundo, devemos ser resolutos em combater toda sorte de moralismo no que concerne às teorias científicas. O combate ao moralismo precisa começar em nossas próprias ações como cristãos, pois assim teremos autoridade e credibilidade para combater o moralismo de modo coerente. Especialmente em relação à nossa comunidade de fé cristã, penso que não nos cabe mais fazer drama quando alguma “novidade científica” aparentemente “ferir nossas convicções”. Este ponto é simples e claro. Poderíamos aqui levantar sólido baldrame bíblico-teológico, mas não é o caso. Basta perceber o contrassenso elementar que é qualquer tentativa de impor a fé cristã à força: seja na esfera política, seja na científica.

Se a comunidade cristã se comportar de modo adequado nessas questões, ela pode se tornar um agente respeitado no combate a moralismos, messianismos políticos e discursos congêneres – que não passam de formas de violência política e desonestidade intelectual. Entes sociais não devem impor suas visões particulares sobre teorias científicas. Vale pontuar ainda: se alguém não concorda com determinada teoria científica, que crie e desenvolva uma teoria superior. Como afirmou Carl Hempel – citado por John Byl: A transição de dados para teoria requer imaginação criativa. Hipóteses e teorias científicas não são derivadas de fatos observados, mas são inventadas para explicar ou justificar os dados”[11]. Além de criteriosa pesquisa, teorias são fruto de criatividade e imaginação – talentos difíceis de encontrar na era de memes e massificação cultural.

É preciso ainda alertar que o combate ao moralismo se torna ainda mais importante nesses tempos de pós-verdade e política pós-fatual. “Pós-verdade”, expressão eleita como “Palavra do ano 2016” pelo Dicionário Oxford é definida como “momento onde os fatos objetivos são menos influentes do que as emoções e as crenças pessoais na modelagem da opinião pública”[12]. Ou seja, “pós-verdade” é essa situação onde os debates políticos se transformam em discussões emocionais, não importando tanto a realidade concreta. Se algo aparenta ser verdade, na prática se torna uma verdade, é mais importante que a verdade. Pós-verdade está em sintonia com o moralismo e o messianismo político onde a verdade resulta de um desejo, ou, colocado de outro modo: os desejos determinam o que é a verdade.

Terceiro, a convivência pacífica de crenças antinômicas é uma necessidade imperiosa na democracia contemporânea. São absolutamente temerários quaisquer disparates messiânico-políticos em um mundo com arsenais atômicos, redes terroristas, armas químicas, drones militares e demais artefatos que eventualmente exterminariam a humanidade e a vida no planeta Terra. Para o Pe. Hubert Lepargneur:

a coexistência pacífica não resulta da convergência das convicções, mas de um modo vivenciado de mútuo respeito das competências, liberdades ou terrenos de expressão”[13].

Portanto, tanto a comunidade cristã como a comunidade científica, como comunidades basilares na construção histórica e conjuntura atual da civilização, deveriam atuar como forças opostas à intolerância.

Como Gustave Thils propôs, no meio universitário a igreja é sempre e por toda parte instrumento de reconciliação: “entre facções rivais, clássicos e modernos, faculdades, raças, etc., e essa reconciliação é realizável, quaisquer que sejam as ideologias religiosas ou políticas”[14]. Os campi universitários, nesses tempos de recrudescimento do fanatismo religioso, aumento visível da xenofobia, do racismo, da polarização político-ideológica, apresentam-se como uma das arenas centrais onde a igreja poderá resplandecer sua luz diante dos homens, “para que vejam suas boas obras e glorifiquem seu Pai que está nos céus”.


NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CRISTÃOS NA CIÊNCIA. Quem somos. Disponível em: https://www.cristaosnaciencia.org.br/quem-somos/ Acesso em 22 de fev. de 2017.

[2] TODOROV, Tzvetan. O espírito das Luzes. São Paulo: Barcarolla, 2008, p.88.

[3] TODOROV, 2008, p.95.

[4] TODOROV, Tzvetan. La paura dei barbari: oltre lo scontro dele civiltà. Milano: Garganti Elefanti, 2016.

[5] TODOROV, Tzvetan. Os inimigos íntimos da democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p.12.

[6] TODOROV, 2012, p.14.

[7] TODOROV, 2012, p.83.

[8] TODOROV, Tzvetan. Resistenti: Storie di donne e uomini che hanno lottato per la giustizia. Milano: Gargazanti, 2016.

[9] SKILLEN, James W. Witness in the Public Square. Unio Cum Christo: International Journal Of Reformed Theology And Life, Philadelphia, Pennsylvania, vol.1, n.1-2. Westminster Theological Seminary/International Reformed Evangelical Seminary, 2015, p.160.

[10] CASSERLEY, J.V. Langmead. Absence du Christianisme: l’Apostasie du monde moderne. Paris: Desclée de Brouwer, 1957, p.58.

[11] BYL, John. Deus e cosmos: uma visão cristã do tempo, do espaço e do universo. São Paulo: PES, 2003, p18-19.

[12] ENGLISH OXFORD DICTIONARIES. Post-truth. Disponível em: https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016 Acesso em: 19 de fev. 2017.

[13] LEPARGNEUR, Hubert. Ciência e descrença hoje. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, RJ, n.253, v. LXIV, p.53-74, jan. 2004.

[14] THILS, Gustave. Cristianismo sem religião? Petrópolis, RJ: Vozes, 1969, p.51.

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