por Gerrit Glas

I.  Quem é o homem?

Nenhuma questão parece estar mais intensamente vinculada com a busca de sentido último e o significado da existência do que a questão do homem. Na pressa do dia a dia as pessoas estão inclinadas a ignorarem esta questão – até que a doença ou um acidente os acometa, ou o sofrimento de outros se torne um fato inescapável.

Não é sem razão que a questão do homem, do que ele é, surja em situações onde, de uma ou outra forma, o mal é mani- festo. É assim que foi quando a história começou, quando o primeiro casal humano se escondeu, revelando a consciência de si mesmos – nus e vulneráveis um em relação ao outro e em relação ao Criador. É assim que ainda é hoje, quando as pessoas descobrem que “pessoas comuns” são capazes de ódio e de matarem uns aos outros.

O questionamento filosófico em relação ao homem nunca pode ser um tema puramente acadêmico; a relação entre a autorreflexão e o mal proíbe isto. O pensador judeu Abraham Joshua Heschel (1966, 13-14) é muito franco sobre isso:

A filosofia, para ser relevante, deve oferecer uma sabedoria pela qual se possa viver – relevante não apenas no isolamento de nossas salas de estudo, mas também em momentos nos quais enfrentamos a chocante crueldade e a ameaça do desastre. A questão do homem deve ser ponderada não apenas nos salões do saber, mas também na presença de reclusos em campos de extermínio e no suspiro perante  a nuvem de cogumelo resultante de uma explosão nuclear.

Mas mesmo à parte de todas as formas de violência, a questão “o que é o homem?” é urgente em nossos dias. Pense nas várias facetas do tema da ‘identidade’. A ‘depilarização’ (ontzuiling)2 trouxe um vácuo de tal forma que muitos não podiam mais articular sua identidade na linguagem tradicional de cosmovisão, igreja e outras instituições. O fluxo de trabalhadores migrantes, fugitivos e aqueles em busca de asilo tornou a sociedade multicultural. Esta ‘estranheza’ re- direcionou as pessoas do ocidente à sua própria identidade (ver, por exemplo, Kristeva 1991). O liberalismo e o individualismo lançaram as pessoas sobre si mesmas e contribuiu para um clima no qual os mais fracos se sentem inseguros e ameaçados. Novos meios de comunicação trouxeram as pessoas em contato com virtualmente todos no mundo global. Na sociedade de redes, a identidade é representada como uma marca. Ser você mesmo significa ser forte, demonstrar quem você é, se incluir na foto. Abaixo disso, pode-se sentir insegurança e confusão. Existe uma falta de significado   e uma necessidade de modelos e papéis para convencer. O self (pós)moderno tem se tornado dependente, carente e insatisfeito.3

I.    Antropologia filosófica: Uma breve exploração

  1. A tarefa de uma antropologia filosófica

Existem, então, muitos aspectos da questão ‘O que é o homem?’ – moral, sociocultural, psicológico, linguístico e até mesmo biológico. Por muito tempo tem sido a tarefa da antropologia filosófica estudar a coerência destes aspectos. Nós podemos chamar isto de lado estrutural da inquirição filosófica antropológica. Filósofos têm estado conscientes de que este estudo não pode ser separado das visões das pessoas sobre o significado e o propósito da vida. Ele surge naturalmente às pessoas que querem orientação, que sondam o horizonte em busca de algo que faça a existência digna, que buscam significado. Consequentemente, a vida humana é caracterizada por inquietude e dinamismo.

De forma resumida, nós podemos dizer que a antropologia filosófica se relaciona com a questão da natureza do homem, ou seja, da natureza estrutural e o dinamismo de ser humano. Existe, por exemplo, uma natureza humana universal? E se sim, pode este ‘universal’ ser caracterizado mais especificamente?

A questão sobre a natureza humana se divide em inúmeras sub-questões. Pode-se selecionar três delas:

  • a questão da distinção entre homem e animal;
  • a questão da relação entre corpo e espírito (ou mente);
  • a questão da identidade da

Todas as três questões são extremamente atuais na filosofia contemporânea. Deixe-me ilustrar isso na seguinte análise.

  1. A distinção entre homem e animal

Muita reflexão sobre o homem é inspirada pela biologia evolucionária, a sociobiologia e a psicologia evolutiva, que  é enxertada na última (ver Wilson 1975, Pinker 2002, Buller 2006). A busca é por paralelos entre o comportamento animal e o humano. O mundo animal é determinado pelas leis da seleção natural e a sobrevivência do mais apto. De forma similar, no mundo do homem os tipos de comportamentos que prevalecem são aqueles que têm a vantagem reprodutiva mais alta e o valor de sobrevivência. O debate sobre o altruísmo demonstra como mesmo um comportamento moral é pensado como sendo explicado por mecanismos evolutivos.

Certamente, para alguns partidários destas noções, os homens e os animais são diferentes. A diferença é que os seres humanos chegam ‘inacabados” e desamparados ao mundo. Comparado à grande parte dos animais, o bebê é ‘atrasado’. Em contraste com os animais, falta-lhe as habilidades necessárias para se permanecer vivo e este depende da assistência e do apoio externo. Durante seu desenvolvimento, ele tem de aprender a lidar com situações continuamente mutáveis. Ser humano implica transformar esta desvantagem, a falta de um equipamento específico para o ambiente, em uma vantagem, uma habilidade de manter-se flexivelmente em situações das mais diversas.

Foi o filósofo Friedrich Nietzsche que falou do homem como um ‘das noch nicht festgestellte Tier’ (o animal ainda não de- terminado), antecipando assim a teoria do atraso, mencionada acima.4 Arnold Gehlen (1988) pontua que esta caracterização é propositalmente ambígua. O homem não é apenas inacabado, ainda não preparado para suas tarefas e ocupado incorporando habilidades que servem à adaptação e à sobrevivência, ele também é aberto ao mundo. Em um sentido muito literal, ninguém ainda ‘determinou’ o que o homem é, e é provável em princípio que isto não possa ser feito. Se algo é de fato universal da natureza humana, é sua indeterminação, o posicionamento nunca finalizado em relação ao seu Umwelt (ambiente) e a si mesmo.

  1. A relação entre corpo e espírito (mente ou alma)

Bibliotecas contêm pilhas de escritos sobre a relação entre corpo e espírito. Então eu me restringirei àquilo que é absolutamente necessário aqui.5

Visões sobre a relação entre corpo e espírito podem ser grosseiramente divididas em dois grupos principais: concepções monistas e concepções dualistas.

 

 

Concepções dualistas têm sempre sido intuitivamente atrativas, porque elas correspondem com a percepção da morte. O espírito (ou alma) é identificado com o espírito da ‘vida’, i.e. o corpo vivo. Este espírito não apenas inclui as faculdades psíquicas mais elevadas, mas também a respiração, a temperatura e a locomoção. O corpo rígido e frio é um corpo do qual o espírito fugiu. O último suspiro é o momento da partida da alma.

Existem inúmeras versões desta visão dualista. No dualismo hierárquico, o espírito é de uma ordem mais elevada do que a do corpo. Platão, por exemplo, dispensou o sensível e o tangível. O corpo é a prisão da alma, ela está comprometida por toda a vida a participar no mundo divino das ideias eternas, mais elevado. A alma, no entanto, é oposta nesta busca pelo corpo, ligado ao sensível e aos desejos terrenos, inferiores. Em Phaedrus de Platão, lemos a famosa comparação do cocheiro que tenta controlar um par de cavalos – um deles é nobre e bom, enquanto o outro tem o caráter oposto. O cavalo alado esforça-se em direção ao alto, par ao arco do céu, enquanto o cavalo que abandonou suas asas quer permanecer ligado à terra (246a ff). Em Aristóteles, também encontramos uma visão hierárquica embora, para ele, o esquema elevado-inferior não signifique primariamente posicionar a alma em relação ao corpo. Este traz ordem aos vários ‘princípios de forma’, cada qual manifestando um tipo particular de alma. Aristóteles distingue entre a alma nutritiva, expressa na vida da planta; a alma sensitiva, expressa par excellence no mundo animal; e a alma pensante, típica do ser humano (De anima 408a 16-17; 414a 30 – 415a 14; 433a 9 – 435a 10).

Outra versão do dualismo é o interacionismo dualista. René Descartes (1596-1650), um dos mais importantes representantes desta abordagem, descreveu o corpo e a alma como duas ‘substâncias’ radicalmente diferentes, sendo o corpo caracterizado pela extensão espacial (res extensa) e a alma pela habilidade de pensar (res cogitans). Ele localiza a consciência imaterial em contraposição ao corpo material (dualismo). Corpo e alma são de ordens totalmente distintas, em- bora eles exerçam influência sobre o outro (interação) por meio da glândula pineal, um pequeno órgão na parte inferior do cérebro. O filósofo Karl Popper e o neurofisiologista John Eccles, que juntos escreveram um livro (1977) sobre o problema da mente-corpo (ou mente-cérebro), pertencem aos partidários mais recentes do interacionismo dualista, mesmo sem apoiarem a teoria dúbia da glândula pineal.

Uma versão separada de dualismo é o epifenomenalismo. O espírito, ou mente, é considerado como um produto colateral (epifenômeno) da atividade cerebral. A direção causal é unilateral: o corpo, i.e. o cérebro, causa processos mentais, e não o contrário. A atividade mental não pode causar a ati- vidade neural. Uma vez que nenhuma independência separada do corpo material é atribuída à mente, o epifenomenalismo é às vezes contado como pertencendo ao grupo das concepções monistas. Outro termo corrente, mais popular, que é utilizado para esta última concepção, é fisicalismo não-eliminativo – fisicalismo porque existe apenas uma realidade, a realidade física; não-eliminativo, porque os fenômenos mentais não são reduzidos ao fenômeno físico. Eles são, ao invés disso, pensados como “supervenientes” sobre o mundo físico (Kim, 1993).

Uma última variação do dualismo corpo-espírito que deveria ser mencionada é o paralelismo psicofísico. Como Descartes, defensores desta visão olham para o corpo e a mente como duas substâncias separadas e dessemelhantes. Eles diferem de Descartes, no entanto, porque eles rejeitam uma interação possível. Entre o corpo e a mente não existem conexões causais. Quando você fica com a face vermelha, este não é o efeito do sentimento interno de raiva. Nós podemos ter a impressão de que as condições da mente influenciam o corpo, mas isto ocorre porque eles funcionam ‘lado a lado’ em uma harmonia perfeita. A relação entre o corpo e a mente é de simultaneidade. Em versões religiosas desta abordagem Deus é visto como aquele que efetua as cadeias paralelas de eventos tanto no corpo quanto na mente (ocasionalismo).

As visões monistas de forma característica compartilham a rejeição de uma distinção essencial entre corpo e mente. Em alguns casos, o espiritual é reduzido ao corpóreo (materialismo); em outros casos – menos frequentes -, o corpóreo é reduzido ao espiritual (idealismo, psicomonismo). A assim chamada teoria da identidade oferece uma terceira variação: tanto o corpo quanto a mente são manifestações de uma e a mesma realidade de fundo. Corpo e mente não são entidades separadas; elas são formas de aparecer ou funcionar (ou maneiras de falar) sobre aquilo que na base é o mesmo, portanto idêntico.

Os vários dualismos e monismos, como descritos acima, são tipos ideais. No momento, o debate sobre a relação entre o cérebro e a mente é muito vivo, influenciado como é pelos desenvolvimentos em psicologia cognitiva e neurobiologia. Debatedores discutem todo um espectro de formas inter- mediárias ou híbridas das versões mencionadas. Uma importante mudança no cenário diz respeito ao significado do termo ‘teoria da identidade’. Hoje, este termo geralmente se refere a formas de materialismo (ou fisicalismo). Aquilo que é ‘idêntico’ é o mundo físico (ou material). A existência de propriedades mentais é aceita, mas a existência de entidades mentais é negada. Colocando de uma forma diferente, a existência dos fenômenos mentais é reconhecido como uma realidade epistemológica, mas não como uma realidade física (por isso o termo fisicalismo não-eliminativo ou não-redutivo) (Kim 1993). O fisicalismo não-eliminativo combina uma metafísica monista com uma epistemologia dualista.


Outros artigos da série Diálogo e Antítese: Conselho aos Filósofos Cristãos, por Alvin Plantinga


  1. Identidade pessoal

Outro tópico filosófico muito discutido atualmente é o tema da identidade pessoal. Nós encontramos um amplo interesse por este na filosofia anglo-saxã, ou analítica, na filosofia hermenêutica e no pensamento pós-moderno.7

Na filosofia o tema da identidade pessoal é inextrincavelmente entrelaçado com inúmeros problemas contumazes na filosofia da consciência. Estas questões não são apenas teóricas, elas também têm um grau de atração intuitiva. O tema básico aqui é, ao tentar responder à questão “Quem sou eu?”, não podemos evitar a consciência. Afinal de contas, a questão é respondida por meio da reflexão. Não pode haver reflexão sem consciência

Nós temos pistas de que há um problema assim que tentamos explicar aos outros como nós experimentamos algo. Ninguém experimenta coisas da maneira que eu o faço, e ninguém é consciente de si mesmo/mesma da maneira que eu sou consciente de mim mesmo/mesma. Em outras palavras, é por causa da consciência que eu sou uma pessoa, um sujeito.

Mas no momento que isto é dito, dois problemas filosóficos importantes emergem:

  1. O problema do solipsismo (literalmente estar a ‘sós’ em ‘si mesmo’). Como eu posso fazer entender a outros como eu experimento as coisas; eu não estou trancado dentro de mim mesmo?
  2. O problema de outras mentes. Como eu posso ter acesso ao mundo interno do outro?

Não é difícil ver que estes problemas são o legado de uma tradição de pensamento começando por Descartes (ver também Van Woudenberg 1992). Em sua busca por certeza última ele chegou ao renomado “Cogito, ergo sum” (penso, logo existo) como o ponto de partida irredutível para todo  o conhecimento. O pensamento não pode encontrar apoio nas realidades fora do homem (eu posso apenas conhecê-los via os conteúdos da minha consciência), não na percepção sensível (que pode se assentar sobre uma ilusão), nem em conceitos estabelecidos (pois eles se originam do costume e da tradição). A única certeza é a existência de minha consciência como uma consciência de dúvida metódica – e assim, o ponto de partida inabalável para qualquer conhecimento. O fato de minha existência – eu sou – é encontrada no pensamento: “Eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeiro a cada momento que isto é expresso por mim, ou concebido em minha mente” (Descartes, 2ª Meditação). Daí (1641) Em diante, a identidade tem estado inseparavelmente conecta- da com a (auto)consciência.

Esta abordagem invoca inúmeras dificuldades, duas das quais foram mencionadas. O solipsismo e o problema de outras mentes. Uma resposta comum a ambas dificuldades é que as pessoas podem relatar suas experiências internas, incluindo as experiências com seus eu(s), ou selfs. Com certeza, nenhum relato será completo, mas isto também é verdadeiro para relatos daquilo que ocorre fora de mim.8 Se o problema do self fosse em grande parte um tema de descrição exaustiva, então este não seria um problema filosófico como havíamos inicialmente suspeitado. Exaustão é uma questão empírica, não uma questão de princípio. Assim, a solução do problema da identidade pessoal não existe na capacidade de relatar (verbalmente) sobre o ‘self’ que está presente, ou re-presentado, na consciência de alguém?

Esta solução, no entanto, não alcança o coração do problema.

Quaisquer que sejam as representações do ‘self’ a que estes relatos se refiram, estas representações são representações de um ‘eu’ consciente que não coincide com a(s) representação(ões). O eu (self) não é idêntico a suas representações, por detrás das representações sempre existe um eu (ou self) re-presentando. E tão logo o self representando é, ele mesmo, representado, então novamente emerge outro eu, ou self, ‘oculto’. Este é o tema do ‘eu retrocedente’- a busca por um eu (ou self) que conduz à regressão infinita. Aplicado ao Cogito de Descartes: ao tentar rastrear o ‘eu’ que pensa, não se chega diretamente ao eu, mas à consciência de tal ‘eu’ pensante. Na origem desta consciência existe novamente um ‘eu’ que está consciente de sua atividade de pensamento – e assim por diante, infinitamente, até que tudo o que reste seja uma ideia sombria do que chamamos de ‘eu’ ou de ‘self’. Quanto mais se raciocina retroativamente, mais enigmático o ‘eu’ se torna.9

Este é o ponto de partida de outra tradição de pensamento sobre identidade, uma tradição cética, que começa com David Hume (1711-1776) e continua até hoje com filósofos tais como Derek Parfit e Daniel Dennett. Hume (1739-1740, 300 [Livro I, Parte IV, Seção 6]) diz:

“De minha parte, quando eu penetro mais intimamente no que chamo a mim mesmo, eu sempre tropeço em uma ou outra percepção particular, de quente ou frio, de luz ou sombra, de amor ou ódio, dor ou prazer. Eu nunca tomo a mim mesmo em qualquer momento sem uma percepção, e nunca posso observar qualquer coisa senão a percepção.”

O eu ou o self não é outra coisa senão uma coleção de percepções. De qualquer maneira, não exis- te algo singular ou idêntico a ser descoberto em mim mesmo. De acordo com Hume, a ‘identidade pessoal’ da qual falamos é essencialmente uma sucessão de percepções que derivam sua coerência a partir de sua similaridade e continuidade no tempo. Recentemente, Parfit (1984) defendeu uma posição similar.

Isto nos traz a outra dificuldade, na abordagem da filosofia da consciência, em relação ao tema da identidade pessoal. Nós notamos que quando o pensamento retrocede para perguntar sobre o eu pensante, o eu modifica-se em uma entidade teórica sombria. Qualquer tentativa de se conhecer o “eu” termina em um tipo de objetificação que aliena simultaneamente o eu, como sujeito, de si mesmo. Na autorreflexão o self se torna um quase objeto, existindo mais ou menos independentemente do sujeito conhecedor. Em outras palavras, a lacuna cartesiana entre o sujeito e o objeto é repetida no autoconhecimento. Mas, como Jean Paul Sartre (1936/1960) disse, o eu não é uma coisa, não é um objeto. O self quase objetivo não faz justiça ao dado mais básico da autoexperiência, a saber, que eu estou envolvido comigo mesmo, que eu posso ser ‘afetado’ e que nos atos que melhor revelam meu ego, eu não tenho meu ‘self’ diante de mim como um objeto ou um projeto, mas deixo meu ‘self’ para trás de mim. A pessoa espontânea, aquele que se esquece de si – é aquele que demonstra mais quem ele é. Em resumo, ligar a identidade humana exclusivamente ao estar-consciente-de-si-mesmo é adentrar no problema da auto-objetificação. Na abordagem cartesiana, esta auto-objetificação é tanto inevitável quanto fatal, pois ela não pode fazer justiça ao fato de que os seres humanos são autoenvolvidos e fundamentalmente subjetivos.

Esta incapacidade de resolver estes problemas indicam que a identidade pessoal não pode ser pensada no quadro de referência da filosofia da consciência cartesiana. Não surpreende, portanto, que muitos filósofos tenham criticado esta abordagem. De forma notável, isto comumente conduz a um tipo mais ou menos mitigado de naturalismo, i.e. uma abordagem que reformula o fenômeno mental em termos de processos naturais (físicos). Isto não significa que nós tenhamos apenas um reducionismo cru (ou materialismo) aqui; de acordo com muitos o mental é, na verdade, uma forma específica e alternativa de descrever processos físicos, uma descrição focada sobre o estado funcional ou condição do corpo ou do cérebro, sobre o ‘como’ em lugar do ‘que’.

Richard Rorty utiliza o exemplo da palavra falada. A linguagem consiste de fato em uma sequência de sons produzidos pelos movimentos da laringe, da língua, da cavidade oral e dos lábios. Análises dos movimentos físicos, no entanto, não nos fornecem o sentido dos sons. O estudo do significado dos sons se dão em uma linguagem diferente daquela da física – uma linguagem que não pode depender da observação imediata, devendo, portanto, apoiar-se na interpretação (Rorty 1980, 355). Em outras palavras, o fato de que nós atribuímos o sentido dos sons a uma substância imaterial, produtora de significado, que nós chamamos de espírito, é o resultado de um hábito equivocado de pensamento. Significados não são entidades imateriais e nem é o espírito. Termos como ‘significado’ e ‘espírito’ não se referem ao ‘que’ de algo imaterial; eles se referem ao ‘como’ do material (movimento da laringe, atividade cerebral). Essencialmente, a filosofia é um tipo de terapia para o pensamento equivocado.

Aplicado ao tema da identidade pessoal, isto significa que, de acordo com os naturalistas, o eu e o self não deveriam ser pensados como uma série de percepções introduzidas por um olho mental imaginário. O espírito não é um teatro inter- no com o eu como observador por detrás das cenas. O título de um volume editado por Hofstadter e Dennett (1981) é um jogo de palavras insinuando esta crítica: The Mind’s I. Exis- tem muitos – geralmente ridículos – experimentos mentais demonstrando o despropósito deste conceito, e demonstrando como uma abordagem naturalista é capaz de fazer justiça aos aspectos psicológicos e até mesmo morais da experiência do self.

Dennett resumiu suas visões em um livro intitulado Consciousness Explained. Ele afirma que o self: não é um ponto matemático antigo, mas uma abstração definida por miríades de atribuições [características que são atribuídas ao eu ou ao self, GG] e interpretações (incluindo autoatribuições ou autointepretações) que compuseram a biografia do corpo vivo cujo Centro de Gravidade Narrativa ele é” (Dennett 1991, 426-427).

O self, de acordo com Dennet, é uma abstração. Ele pensa deste como um princípio de organização que primariamente tem a ver com os limites entre “eu” e o resto do mundo. Como uma aranha que gira em torno de si uma teia para de- marcar seu território, assim os humanos costuram uma teia de palavras e atos e nomeiam isto de ‘self’. As pessoas têm a incorrigível inclinação de assumirem um Ditador (um ‘eu’) e seus Quarteis Generais (consciência) por trás da teia de autointepretações. Ainda assim, tudo isso é uma ilusão cognitiva, sugere Dennet. Essencialmente, o self não difere muito de um formigueiro ou de uma colmeia; observando estes nós também temos a ilusão de que algum administrador invisível está trabalhando. Com certeza, humanos e animais diferem por termos uma linguagem. Nossa estratégia básica de auto- defesa é a de que nós contamos histórias. Nós não tecemos estas histórias de forma muito consciente e com propósito evidente – assim como aranhas não tecem suas teias desta forma, geralmente são as histórias que nos enredam. A consciência e nosso eu narrativo são o produto destas histórias, não sua fonte. Resumindo, o self é um artefato do processo social que nos constitui (Dennett 1991, 422-423).

II.    As teses de Herman Dooyeweerd sobre o ser humano

  1. Introdução

Infelizmente, os fundadores da Filosofia  Reformada  nunca escreveram uma antropologia sistemática.10 Isto é ainda mais lamentável à vista das discussões contemporâneas a que me referi acima. No entanto, em suas “32 Teses Sobre o Homem”, Dooyeweerd (1942) apresentou uma contribuição breve, mas importante.11 Espalhado por seus escritos, outros filósofos reformados também produziram muito material antropológico.

Inicialmente, Dooyeweerd tentou direcionar a terceira parte de Reformatie en scholastiek in de wijsbegeerte totalmente à antropologia. Não é inteiramente claro porque isto não ocorreu.12 Ele apresentou um resumo daquilo que ele tinha em mente nas Teses mencionadas. Além disso, existem alguns artigos importantes que surgiram na Philosophia Reformata e na última parte da A new critique (Dooyeweerd 1940; também Dooyeweerd 1953-1958, III, 694ff, 765ff, 781ff; e Dooyeweerd 1960a, 1960b, 1961).

Na sessão II.1 acima, afirmei que a tarefa da antropologia filosófica é inquirir sobre a coerência estrutural do funciona- mento humano em suas variadas facetas e a clarificação da inquietude e do dinamismo do ser humano. Esta dualidade caracteriza exatamente a visão do homem de Dooyeweerd. De forma ainda mais direta, ele está sempre buscando demonstrar que estas duas direções na inquirição antropológica estão intrinsecamente entretecidas. Além disso, em ambos os pontos Dooyeweerd oferece um entendimento filosófico novo sobre o homem. Esta nova concepção pode ser indicada com dois termos chave – o homem como uma totalidade estrutural encáptica, e a ideia de um coração (supra- temporal) como o centro espiritual do ser humano, apontando acima de si mesmo. Uma palavra sobre estes dois termos.

  1. O corpo como uma totalidade estrutural encáptica

Para entender o que Dooyeweerd quer dizer por ‘totalidade estrutural encáptica’, nós devemos relembrar alguns termos e distinções (Van Woudenberg 1992, 136-41, 147-52).

Literalmente, encápsis significa ‘invólucro’, ‘entretecido’, ‘entrelaçamento’. Dooyeweerd distingue entre relacionamentos encápticos daqueles relacionamentos entre o todo e suas partes. Na relação entre o todo e suas partes as partes abandonam sua independência, ao passo que a soma das partes demonstra características ou qualidades que nenhuma das partes separadas possui. Uma planta, por exemplo, consiste de células, mas estas células estão atreladas com a totalidade da planta de tal maneira que elas ganham uma nova função: a totalidade da planta determina a função das células separadas.

A encápsis é diferente. Temos um entrelaçamento das ‘par- tes’, no entanto, o caráter próprio das ‘partes’ não é deixado de lado e a ‘soma’ encáptica como tal não demonstra novas características. Em lugar de falarmos de coisas, Dooyeweerd prefere utilizar a expressão ‘estruturas de coisas’ ou ‘estruturas de individualidade’. Isto é assim porque a análise científica objetiva o lado estrutural das coisas. O termo encápsis, portanto, se refere ao entrelaçamento entre as partes em relação ao seu lado estrutural. Dentro do entrelaçamento encáptico (estrutural), “a estrutura das coisas e dos eventos (…) tem uma função guia interna independente e um princípio estrutural interno próprio.” (Dooyeweerd 1953- 1958, III, 637).13

Em suas obras posteriores, Dooyeweerd (1950) introduz um novo termo, totalidade estrutural encáptica. Característico da totalidade estrutural é que as estruturas parciais – como no caso da encápsis – retêm seus próprios princípios estruturais internos, mas – distintos da encápsis – são tomados juntos em uma totalidade mais ampla. Esta totalidade mais ampla, por sua vez, tem sua qualificação interna própria e se conforma ao seu próprio princípio estrutural. Este princípio estrutural envolvente ordena as estruturas parciais na totalidade mais ampla. A totalidade mais ampla é conhecida por sua ‘forma’, em sua ‘forma sensorial objetiva’ ou em sua ‘forma cultural objetiva.’ (Dooyeweerd 1950, 75).

Exemplos de tais totalidades estruturais encápticas são os vínculos entre o átomo e a molécula, entre o pássaro e seu ninho, entre a escultura e o mármore da qual é feita. Átomos, ninhos e materiais físicos como o mármore, em outras palavras, continuam a se conformar com seus princípios estruturais internos. Por outro lado, a função qualificadora (ou guia) destas estruturas de coisas encapticamente vinculadas é determinada pela natureza do entrelaçamento. A meta do ninho é qualificada pelo fato de que eles servem aos pássaros como um objeto biótico, i.e. como repositórios de seus ovos e como abrigo para sua prole. Em outras palavras, ninhos são qualificados por sua função-objetiva biótica. À par- te do pássaro, eles perdem sua meta e são apenas compilações fisicamente qualificadas de material físico. No caso da escultura – o caso paradigmático de Dooyeweerd é o famoso Hermes de Praxiteles — a situação é mais complexa porque na estrutura encáptica das obras de arte não apenas a estrutura da coisa física do mármore é incluída, mas também o design da obra como um objeto intencional na mente de seu criador. A obra de arte é uma objetificação deste design dentro da estrutura do mármore – uma estrutura que agora é aprofundada e aberta. Como uma totalidade estrutural, a escultura é esteticamente qualificada, e é fundada no trabalho formativo (histórico) do artista. O aprofundamento e a abertura da estrutura física consistem na realização das funções objetivas do mármore – o design subjetivo na mente do criador abre a função-objetiva estética do material físico.

Dooyeweerd se refere ao corpo humano também como uma totalidade estrutural encáptica. Nesta conexão, dois pontos precisam estar em mente. Primeiro, o termo ‘corpo’ é entendido aqui no sentido mais amplo possível, i.e. como a ‘for- ma temporal, existencial, da vida humana’ (Tese VII). ‘Corpo’ não significa apenas um arranjo da matéria físico-química, ele inclui o corpo em um sentido biótico, psíquico e ativo. Em segundo lugar, existe uma diferença entre o corpo humano e outras manifestações não-humanas de uma totalidade estrutural encáptica, tais como ninhos de pássaros e esculturas. A diferença é que o corpo como uma totalidade da forma temporal da existência humana não é, ela mesma, qualifica- da por um aspecto modal normativo (Tese XXI). Isto ocorre porque a estrutura de atos é a estrutura qualificadora mais elevada e, como tal, indiferenciada. Dooyeweerd denomina a estrutura de atos a ‘expressão plástica do espírito humano’ (Tese XXII). Esta estrutura de atos é tão plástica, i.e. tão expressiva, que ela não pode ser vinculada a uma qualificação modal específica.

Como nós reconhecemos o corpo como um todo? A resposta de Dooyeweerd é que este reconhecimento é baseado na forma, ou seja, na ‘forma corporal externa’ como o ponto nodal dos entrelaçamentos. Ele elabora o que eu mencionei acima como a ‘forma sensorial objetiva’ da totalidade estrutural encáptica. O corpo pode ser reconhecido como um todo, uma totalidade, porque ele assume uma forma visível, audível e tangível, marcada por identidade (unidade) e completude (totalidade). Além disso, a estrutura e função dos órgãos do corpo nunca podem ser determinadas isoladamente; a determinação se dá sempre em termos de seu lugar dentro do corpo como uma totalidade de forma.

Uma vez que a forma do corpo é o nó de todos os entrelaçamentos no corpo humano, é em princípio impossível classificar morfologicamente órgãos específicos ou partes do corpo humano como pertencendo exclusivamente a uma destas estruturas. Morfologicamente o corpo humano e todas as suas partes funcionam igualmente em todas as quarto estruturas” (Tese XII).

Na totalidade estrutural encáptica do corpo humano, Dooyeweerd distingue quatro subestruturas. Estas são hierarquicamente entrelaçadas, de tal forma que as subestruturas inferiores são ‘morfologicamente vinculadas’ às estruturas superiores (Tese X). As quatro subestruturas, da inferior a superior, são estas:

  • a subestrutura físico-química;
  • a subestrutura biótica;
  • a subestrutura sensitiva, ou psíquica;
  • a estrutura de

Sobre a estrutura física Dooyeweerd diz:

Em e por si mesma, esta [estrutura] ainda não é uma estrutura corporal, ela o é apenas em seu entrelaça- mento [vormgebondenheid, i.e. literalmente: sendo morfologicamente vinculada] dentro das estruturas mais elevadas. No processo de decomposição do corpo ela é liberada para seguir as leis próprias a ela” (Tese XIII).

A segunda estrutura tem uma qualificação ‘tipicamente bi- ótica, assim chamada vegetativa’ (Tese XIII). Dentro desta estrutura as células vivas, os órgãos e outras estruturas bióticamente qualificadas ocorrem. Dooyeweerd utiliza o termo ‘vegetativo’ para se referir ao sistema nervoso autonômico responsável, entre outras coisas, pela regulação da respiração, batimento cardíaco e transpiração, na medida em que estes não sejam influenciados por funções psíquicas e outras mais elevadas.14

Em relação à subestrutura sensitiva, ou psíquica, Dooyewerd está pensando na consciência sensorial, temperamento, emoções e expressão afetiva. Em outro lugar ele fala sobre uma estrutura ‘animal’ que recebe sua destinação tipica- mente humana somente por meio de sua vinculação dentro da estrutura de atos.15 Estes são processos que em seu direcionamento típico são determinados pela ‘função de sentimento sensório’ e ‘dentro de certos limites são externos ao controle da vontade humana’ (Tese XIII).

As três subestruturas mencionadas podem, no entanto, ser entendidas apenas como subestruturas do corpo humano por meio de seu entrelaçamento com, e abertura por, uma quarta e mais elevada estrutura, a estrutura de atos (Tese X e XI). As implicações desta organização hierárquica se tornam claras na medida em que lemos isto na Tese XI:

Quando as três estruturas inferiores são consideradas em sua natureza interna e regularidade específica ex- terna [i.e. à parte de] aos seus vínculos com a quarta, ou mais elevada, estrutura, elas ainda não podem ser entendidas como subestruturas típicas do corpo humano. É apenas em seus entrelaçamentos sucessivos com a quarta e mais elevada estrutura que elas se tornam parte essencial da totalidade estrutural encáptica chamada ‘corpo humano’. Em consequência deste arranjo encáptico do corpo, ao nível que a estrutura mais elevada na totalidade estrutural temporariamente cessa de exercer seu papel condutor, o inferior [estruturas] também se manifesta externamente [i.e. como separada], de acordo com a lei própria a ela. (Compare, por exemplo, o governo das paixões quando a deliberação racional está momentaneamente ausente” (Tese XI).

Dooyeweerd não diz que a totalidade estrutural encáptica se desfaz, como ocorre com a morte (compare seu comentário a respeito da subestrutura física). Durante uma erupção de emoções o papel condutor da estrutura mais elevada está temporariamente desativado.

Dooyeweerd adiciona o seguinte à sua descrição da vida de atos:

Na filosofia da ideia cosmonômica ‘atos’ são performances [verrichtingen] que procedem da alma humana (ou espírito), mas funcionam dentro da totalidade estrutural encáptica do corpo humano, pelo que os seres humanos, conduzidos por pontos de vista normativos, direcionam-se intencionalmente a estados de coisas na realidade ou no mundo de sua imaginação e se apropriam internamente destes estados de coisas intencionados relacionando-os ao seu ego.

A vida de atos dos seres humanos se manifesta em três direções básicas [grondrichtingen] do conhecer, do imaginar e do querer os quais, porque se conectam perfeitamente, não devem ser isolados em ‘faculdades’ separadas.

A interioridade do ‘ato’ é dada com o caráter intencional do ato. A performance [em última instância] atualiza a intenção do ato, pelo que os atos de conhecer, imaginar e querer estão entrelaçados no processo motivado de tomada de decisões e a decisão é transformada em um feito” (Tese XIV).

Atos, portanto, não são feitos como eventos visíveis; eles são performances internas, caracteristicamente intencionais. A vida de atos humana funciona como um tipo de intermediário entre a alma humana (ou ego, veja abaixo) e estados de coisas no mundo externo (ou na imaginação). Atos procedem do ego e focam em ‘algo’ no mudo externo para o interiorizar, fazê-lo algo próprio.

A estrutura de atos inclui todas as modalidades mais eleva- das do que a física (da lógica à pística). As funções-subjetivas de todas estas modalidades são abertas pela estrutura de atos. Em relação ao termo ‘direção básica’ eu noto que esta expressão é utilizada contra a assim chamada psicologia de faculdade, a qual isolou o conhecimento, a imaginação (ou sentimento) e o querer como capacidades separadas. Dooyeweerd fala de direções básicas para enfatizar o entre- laçamento mútuo do pensamento, imaginação e o querer, um entrelaçamento que, em última instância, se apoia no fato de que as direções básicas e os atos estão ‘enraizados’ no coração humano e direcionados ao horizonte temporal de sentido que abrange todos os aspectos modais.16

  1. Intermezzo: A totalidade estrutural encáptica e o debate antropológico

Para examinarmos a antropologia de Dooyeweerd nós precisamos prestar atenção à sua doutrina do coração como o centro integral da existência humana. Mas antes de fazermos, eu quero esboçar a posição de Dooyeweerd no debate antropológico. Os maiores pontos de diferença com as abordagens discutidas acima (Seção 2) são o problema da mente- corpo e a distinção entre homem e animal. Deixo por último, as notas críticas sobre o próprio conceito de Dooyeweerd (ver Seção 4.c).

A primeira coisa que nos impacta é a forma elegante na qual a doutrina da totalidade estrutural encáptica escapa às objeções comuns tanto ao monismo psicofísico quanto ao dualismo psicofísico. Contra o monismo, estas objeções se relacionam especialmente ao seu inerente reducionismo. Não importa se este monismo é uma versão do materialismo, do idealismo ou da teoria da identidade, em todas as circunstâncias um modo funcional específico assume a proeminência (o físico, o psíquico ou um modo funcional básico a ambos), ao custo da independência e à especificidade de outros modos funcionais. Em outras palavras, o monismo viola o princípio da esfera de soberania. Para o dualismo as coisas não são diferentes, exceto que existem dois modos que são absolutizados em vez de apenas um. A consequência de tal absolutização é uma perda de coerência e integração estrutural das funções (ou aspectos modais). Avermelhar a face é, então, considerado como um componente separado ou como um efeito casual da raiva. Nenhuma versão – paralelismo e o interacionismo – realmente resolvem o problema da coerência interna do avermelhar e estar nervoso.17 A teoria de Dooyeweerd da totalidade estrutural encáptica resolve, pois ela nos conduz a considerar a natureza plural da corporeidade humana (contra o monismo reducionista) e a coerência das funções corporais (contra o dualismo).18 As subestruturas retêm a qualidade apropriada a elas porque elas se conformam a um princípio estrutural interno (contra monismo), mas esta especificidade funcional não implica em independência (contra dualismo). As subestruturas continuam a ser entrelaçadas dentro da totalidade do corpo e derivam seu caráter tipicamente humano da estrutura desta totalidade. Ter a face vermelha diante da raiva nos diz algo sobre a pessoa por inteiro em uma situação específica – ela está indignada porque ela foi insultada por alguma brutalidade. Muitas face- tas exercem um papel nisto, a fisiologia (uma pessoa se torna vermelha mais rapidamente do que outra), o temperamento (uma é excitável, a outra é fleumática), e sensibilidade à natureza do insulto. A reação total abrange tanto a subestrutura biótica (ter a face vermelha devido a uma extensão dos vasos sanguíneos) e a subestrutura psíquica (o sentimento de raiva e a pulsão a expressá-la). Se tornar vermelho não é algo se- parado e não é o resultado de algo que existe separadamente (raiva). Isto revela algo da pessoa, a saber o quão raivoso ele ou ela está. É mais do que um fenômeno puramente biótico, é ficar vermelho de raiva – que ao mesmo tempo se refere a antecipações dentro do biótico, psíquico e funções objetivas mais elevadas. A raiva não é apenas uma reação cega., ela emerge sobre a base de um sentimento específico – o qual se refere a antecipações dentro do físico às funções-objetivas tais como a capacidade de distinguir (lógica) o conteúdo preciso do insulto, suas implicações para as relações mútuas (social) e sua legitimidade moral (ética).

Deixe-me elaborar isto com o auxílio de outro exemplo. A função do cérebro pode ser entendida desde a perspectiva da subestrutura bióticamente qualificada.19 A partir da função-subjetiva biótica desta subestrutura, as funções-objetivas bióticas são abertas na direção retrocipatória na subestrutura físico-química e no funcionamento espacial – pense por exemplo na regulação do potencial da membrana responsável pela condução do impulso e transferência de estímulo entre os neurônios (células nervosas); e na plasticidade do cérebro em virtude das quais as funções bióticas do cérebro não são estritamente vinculadas à células nervosas específicas (localizadas espacialmente), porque estas funções podem ser assumidas por outras células nervosas.20 Além disso, no funcionamento biótico do cérebro funções-objetivas de esferas de lei mais elevadas são abertas de uma maneira antecipatória, portanto analógica. Colocado de forma diferente, quando o cérebro é estudado a partir da perspectiva da estrutura biótica, nós podemos dizer que no funcionamento do cérebro, as funções-objetivas de esferas de lei mais eleva- das estão sendo antecipadas, em virtude do entrelaçamento da subestrutura biótica dentro das estruturas de ordens mais elevadas.21 Esta abertura (i.e.: antecipação dentro da função biótica do cérebro em funcionamentos de ordem elevada) contém um aprofundamento e especificação assim como uma maior abertura e variação potencial. Como consequência disto, o cérebro é pré-condicionado para o funcionamento humano em subestruturas mais elevadas. A subestrutura psíquica, por exemplo, desvela o cérebro em sua qualidade de ‘órgão’ de percepção e sentimento, enquanto a estrutura de atos apela ainda a outras funções possíveis, como aquelas que têm relação com o comportamento de planejamento e organização.

O novo e desafiador nesta visão é que ela nos afasta do quase inerradicável hábito de identificar o cérebro como uma entidade concreta, morfologicamente determinável, com os resultados da pesquisa científica considerando as funções bióticas do cérebro – de tal forma que os processos mentais surgem como epifenômenos misteriosos. A delimitação morfológica, em conjunto com o caráter não qualificado do termo ‘cérebro’, adiciona e estimula reificação. Dooyeweerd coloca uma pausa em tal reificação de três formas:

  • pela aguda distinção entre os pontos de vista modal e entitário;
  • pela distinção entre o lado-lei e o lado-sujeito das subestruturas (lado-sujeito = aquilo que está sujeito à lei);
  • finalmente, negando à estas subestruturas qualquer independência em virtude de seu entrelaçamento na totalidade estrutural encáptica que, além disso, no caso dos humanos, não é vinculada a uma função (modal) específica.

Na prática isto significa que:

  • ao estudar alguns processos tais como a regulação do humor, ou no reconhecimento de palavras, a função que qualifica o processo deve, como uma função modal, ser distinguida do próprio processo como uma totalidade, ou seja, como uma estrutura de
  • ao estudar uma atividade cerebral uma aguda distinção deve ser feita entre o cérebro em seu funcionamento concreto (lado-sujeito) e o funcionamento do cérebro dentro da estrutura biótica (lado-lei);
  • o funcionamento do cérebro não pode ser limitado ao funcionamento dentro de (apenas) uma simples

Resumindo, os processos cerebrais devem sempre ser estudados em termos do funcionamento humano como um todo, ou seja, em termos de todas as quarto subestruturas. Todas as partes do corpo funcionam igualmente em todas as subestruturas, defende Dooyeweerd. Eu adicionaria que a própria corporeidade humana, por sua vez, também funciona em um contexto bio-psíquico-social mais amplo. Um exemplo fascinante disto é como o humor (e muitos tipos de processos hormonais) dependem da alteração da luz e da escuridão. Quando o biorritmo é interrompido isto pode causar às pessoas noites sem dormir e fazê-las temperamentais, como qualquer que já tenha experimentado o fuso horário pode confirmar.

É justificado, portanto, até certo ponto, i.e. desde a perspectiva da totalidade da corporeidade humana, falar do cérebro como um órgão para o pensamento, a percepção, o sentimento e o planejamento. Isto significa que o cérebro, enquanto tal, pensa, percebe, sente e planeja – que o próprio cérebro atua? Não, diz Dooyeweerd. É sempre a “pessoa inteira na unidade do corpo e da alma que excuta os “atos” (Tese XX) (veja Bennett e Hacker 2003 para uma reformulação mais recente desta visão).22 Onde o filósofo Gilbert Ryle (1949) afirma que os sentimentos e os comportamentos não podem ser atribuídos a um ‘fantasma na máquina’, Dooyeweerd concorda. Nenhuma substância misteriosa, imaterial, se esconde nos tecidos do cérebro, nenhum homunculus (pequeno homem) ou sujeito. Mesmo assim – e aqui Dooyeweerd se distancia de filósofos como Ryle – o cérebro é mais do que uma máquina ou um computador. O cérebro não funciona ele mesmo como sujeito, não é um agente executor, mas isto não significa que ele não tenha funções-subjetivas em subestruturas mais elevadas que a subestrutura biótica.

Nós temos de manter em mente a diferença entre sujeito e função-subjetiva. Pessoas são ‘sujeitos’ no sentido de atores apenas na totalidade de seu funcionamento; em contraste, ‘funções-subjetivas’ são sempre funções de subestruturas  e entidades. Nós podemos atribuir funções-subjetivas mais elevadas do que a biótica ao cérebro, a saber, até que este seja estudado em termos de uma substrutura mais elevada que a biótica (a subestrutura psíquica e a estrutura de atos).

Isto corre contra as intuições prevalecentes porque o termo ‘cérebro’ tende a ser utilizado de uma forma não qualifica- da, enquanto ao mesmo tempo a suposição implícita é a   de que o funcionamento do cérebro é primariamente biótico. Dooyeweerd diria que a perspectiva funcional (modal) é trocada por um ponto de vista entitário, enquanto além disso esta visão identifica erroneamente o funcionamento normativo do cérebro com seu funcionamento concreto (lado-sujeito). ‘Cérebro’ é a bandeira ocultando a carga de um ‘complexo reificado de funções’.  Se nós olharmos próximo  o suficiente, a descrição de uma dada função cerebral se   dá sempre a partir de uma perspectiva específica, seja em termos modais ou como entidade. Este é particularmente o caso nas ciências especiais.23

Como eu vejo, a abordagem de Dooyeweerd é de grande valia, tanto  para  o  debate  corpo-mente  quanto  para a comparação entre o homem e o animal. Em relação ao tema corpo-mente, a própria colocação do problema já sugere que ‘mente’ e ‘cérebro’ são reificados em dois ‘com- plexos funcionais’ separados. As coisas não são diferentes nos experimentos mentais na filosofia da mente. Cérebros são transplantados, corpos transmitidos a outros planetas, mentes divididas ou duplicadas via cópias de computador. Todas estas versões, no entanto, sofrem por assumir certas conclusões ao iniciar como se a coerência funcional entre corpo, cérebro e espírito possam ser quebradas – afinal de contas, eles são apenas experimentos mentais – enquanto o problema real da coerência estrutural é suspensa.24 Estes experimentos nos dizem, de fato, algo sobre como pensa- mos sobre o corpo, o cérebro e o espírito, mas não nos dizem nada sobre a coerência do biótico e do mental no funcionamento do cérebro.

Em relação à comparação do homem e do animal, no sistema de Dooyeweerd, o animal é uma totalidade estrutural encáptica com a subestrutura psíquica como a subestrutura mais elevada. O animal carece de parte do foco, especificação e abertura das subestruturas inferiores por subestruturas mais elevadas características dos humanos. De acordo com Dooyeweerd, não pode, portanto, existir planejamento e organização no verdadeiro sentido (deliberação interna, reciprocidade). A intencionalidade que os animais evidenciam em seu comportamento é vinculada ao biótico (pro- criação) e ao instintivo (sobrevivência, segurança física). O mesmo é verdade das interações ‘sociais’ entre os animais

  • tais como interações envolvendo dominação e submissão, e para a obtenção de parceiros Aplicar modelos etológicos ao funcionamento social e moral humanos deixará muito do que é caracteristicamente humano fora de consideração, embora o sistema de Dooyeweerd permita que paralelos sejam traçados. A interação social entre os humanos pode se fechar sobre si mesma e tornar-se dominada pelas leis da sobrevivência física e o ‘direito’ do mais forte. Mas a consciência de que em tais situações não se faz justiça à humanidade nos diz que este é um desenvolvimento anti- normativo. Ser verdadeiramente humano envolve mais, por exemplo, reciprocidade, cuidado e amor ao próximo. O sistema de Dooyeweerd pode fazer justiça a ambas diferenças estruturais e às similaridades estruturais entre os homens e os animais.
  1. O coração como o centro espiritual do ser humano

Muito tem sido escrito sobre o ensino de Dooyeweerd sobre o coração supratemporal. Esta doutrina encontrou aderentes apaixonados e ferozes antagonistas.25 Restringirei a um esboço dos principais pontos de vista e seu lugar dentro da totalidade do sistema de Dooyeweerd e seu significado para a discussão atual em antropologia filosófica. Como se torna claro do que vimos acima, a doutrina do corpo humano como uma totalidade estrutural encáptica não é a caracterização última do ser humano. Um perigo especial aqui é que a totalidade estrutural, apesar de toda sua diferenciação interna, também será facilmente entendida como fechada e autossuficiente. Notei anteriormente que, para Dooyeweerd, a estrutura de atos é aberta e modalmente indeterminada. Mesmo assim, o risco de substancialização, neste caso do corpo como uma totalidade de forma, não está totalmente superado. Na verdade, esta é uma das razões porque Dooyeweerd introduz a noção do ‘coração’ como o centro espiritual do ser humano, um centro que aponte para além de si mesmo.

O ponto crucial aqui é que, em Dooyeweerd, a questão do homem é em essência uma questão religiosa. Isto também é verdadeiro para Heschel, citado na Introdução acima. Dooyeweerd coloca isto da seguinte forma:

Onde quer que a Escritura mencione a alma humana ou o espírito, no sentido religioso pleno, ela invariavelmente se refere ao coração de toda a existência temporal, do qual procedem todos os assuntos da vida temporal. Em nenhum lugar a Escritura ensina uma dicotomia entre uma ‘alma racional’ e um ‘corpo material’ na existência temporal; esta existência temporal como um todo é o corpo, abandonado na mor- te. Em contraste, o espírito ou a alma humana como a raiz religiosa do corpo, de acordo com a revelação Escritural, não é sujeita à morte temporal (embora esteja sujeita à morte eterna à parte de Jesus Cristo), pois ela de fato transcende [te boven gaan] todas as coisas temporais. Esta revelação relacionada à ‘alma’ da existência humana como um centro integral da totalidade corpórea, é inteiramente correlacionada com a Autorrevelação de Deus como Criador integral dos céus e da terra, não tendo qualquer poder autônomo contra Ele. Esta revelação relacionada à natureza humana não é uma ‘antropologia’ ou teoria científica da existência humana. Em vez disso, esta é a pressuposição religiosa sobre a qual toda antropologia cristã genuína deveria ser fundada (Tese V).

E um pouco mais à frente Dooyeweerd diz que [A alma humana] está além de todo entendimento científico, porque ela é o pressuposto de qualquer concepção. O conhecimento relacionado à alma é autoconhecimento religioso, possível apenas por meio do conhecimento genuíno de Deus a partir da Palavra-revelação divina. (Tese VI)

Estas citações toram claro que, para Dooyeweerd, a questão do homem é uma questão religiosa. Além disso, esta visão não é uma cobertura ideológica aplicada ao bolo da teoria estrutural. Para Dooyeweerd, as coisas são bem mais básicas. O autoconhecimento é religioso em sua natureza, e este fato está inscrito na própria natureza da existência humana como tal. O autoconhecimento é intrinsecamente vinculado com a concentração da existência em um ‘self’ e com a orientação deste self em direção à verdadeira (ou suposta) Origem de significado. Em relação a esta orientação, Dooyeweerd fala de um ‘impulso inato’.26 Este impulso inato denota o lado  de resposta religiosa da existência humana e é a expressão do homem como imagem de Deus. Na ordem e tratamento, portanto, a ideia do coração como um centro espiritual pre- cede a teoria da estrutura.

Muitos temas do pensamento de Dooyeweerd estão presentes aqui em uma forma condensada – a tese da insuficiência radical da criatura (um ser humano não é uma ‘contraparte autônoma’); a forte associação entre, por um lado, diferenciação e temporalidade e, por outro lado, unidade e supra- temporalidade; a distinção (kantiana) entre conceito (científico) e a ideia (religiosa transcendental); a relação entre autoconhecimento e conhecimento de Deus (inspirado pelas sentenças de abertura das Institutas de Calvino proeminentemente presentes na crítica transcendental de Dooyeweerd); e, finalmente, o pensamento de que a religião envolve a existência humana como um todo e não apenas um de seus aspectos, tais como a função da fé (pistis).

Da mesma maneira, o problema fundamental da antropologia pode ser afirmado na seguinte questão:

como pode a existência temporal humana, com seus aspectos e estruturas de individualidade teoricamente extrapolados [uiteengestelde: i.e. artificialmente isolados] serem, contudo, entendidos como uma totalidade mais profunda e uma unidade mais profunda?” (Tese VII).

A concentração da existência no coração, como um centro espiritual, não é um ato da vontade ou do pensamento consciente. Ela é um pressuposto, ou seja, algo que precisa ser assumido no momento que alguém começa a pensar sobre a pessoa humana. A estrutura, no sentido de uma coerência das subestruturas em uma totalidade mais ampla, e o dinamismo, no sentido da concentração religiosa em direção à Origem, vão de mãos dadas aqui. Dooyeweerd está, na verdade, dizendo que a unidade da existência humana pode ser entendida apenas em termos do dinamismo religioso desta existência.27 Neste dinamismo a existência humana aponta além de si mesma para o Criador de tudo o que há. A negação deste apontar-além-de-si-mesmo como um pressuposto conduz inevitavelmente a algum tipo de dualismo ou monismo. Na inquietude da existência os seres humanos buscam um apoio ou suporte, uma origem do sentido. E este supor- te é comumente encontrado em algo na realidade temporal – no pensamento, ou na natureza humana biológica. Este ‘algo’ é então visto como algo ‘an sich’, em si mesmo, e então substancializado. O resultado disto é que a coerência entre as subestruturas é perdida e que um aspecto específico do funcionamento humano é destacado de forma unilateral.

Nas ‘Teses’, Dooyeweerd foca principalmente no dualismo tradicional entre anima rationalis (alma racional) e corpo material. A ideia da alma racional se apoia na substancialização da função lógica do pensamento.28 Nesta conexão, Aristóteles fala de um princípio de pensamento ativo e incorruptível. Este princípio, como a origem geral dos atos de pensamento, entra na ama humana a partir de fora.29 Dooyeweerd vê este dualismo retornando em pensadores como Husserl e Scheler, que descrevem os atos como percepções intencionais, não corpóreas. Estes pensadores opõem o ego, como ‘centro pessoal vivendo puramente em seus atos’ (Tese XV), à corporeidade humana. Este dualismo também se apoia em uma substancialização da função lógica.

Como notado, para Dooyeweerd, os atos são parte da corporeidade. Em Husserl e Scheler este insight não recebe tratamento justo, pois eles modelam sua definição da vida de atos segundo o ato do conhecimento teórico, i.e. como estando envolvido com uma Gegenstand puramente intencional. O termo ‘Gegenstand’ aqui não se refere a um estado de coisas no mundo externo, ele se refere ao objeto como este se apresenta em nossa consciência. Particularmente para Husserl, o conhecimento emerge quando um eu pensante se direciona a um objeto de pensamento. De acordo com Dooyeweerd, no entanto, quando os atos são concebi- dos em relação ao modelo do ato teórico de pensamento, dois pontos são ignorados:

  • “que a relação Gegenstand não está sequer presente em atos não-teóricos, e
  • Que mesmo no ato teórico de pensamento, não é o próprio ato, mas apenas seu aspecto lógico que é posicionado em contraposição aos aspectos pré-lógicos do corpo, e que esta relação Gegenstand é apenas o produto de uma abstração intencionada do ato de conhecimento total, concreto.” (Tese XV)

O dualismo, portanto, é inevitável quando a vida de atos humana é vista como incorpórea. No entanto, podemos questionar, não seria o problema repetido pelo próprio Dooyeweerd quando ele distingue entre a alma supratemporal e o corpo temporal? Por certo, a vida de atos é considerada corpórea, mas isto não apenas desloca o problema? Pois, como nós entendemos a relação entre a alma e os atos?

Certamente, estas questões demonstram que a caracterização fornecida acima da alma (ou coração) como o centro apontando além de si mesmo no qual toda a existência humana está concentrada, ainda carece de elaboração. Mas primeiramente, deveria ser enfatizado novamente que de- vemos nos livrar de qualquer noção do coração como uma ‘coisa’; e mesmo do coração como uma ‘coisa em si’ ou como uma substância reificada. O coração é uma fonte dinâmica da qual toda atividade humana se origina. Ele não é uma coisa, e não tem uma ‘estrutura-de-coisa’. Portanto, ele não pode ser capturado em termos teóricos. Se fosse assim, um dualismo entre o coração supratemporal e a corporeidade seria inevitável. No entanto, Dooyeweerd repetidamente pontua que o coração só pode ser compreendido em um sentido religioso. Termos como ‘religioso’ e ‘religião’ não se referem a algo ‘diante de nós’, uma atividade ou processo sobre o qual podemos pensar e ser objetificado em um senti- do teórico. Nós sempre temos a religião por trás de nós, por assim dizer. Nós não podemos ir por detrás desta. O termo religião se refere a uma característica essencial ou um anelo fundamental da própria existência. O que diz respeito para a religião também é aplicável à noção de coração. O coração não é um conceito que pode ser definido cientificamente; ele não é um construto com um conteúdo empírico específico. O termo coração significa uma tendência, um dinamismo que não pode de forma alguma ser delimitado conceitual- mente, pois, de acordo com Dooyeweerd, este subjaz toda a conceitualização e é sua pressuposição.30 A filosofia pode apenas indicar este dinamismo de forma tímida, às apalpa- delas, embora em estreita harmonia com a revelação das Escrituras neste ponto.

Em razão da qualificação religiosa radical do pensa- mento teórico, qualquer antropologia filosófica se apoia em uma ideia sobre a alma humana; o caráter transcendental (i.e. tornando a inquirição filosófica possível) desta ideia também determina toda a abordagem filosófica à estrutura do corpo humano” (Tese VIII).

Quando este pensamento fundante é negligenciado, o pensamento filosófico degenera-se em uma metafísica, ou seja, em uma articulação filosófico-conceitual (e substancialização) daquilo que essencialmente escapa à análise filosófica.

Apenas quando este insight básico for apropriado se torna claro, em um sentido verdadeiro, que não pode haver ‘relacionamento’ entre a alma (o coração) e os atos. Um relaciona- mento requer que exista dois ou mais relata independentes, enquanto a alma, simplesmente, não é este relatum independente. Mas se nós não conseguimos capturar o coração como um princípio conceitualmente identificável, mais ou menos causalmente operacional no ato da vida, então como deve- ríamos entender a relação (para utilizar a palavra e rapidamente esquecê-la) entre a alma e a vida de atos? A resposta de Dooyeweerd a esta questão demonstra que, próximas às tendências de focar e apontar além de si mesmo, existe uma terceira característica que pode ser atribuída ao coração, a saber, que ele se expressa no modo corpóreo de existência.

O caráter indiferenciado da estrutura de atos do corpo humano é inseparavelmente relacionado à sua função como um campo plástico de expressão do espírito humano em seu sentido Escritural, religioso. Pois este espírito, em princípio, transcende todas as estruturas temporais da vida e, consequentemente, ele deve se expressar corporalmente em todas as estruturas diferenciadas possíveis. Toda estrutura de individualidade diferenciada confere aos processos executados dentro deste uma delimitação tipicamente rígida. O espírito humano, no entanto, está em sua liberdade religiosa no comando deste campo de expressão corporal, o qual deve, portanto, possuir a plasticidade mais ampla o possível. Assim também, o corpo humano, que apenas assume seu caráter tipica- mente humano na estrutura de atos, recebe uma faculdade espiritual de expressão, essencialmente ausente no corpo animal em sua rígida delimitação por uma estrutura psiquicamente qualificada” (Tese XXII).

Resumindo, o espírito (alma, coração) não é ‘algo’ à parte da vida de atos; ele é, em última instância, entretecido com a vida de atos e, portanto, com o corpo. A própria estrutura de atos funciona como um ‘campo plástico de expressão’ do espírito humano. E o próprio corpo humano possui a ‘faculdade de expressão espiritual’ do espírito humano. A totalidade da existência humana é compressa no coração, mas ao mesmo tempo o coração é expresso na totalidade da existência. Ser humano, podemos parafrasear Dooyeweerd, é um respirar e expirar, concentração e dispersão. É por esta razão que:

o ser humano inteiro, na unidade do corpo e da alma, que performa os ‘atos’. E fora do corpo nenhum ato em sua estrutura temporal é possível. Em outras palavras, os atos deveriam ser concebidos nem como puramente espirituais, nem como puramente corpóreos” (Tese XX).

Note que Dooyeweerd não diz aqui que a estrutura de atos deveria ser entendida tanto espiritualmente quanto corporeamente, mas que os atos deveriam. A estrutura de atos é e permanece uma estrutura corporal. Este é um termo científico-filosófico e se refere – e pode apenas se referir – às estruturas da realidade temporal. O corpo concreto em seus atos é, no entanto, caracterizado pela permeação mútua do espiritual e do corporal.

Notamos mais uma vez que as visões de Dooyeweerd são surpreendentemente coerentes, mesmo no contexto dos debates antropológicos contemporâneos. Pense, por exemplo, sobre o tema da identidade pessoal. Como vimos as discussões neste tema são, em parte, determinadas pelo abandono da determinação, inspirada pela filosofia da consciência, do eu (ou ego), em parte por uma variedade de alternativas naturalistas. A abordagem via filosofia da consciência encontrou o problema da regressão infinita e aquele da quasi-objetificação e sua consequente perda de relação com o self. Ao questionar regressivamente ao eu por trás do ‘eu penso’, o eu empalideceu em um vago termo teórico. A partir do ponto de vista dooyeweerdiano, poderia ser dito que isto não é uma surpresa, pois a determinação autor- reflexiva do self se inicia a partir de uma abstração teórica. A consciência é separada de sua imbricação corpórea, emocional e social e construída como uma consciência que é localizada (e substancializada) dentro dos confinamentos de um campo puramente imaterial. A partir desta posição, a relação eu-self, concebida inteiramente como dentro dos limites da consciência, i.e. como uma relação entre um ego (transcendental) e seus pensamentos (internos) e percepções. No quadro de referência de tal abstração, não se faz justiça à autorrelação dos humanos em um sentido pleno, i.e. ao fato de que quem eu sou me diz respeito emocional- mente e existencialmente.

Na perspectiva dooyeweerdiana, pode haver um autoenvolvimento genuíno apenas quando o ‘ego-ismo’ da filosofia autorreflexiva da consciência é quebrado e o coração é visto como a expressão da plenitude do ser e como orientada ao Criador. Ser humano é responder à tendência em direção à Origem que causa a totalidade da existência a apontar para além de si mesmo. Autoenvolvimento não se dá até que o ser humano seja entendido como homo respondens, como um ser que encontra seu destino no ouvir e responder ao apelo do Criador e Redentor (ver também Geertsema 1992).

Indiretamente, isto também clarifica a objeção de Dooyeweerd às várias visões naturalistas do self. Mesmo à parte do fato evidente de que estas visões carecem da ideia de apontar-para-além-de-si-mesmo (transcendência), precisamos concluir que elas significam reducionismo científico. Dennett chamou o ‘self’ de uma abstração, uma ilusão cognitiva que emerge em razão das pessoas terem o incorrigível hábito de assumirem que, por trás da teia de autointerpretações, existe um Ditador (ou eu) em seu quartel general (a consciência). Isto certamente contorna o risco da substancialização do eu, mas o preço é alto – não se pode mais falar de um eu ou ego em um sentido real. E a questão da responsabilidade pelas próprias ações se torna muito difícil.

As considerações acima clarificam as objeções de Dooyeweerd às duas maiores correntes no debate sobre identidade pessoal. Uma metafísica realista que vê o ‘ego’ como substância, e um empirismo naturalista que considera o ego como no máximo um construto mental auxiliar ou uma ilusão cognitiva. Estas objeções, no entanto, não fazem com que desa- pareçam todas as obscuridades em relação à própria posição de Dooyeweerd. É possível oferecer um relato sobre a identidade pessoal se o ‘eu’ não é uma coisa nem uma ilusão? A teoria do coração supratemporal resolve todos os problemas em relação à identidade humana? Infelizmente, Dooyeweerd permaneceu amplamente silencioso em relação a estes pontos. Assim, o próximo relato é uma breve extrapolação de minha própria autoria sobre o que Dooyeweerd teria dito com respeito a estas questões.

Para começar, pode-se considerar a visão de Dooyeweerd sobre a estrutura das coisas e sua identidade. Em relação às coisas, pode-se perguntar o que é que faz uma coisa tanto única quanto identificável (algo que é e que permanece o que é). Dooyeweerd enfatiza que a experiência da identidade escapa à ciência. Esta experiência está vinculada à vida diária. Coisas e pessoas parecem nesta como uma corrente contínua de ‘totalidades individuais’ que, embora sempre se modificando, continuam a ser distinguíveis e, portanto, identificáveis. Em razão de a experiência de identidade ser vinculada à vida diária, nós não podemos conceber a identidade à parte da individualidade. O contrário também é verdadeiro, nós adquirimos consciência da individualidade apenas contra o pano de fundo de certas constantes (ou princípios estruturais). Este é o porquê de Dooyeweerd falar de uma ‘cor- relação estrita do lado-lei e do lado-sujeito’. A identidade de uma coisa é uma identidade ‘subjetiva-individual’. Em outras palavras, a identidade pertence à existência de uma coisa como ‘sujeito’ (à lei). Mas esta identidade subjetiva-individual é simultaneamente determinada pelo lado-lei, a saber, em virtude do princípio estrutural interno da coisa. Em relação à identidade de uma coisa, portanto, Dooyeweerd distingue um aspecto estrutural e um individual, correspondendo com o lado-lei (princípio estrutural) e o lado-sujeito (sendo individual enquanto sujeito). Estes dois aspectos nunca deveriam ser vistos como divorciados, porque na experiência diária o lado-lei e o lado-sujeito são sempre dados juntamente.

Vamos considerar a seguir os seres humanos. Humanos diferem de outras totalidades estruturais em virtude de seus atos e da estrutura de atos. Em outras palavras, os humanos derivam sua identidade,e não apenas de sua existência como numéricos (eu consisto de uma e não duas pessoas), espaciais (eu sou alguém no espaço), cinemáticos (minha existência tem continuidade), físicos (eu existo materialmente), bióticos (eu nasço, cresço e morro), e psíquicos (eu experimento). Os humanos reconhecem e encontram sua identidade também, e especialmente, em atos e atividades para as quais os princípios das modalidades mais elevadas do que a psíquica são reguladoras. Aqui novamente encontramos a correlação do lado-lei e do lado-sujeito, de princípios normativos (aspecto estrutural) e a resposta a estes (o aspecto subjetivo-individual). Podemos dizer, portanto, que um ser humano existe como uma resposta, reação. Tal resposta não se inicia de uma lousa vazia, uma tabula rasa, e não se dá em um vácuo. O vir-a-ser de alguém depende da constituição, aptidão e circunstância. No curso da vida, certas constantes se tornam visíveis; pense no caráter, nas várias disposições, e no papel da memória na organização dos eventos experimentados na vida e no comportamento concreto. Todos estes fatores contribuem para o desenvolvimento da identidade pessoal, uma identidade que, em seus sentidos múltiplos e multifacetados, é tanto única quanto contínua.

Porque a identidade é moldada no curso da vida (ou seja, porque ela tem uma dimensão histórica, ou de abertura), faz sentido distinguir entre o eu e o self. O eu se referiria  ao dinamismo e à atualidade da existência como resposta; o self se referiria aos resultados mais ou menos duráveis de tal resposta, na forma de disposições miméticas e motoras, humor, traços de caráter, posição jurídica, atitude à vida e consciência de chamado. Em última instância, no entanto, a identidade humana não é exaurida em suas características multifacetadas (o self), nem nas respostas concretas (o eu). Em última instância, quem eu sou é um segredo, um mistério que se relaciona ao fato de que ‘eu’ nunca sou congruente com o meu ‘self’. Eu me relaciono comigo e com outros, e assim respondo à minha origem mais profunda e destino. Tanto no Velho quanto no Novo Testamento, este mistério está vinculado com o fato de eu ter um nome. É um mistério seguro em Jesus Cristo, pois é Ele quem vincula seu nome ao nosso, e confessa nosso nome diante do Pai e seus anjos (Ap 3:5; Is 56:5; 65:15; Ap 2:17; 3:12).

III.  Outros pensadores na tradição reformacional

  1. Algumas linhas principais

As questões fundamentais em antropologia estão estreita- mente conectadas àquelas da cosmologia. A eclosão de de- bates entre Dooyeweerd, Vollenhoven e seus estudantes nos anos cinquenta é um caso em questão. Muito da discussão se relaciona à filosofia do tempo de Dooyeweerd, e especialmente ao seu ensinamento sobre a supratemporalidade do coração. Estes são temas difíceis que facilmente fazem emergir desentendimentos, mesmo entre os aderentes recém-chegados. Focarei nestes aspectos do debate onde novas visões antropológicas são introduzidas. Para um comentário mais extenso, eu refiro à tese de Ouweneel.

Uma segunda área que deveria ser mencionada é a confrontação com a Filosofia da Existência e a teologia influenciada por esta (Karl Barth). Por mais interessantes e profundas que sejam as várias contribuições, o espaço aqui não me permite seguir este caminho.31 Na última sessão eu discutirei algumas novas (provisórias) abordagens sistemáticas.

  1. Discussões relacionadas à supratemporalidade do coração

Antes de comentar sobre as discussões em torno da supratemporalidade do coração, deveria ser pontuado uma vez mais que a antropologia de Dooyeweerd foi intencionada, antes de tudo, para ser uma antropologia antidualista. Entre aqueles que têm afinidade com esta filosofia esta intenção é dificilmente questionada – apesar de algumas sugestões anglo-saxãs tendendo em direção ao dualismo (Cooper 1989). Este consenso pode ser agora quase autoevidente, mas ele estava longe de ser autoevidente nos anos vinte e trinta do século passado. É difícil hoje caracterizar quão grande era a batalha do combate do dualismo corpo-alma. Desde os dias da reforma, até pelo menos meados do século vinte, este dualismo constituiu a principal corrente do pensamento pro- testante.

Deve ter sido doloroso para Dooyeweerd o fato de que muitos de seus estudantes e mentes afins tenham divisado um tipo de dualismo em sua doutrina do coração suprateórico. Pode de fato ser dito que o debate inteiro sobre o problema do tempo se resuma em um desdobramento estendido e simultaneamente decisivo deste debate antropológico.

Deixe-nos então, guiados por Vollenhoven, considerar a co- erência dos problemas antropológicos e cosmológicos. Após isto, prestaremos atenção a alguns novos temas que surgem nesta conexão, tais como os temas do mal, a relação entre o autoconhecimento religioso e as pressuposições transcen- dentais, e ao problema da relação eu-self. Finalmente, co- mentarei sobre a defesa de Cooper do dualismo corpo-alma.

  • Vollenhoven

Vollenhoven nunca dedicou um estudo separado para a antropologia. A razão porque eu nunca ressalto os ensinamentos deste pai fundador é que sua obra demonstra algumas diferenças sutis de insight em relação às questões básicas, podendo conduzir a uma abordagem incisivamente distinta em antropologia. Estas diferenças de insight estão particularmente relacionadas com o lugar da alma à luz da tríade Deus-lei-cosmos, e ao distinto entendimento de Vollenhoven em relação ao tempo e a história.

Para Vollenhoven, uma característica essencial da história é a mudança, em lugar de diversidade, como no pensamento de Dooyeweerd. O tempo não é – como no caso da ordem cósmica do tempo em Dooyeweerd – a estrutura toda-abrangente dentro da qual qualquer mudança ocorre. Pelo contrário, tanto o tempo quanto a história são parte e parcela da criação; ambos estão ‘sob’, i.e. sujeitos à, lei.

Vollenhoven não nega que as várias modalidades estão rela- cionadas com o tempo, mas esta relação se dá por meio das coisas (incluindo plantas, animais, humanos). Para ‘modalizar’ o tempo, casu quo, a visão de Dooyeweerd de que as modalidades são função do tempo, é atribuir muita independência, ou autonomia, às funções. Nem deveria a história ser entendida como uma função ou modalidade. Desde o ponto de vista sistemático, a história é um tópico a ser tratado no contexto da doutrina de domínios ou reinos. A história não é um atributo de uma abstração chamada ‘homem’, a história está indissoluvelmente vinculada às venturas e vicissitudes do domínio humano como algo distinto do domínio das plantas ou do reino animal, os quais estão tomados em um processo de vir-a-ser, mas não têm história.

Isto é suficiente para observar porque Vollenhoven tem uma grande dificuldade com a noção de Dooyeweerd em relação à supratemporalidade do coração, e até mesmo enxerga isto como um possível ponto de entrada para uma antropologia dualista. Na verdade, Vollenhoven diz, Dooyeweerd localiza a alma entre Deus e a criação como um tipo de link de conexão. Assim como o tempo e a história, no entanto, a alma é sujeita à lei.34

Mesmo assim, isto não significa que a alma possa ser localizada em uma das funções. O coração deveria ser entendido em um sentido pré-funcional, ao invés de funcional. O coração é o eixo, o centro pré-funcional do assim chamado manto de funções (os quatorze aspectos conhecidos). O pano de fundo desta posição é que Vollenhoven, e neste aspecto em concordância com Dooyeweerd, vê o coração como um centro d escolha, de escolha e direção. E é como um centro de direção-escolha que o coração determina todo o funcionamento humano. Neste sistema filosófico, então, Vollenhoven trata o coração como uma terceira qualificação ou determinante da criação, a determinação via a oposição ou antítese do bem e do mal.36

Vollenhoven se engajou em um intenso debate com problemas antropológicos e esteve invariavelmente em contato nestas questões com A. Janse, um erudito de Biggekerke, uma pequena vila na província de Zeeland, com quem nos anos vinte e trina do século vinte desenvolveu uma notável afinidade.37 Antes dos anos vinte, a concepção de Vollenhoven ainda estava marcada pela ontologia tradicional (teoria do ser) e o dualismo corpo-alma clássico (Kok 1992, 37-43). Mas em breve, dificilmente se encontraria um adversário mais temível das abordagens ontológicas do que Vollenhoven. Mesmo a formulação ‘apontando além de si mesmo’ – que, como vimos, é uma das características da antropologia de Dooyeweerd – parece a Vollenhoven reter muito de uma antiga ontologia (aristotélica). Em sua dependência, o homem não pode apontar acima de si mesmo; ao invés disso, ele ‘alcança’ e cruza esta fronteira na ‘sala do trono de Deus’ (Vollenhoven 1992a, 186). Em Vollenhoven, este alcançar é uma atividade genuinamente transcendente, não um apontar-além-de-si-mesmo ‘ôntico’.38 É provável que esta resistência a qualquer tipo de ontologização explique porque Vollenhoven restringiu sua análise do ser humano à dualidade pré-funcional/manto funcional-do-coração, e que ele não deixou, como Dooyeweerd, a análise das coisas estruturais se aplicar à antropologia (na forma de subestruturas, encapticamente entrelaçadas ao todo). Se suspeita, mesmo que ele não seja explícito sobre isso, que Vollenhoven tenha entrevisto demasiada substancialização no ensinamento das subestruturas.

  • Mal e transitoriedade [vergankelijkheid]: J. Popma

Dooyeweerd conecta o tempo primariamente à diversidade (modal). Vollenhoven, como vimos, iguala tempo e mudança. Em K.J. Popma nós encontramos com uma outra ênfase: o tempo como marca de transitoriedade. As publicações de Popma testificam um forte fascínio com este tema. Muitas vezes encontramos passagens lidando com temas como cansaço, esgotamento, envelhecimento, doença e decadência física.39 Esta preocupação não pode ser entendida em isola- mento de suas visões sobre o problema do tempo.40 Uma das questões levantadas por Popma é:

Como pode a filosofia fazer justiça à visão bíblica de que a vida eterna do crente se inicia antes mesmo da morte, sem recorrer a um dualismo entre eternidade e tempo, entre o imperecível e uma parte transitória no ser humano?41

Popma (1965,251-252) responde como se segue:

Em conexão à relação do tempo e da eternidade, na existência humana nós encontramos duas formas. A primeira é a perenidade, e a segunda é a habilidade/ possibilidade religiosa de se posicionar contrariamente ao tempo na ‘atitude antitética’ do pensamento. Esta própria atitude do pensamento é típica do pensamento teórico, mas a questão é – O que a torna possível? Sua possibilidade repousa nisto, em que os seres humanos têm o dom (que pode ser mal utilizado mas nunca completamente perdido) de assumir uma posição contrária à sua posição como criatura, para adquirir insight teórico sobre a criação.

Como uma primeira impressão, esta é uma afirmação dooyeweerdiana, pelo menos se substituirmos ‘eternidade’ por ‘supratemporal(idade)’. Nós recordamos que Dooyeweerd também falou do autoconhecimento religioso como uma condição necessária para a atitude teórica do pensamento.42 Porém, em uma observação mais atenta, Popma introduz aqui mais nuances do que Dooyeweerd o faz, e isto tem relação total com o tema do mal e a transitoriedade da criação.

Em razão do poder do mal em todas as suas manifestações, a vida humana está em uma tensão contínua. Por um lado, Popma enfatiza que a totalidade da existência humana está sujeita à decadência e, à vaidade, à falta de plenitude. Não existe uma zona segura, nenhum abrigo das tormentas da vida, nem mesmo no coração. Por outro lado, um ser humano está a salvo e seguro com Cristo em Deus por meio do vínculo da fé. Desta forma, Popma (1963, 291-311) segue, este vínculo da fé com Cristo não pode ser identificado com a experiência, nem com a experiência da fé, nem com uma doutrina filosófica ou teológica. Crer é conhecer a Cristo, e qualquer que conhece a Cristo tem a vida eterna, mesmo na existência temporal.43

Popma estende a tensão ao limite. A relação entre tempo e eternidade é uma dualidade. Estritamente falando, esta dualidade não precisa ser endurecida em um dualismo, mas na vida diária nós comumente testemunhamos uma ‘situação cismática’, uma ‘existência em contradição’.44 No entanto, a natureza inviolável e imperecível do vínculo da fé com Cristo não é algo deparado em humanos, algo que escapa o tempo e as histórias de vida pessoal (Popma 1963, 304). A tensão sentida aqui é expressa no ‘entanto’ da fé. A totalidade do ser humano em suas aparências ‘externas’ é sujeita ao cansaço, à decadência, à enfermidade e, finalmente, à morte; no entanto, o ser humano e sua existência ‘interna’ é renovado dia a dia. ‘Externo’ e ‘interno’ referem-se ambos à totalidade do ser humano, seja ou não enxergado a partir de distintos pontos de vista (Popma 1963, 265-289; a frase é encontrada em 288).

Popma criticou em dadas ocasiões o ensinamento de Dooyeweerd sobre o coração supratemporal. Ele via este como uma forma inapropriada de metafísica (Popma 1963, 308-309; Popma 1962, 78ff). Agora nós podemos saber o porquê – de acordo com Popma não existe nada no ser humano, nenhum ego metafísico, imune ao efeito do mal e da decadência. A crítica de Popma a este respeito não é bem fundamentada. Em Dooyeweerd também, o coração certa- mente não é um abrigo livre da tormenta – pense em sua caracterização da antítese religiosa como uma batalha na ‘raiz-da-comunidade religiosa’ (i.e. no coração). Dooyeweerd se posicionou firmemente contra todas as formas de substancialização do coração como uma abstração metafísica. Ainda assim, isto não diminui o mérito de Popma de que ele, como um dos primeiros na filosofia reformacional, chamou a atenção para a historicidade da humanidade e vinculou esta historicidade com o mal e a transitoriedade.45

  • Autoconhecimento religioso e as pressuposições trans- cendentais: Geertsema e outros

Como pode o autoconhecimento religioso, que é o autoconhecimento de uma pessoa concreta e única, simultaneamente servir como uma pressuposição transcendental (ou seja, como a condição inquestionável) da atitude do pensa- mento? Em outras palavras, qual é a relação entre o caráter geral, teórico-filosófico, desta pressuposição e o caráter unicamente pessoal, concreto, do autoconhecimento? Esta é a questão central levantada por alguns estudantes posteriores na discussão com Dooyeweerd.

Geertsema (1970, 47), o primeiro a elaborar o problema de forma clara, questiona se a conexão entre os dois é legítimo. De acordo com ele, o caráter individual do coração, como o ponto de concentração pode não ser de todo questionável na teoria do conhecimento. Poderia se argumentar que o tema na epistemologia é o ato de conhecimento do pensa- dor individual. Em Dooyeweerd, no entanto, epistemologia e ontologia (cosmologia) estão correlacionados. A ideia do coração como um ponto de concentração supratemporal é o nexo decisivo. Para Dooyeweerd, o ego, ou coração, é a expressão da unidade da diversidade modal como um dado básico ôntico (cósmico) (Geertsema 1970, 48). A totalidade do cosmos temporal está concentrada no coração como uma pressuposição transcendental. Típico de Dooyeweerd é que precisamente a natureza religiosa do ego torna possível a transição do epistemológico ao ontológico (ou cosmológico). A religião consiste nisso, em que a Origem se expressa no co- ração como o ponto supratemporal de concentração, e que a plenitude da criação, a totalidade do significado, se orienta à origem do significado no coração como a raiz-de-unidade.46

Na verdade, encontramos aqui um segundo problema. Nós começamos com a questão sobre a relação entre o autoconhecimento religioso concreto e o autoconhecimento como pressuposição transcendental. A questão seguinte, no entanto, é: O que está ontologicamente pressuposto neste autoconhecimento religioso? Em relação à primeira questão, é de fato difícil manter que a plenitude da realidade criada esteja concentrada em cada coração humano individual, e Dooyeweerd não tem como intenção afirmar isso. Nesta conexão, ele se refere a um centro da existência humana ‘tanto individual quanto supra-individual’. Neste ego, o “eu” aponta além de si mesmo para aquilo que reúne a totalidade do ser humano em uma unidade na ‘raiz’ da criação, queda, redenção (NC I, 60). O eu individual, portanto, participa naquilo que Dooyeweerd (de forma nada elegante) denomina ‘comunidade-raiz’. Ela não é um fenômeno social, ou ainda me- nos eclesial, concretamente identificável, em lugar disso, é a comunidade espiritual de toda a humanidade como criada, caída no pecado e convidada a se apropriar da salvação em Cristo. Mesmo assim, a questão é se esta justificação resolve o problema filosófico como tal. Geertsema (1970, 49) pontua que a respeito da comunidade(raiz) religiosa, o problema inicial retorna. Pode o entendimento bíblico de uma comunidade religiosa ser virtualmente identificado com o caráter transcendental da comunidade-raiz como uma unidade de diversidade modal?47 Para Geertsema e outros esta é uma questão retórica.

Em relação à questão sobre as pressuposições ontológicas no autoconhecimento religioso e na apresentação das ideias de Dooyeweerd sobre a supratemporalidade do coração, continuamente enfatizei o caráter dinâmico do autoconhecimento religioso. No curso de sua vida, Dooyeweerd sublinhou isto com insistência crescente, de tal forma que em algum ponto ele se refere ao supratemporal religioso como ‘a esfera de ocorrência central’ (NC I, 32). Não será eficiente, portanto, acusá-lo de substancialização do coração. Entre- tanto, pode-se perguntar se esta abordagem ao dinamismo religioso não pressupõe implicitamente uma ontologia específica (possivelmente questionável). Relativo à antropologia, nós devemos nos recordar da elaboração de Dooyeweerd, da ideia do ser humano como a imagem de Deus:

Sentido é a convergência ‘ex origine’ de todos os aspectos temporais da existência em um foco supra- temporal, e este foco… é a raiz religiosa da criação,  a qual tem sentido e, portanto, existência apenas em virtude do ato criativo soberano de Deus.

A plenitude de sentido está implicada na imagem religiosa de Deus, expressando-se na raiz de nosso cosmos e na divisão daquela raiz no tempo” (NCII, 30).

Deus criou o homem à sua própria imagem. Ele deu expressão à sua plenitude divina do Ser [sic!] na totalidade de sua criação, como uma totalidade de senti- do” (NC II, 307)48.

A humanidade, portanto, não revela apenas algo de Deus, que também revela algo de si na humanidade – sua plenitude é expressa na totalidade (de ser) da criação, concentrada no coração, especificamente no coração supratemporal.49 Geertsema pontua uma colocação neoplatônica, teo-ontológica, do problema (Plotino; retrocedendo a Parmênides). Em Dooyeweerd, a relação entre Deus e a criação é uma relação entre unicidade-na-Origem e diversidade-no-tempo. Ao lado de uma rigorosa descontinuidade, existe também uma continuidade entre Deus e a criação. Tanto a continuidade quanto a descontinuidade ganham expressão na metáfora do prisma – o feixe de luz da unidade supratemporal é disperso pela ordem cósmica do tempo (o prisma) em uma diversidade modal de feixes (Geertsema 1970, 149-153).

O próprio Geertsema prefere uma linha de pensamento buscada por Schilder e Berkouwer, interpretando a ‘imagem de Deus’ como representação, em outras palavras, como uma categoria de agência em lugar de uma categoria do ser – Deus comissionou seres humanos para ações responsáveis, ser humano é ser responsivo em responsabilidade (Berkouwer 1957, 51ff; Schilder 1947, 263-306; Geertsema 1992, 137- 146). Tal responder está imbricado na estrutura da criação. O ôntico não dever ser oposto ao relacional aqui. É em relação a Deus e ao próximo que o ser humano se aprofunda e os humanos vêm a ser o que são, seu destino ôntico (Berkouwer 1957, 289).50

Brüggeman-Kruijf, que também nota certa afinidade entre a filosofia do tempo de Dooyeweerd e as concepções neoplatônicas de tempo (tempo como um médio entre o uno e o múltiplo), e além disso pontua que a ênfase de Dooyeweerd na unidade do coração tende a ignorar a ruptura interna e condição fraturada da existência.51

Se esta crítica é justificada – como eu creio que seja – mais está em jogo. Poderíamos, por exemplo, também questionar a noção do eu como centro. Klapwijk (1987) notou que talvez seja mais adequado dizer – com alguns fenomenologistas – que o eu é excêntrico, em lugar de central ou centrado. Em Vollenhoven (1967, 96) nós notamos algo como isso quando ele afira que Cristo, mais do que nós mesmos, é o centro  de nossa existência. De fato,  em Dooyeweerd, o “eu” não  é também centrado em si mesmo, como por exemplo fica claro de seu uso da noção de ‘existência’ e de sua ênfase no dinamismo concêntrico em relação à Origem. Ainda assim, pode se perguntar se termos como ‘ponto’ (de concentração) e ‘centro’ são inteiramente adequados para fazer justiça a este ser-fora-de-si-mesmo estrutural.

Minha sugestão é que, especialmente o quadro de referência transcendental, seja a causa deste problema. Termos como ‘referir’ e ‘expressar’ apontam para as dinâmicas entre Deus e a criação, mas ainda assim eles são menos apropria- dos quando se trata de compreender o escopo total do relacionamento – bem atual – entre Deus e a criação. Nós nunca encontramos o “eu” como algo em si mesmo, como à parte; invariavelmente nós encontramos o eu em relacionamentos, um dos quais é o relacionamento eu-isto. Este relacionamento eu-isto está entrelaçado com a relação com outros  e com Deus. Dooyeweerd certamente não negaria isto, mas em sua abordagem a estas relações a relação com a Origem predomina. O próprio termo Origem, no entanto, estreita o campo terminológico a um vai-e-vem de referir e expressar, concentração e divergência, o uno e o múltiplo. Quando a relação entre Deus e os seres humanos é esvaziada do quadro de referência transcendental, a natureza relacional dos seres humanos pode ser entendida como ‘imagem’ da natureza relacional de Deus, como a trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O termo ‘Origem’ não traz esta natureza relacional da Trindade divina sob foco. Também, justiça pode ser feita ao fato de que a unidade espiritual não apaga as diferenças entre as pessoas, em vez disso, ela as reconhece plenamente. O quadro de referência transcendental leva a uma ênfase unilateral sobre a unidade do ser humano e deixa pouco espaço para o reconhecimento do ser-outro e ser-à-parte do outro. Central a esta crítica não é tanto que a antropologia de Dooyeweerd não seja relacional (ela certamente é relacional). O ponto é que o quadro de referência transcendental no qual esta antropologia é lançada conduz a uma ênfase unilateral sobre noções como centro, unidade e indivisibilidade.

  • Uma voz distinta: John Cooper

Publicações anglo-saxãs deixam claro que a rejeição do dua- lismo corpo-espírito certamente não é autoevidente. E isso é verdade também para o contexto da filosofia e da teologia cristã. Um papel importante é exercido pela análise da confissão cristã relativa à existência continuada da alma após a morte. Me restringirei à obra de John Cooper (1982), (1989), que escreveu inúmeros artigos e um livro sobre este tópico.52

Cooper deseja partir das afirmações bíblicas em relação à alma e sua vida após a morte. Parte de seu livro, portanto, consiste em uma discussão de passagens bíblicas relevantes e os comentários feitos a elas por uma variedade de filósofos e teólogos. Em última instância, ele aceita um dualismo holístico (o todo é maior do que a soma das partes). O ensinamento bíblico relacionado aos humanos é tanto ‘holístico’ no sentido de que enfatiza a integração funcional da existência humana anterior à morte, e dualista, no sentido de uma continuidade não-corpórea do ser humano até o dia da ressurreição. Cooper (1989, 253) mantém que visões monistas vão contra a noção bíblica do “intermediário” e o despertar no Primeiro Dia.

O que este dualismo precisamente implica? Este é um dualismo de substâncias, funções (propriedades), ou alguma outra versão? Se este envolve um dualismo de substâncias, a morte tomaria o corpo, mas não a alma. O ser humano inteiro não morreria; parte dele não. Pode isto fazer justiça à mensagem bíblica relacionada à morte como um evento englobando a totalidade do ser humano? Cooper mantém que esta objeção procede de uma visão errônea da morte,

i.e. morte como extinção, aniquilação total, desapareci- mento. Mas na Bíblia, a morte não significa que tudo para (extinção); em lugar disso, o ser humano entra em um novo modo de existência. Quando um dualista diz que John Smith morreu, ele quer dizer que John Smith foi retirado para fora de sua existência corpórea para metamorfosear em outra forma de existência.53 A alma, também, experimenta a morte, ela se move pelo momento da morte. No entanto, as almas não possuem uma independência própria. Em sua existência, elas são totalmente dependentes da providência divina. É bem possível que elas desapareçam, pois, a vida da alma após a morte repousa somente na vontade de Deus. É a vontade de Deus o não destruir os humanos inteiramente na morte. Nós poderíamos dizer que Cooper aceita uma concepção mitigada de substâncias. Corpo e alma são realidades ônticamente distintas, mas elas não são substâncias repousando em si mesmas.

O que nós pensaríamos se iniciássemos de um dualismo de funções (ou qualidades/propriedades)? Não é o caso de que o dualismo inevitavelmente conduz a uma atribuição de propriedades à alma, de tal maneira que a antropologia cristã se aproxime perigosamente do platonismo? O dualismo não implicaria que a alma devesse, pelo menos, ter a propriedade da imortalidade? Novamente, a resposta de Cooper é uma de mitigação. De acordo com ele, isto depende do que o termo ‘imortalidade’ tem como intenção nomear. Se imortalidade significa ‘não ser sujeito à morte’, então o dualista deve negar à alma esta propriedade. Nós notamos que   a alma também é sujeita à morte, embora não à extinção (Cooper 1989, 214).54 Se, no entanto, a imortalidade significa nada mais do que ‘sobreviver à morte física’, não exista razão em atribuir esta propriedade à alma. Ao fazê-lo, os dualistas cristãos não estariam condenados a uma concepção platônica de imortalidade como uma propriedade essencial (ou necessária) de uma substância chamada de alma. A imortalidade da alma, no sentido de uma existência pessoal continuada no ‘intermediário’ é, como um dom de Deus, uma característica contingente (não necessária). Além disso, a imortalidade é algo distinto da eternidade. No ‘intermediá- rio’ o moto permanece na linha do tempo como ocorre com os vivos.

O principal argumento nesta abordagem dualista, portanto, é que existe  um intervalo, um período de tempo entre  a morte e a ressurreição, durante o qual as pessoas continuam sem um corpo (Cooper 1989, 215-217). Este dualismo é tanto ontológico – embora não no sentido de uma separação de substâncias autossuficientes – e funcional. A alma possui propriedades que o corpo não tem, antes e após a morte.55 Cooper também comenta sobre a antropologia de Dooyeweerd – em uma grande apreciação. Isto, porém, não devia nos surpreender, pois ele interpreta esta antropologia como uma versão de seu próprio dualismo holista. Da forma que ele o vê, o holismo de Dooyeweerd se expressa na filo- sofia das estruturas encápticas entrelaçadas, seu dualismo é encontrado na concepção de que o coração supratemporal continua a existir após o corpo ser vertido.56 De acordo com Cooper, Dooyeweerd também ‘dicotomiza’ a existência humana, a saber pela morte. Aqui Cooper está certo e errado. Ele está certo porque Dooyeweerd de fato diz que a alma não é tocada pela morte temporal; errado porque ele avaliou equivocadamente a ideia de concentração. Como notado anteriormente, concentração implica que o todo da existência humana temporal é expresso no coração supratemporal.57 Como consequência desta negação da ideia de concentração a interpretação de Cooper do coração supratemporal tende a uma concepção do todo e suas partes; relativa ao ‘todo’ do coração e do corpo o coração é apenas uma ‘parte’. Para Dooyeweerd, no entanto, o coração não é uma parte, nem algo extra, um donum superadditum, ele é a articulação da plenitude da existência humana.58 Cooper se torna vítima de sua visão da alma como substância, e da sua identificação da alma substancial com um complexo de funções mentais e funções de atos essencialmente divorciados do corpo e suas funções bióticas.

O que foi dito acima não significa que a visão de Dooyeweerd seja imune ao questionamento crítico. Em relação à alma, Dooyeweerd diz que, diferentemente do corpo, a alma não está sujeita à morte temporal, porém, se estranha à Jesus Cristo, ela está sujeita à morte eterna (Tese V). No entanto, se a alma é o ponto de concentração de toda a existência temporal, então como a morte temporal pode deixá-la into- cada? Como pode este self incorpóreo após a morte ainda amar, desejar ou se lembrar? Falando de forma direta, a antropologia de Dooyeweerd – como uma antropologia transcendental – não permite uma resposta a estas questões. Ainda assim, existem indicações em Dooyeweerd de que aspectos do funcionamento temporal retornam ou se repetem ‘centralmente’ (na esfera supratemporal). Dooyeweerd fala de um amor central, por exemplo. E a religião, da mesma forma, é algo central para ele. Pode se perguntar se isto não implica uma duplicação ou repetição do temporal no supra- temporal.59 Tal duplicação não apenas sugere uma dualidade entre o temporal e o supratemporal, esta também vai contra o caráter transcendental da filosofia de Dooyeweerd.

Na discussão sobre a vida da alma após a morte, consideração ainda insuficiente é dada ao pensamento de que na morte, a criação se dá como se em uma direção inversa. Assim como em sua base, a criação do ser humano é um segredo, assim também a morte é um segredo – que deveria nos tornar cautelosos em identificar a alma após a morte com seja um complexo mental de funções (Cooper) ou uma construção filosófica como o eu transcendental, supratemporal (Dooyeweerd).60

A diferença entre Cooper e Dooyeweerd repousa sobretudo em uma diferença em sua abordagem em relação à filosofia como tal. Dooyeweerd é bem mais hesitante do que Coo- per em mesclar a revelação bíblica relacionada aos humanos com uma análise filosófica. Sua obra contém poucas referên- cias ao ‘intermediário’ e à ressurreição. Ainda assim, espe- cialmente a antropologia filosófica, não pode se dar sem a mensagem multicor da Bíblia sobre os seres humanos. Por outro lado, a obra de Cooper demonstra como a análise filo- sófica pode prontamente se equivocar nesta direção.

  1. As novas iniciativas sistemáticas

  • O despertamento do debate filosófico na antropologia

Se deixarmos de lado algumas contribuições casuais, não é até meados dos anos 1980 que podemos falar de um despertamento do debate sobre antropologia na filosofia reformacional. Em 1986, a Associação para a Filosofia Calvinista organizou uma conferência internacional sobre “Sendo Humanos”.61 Além disso, no mesmo ano, Ouweneel publicou sua tese de doutorado sobre a antropologia de Dooyeweerd. Na esteira deste, um grupo de estudos em antropologia organizou uma série de reuniões e apresentou os resultados de suas reflexões no primeiro número da Philosophia Reformata

  1. Abaixo, ressalto alguns aspectos trazidos nestas publicações.
  • A direção antecipatória do ser humano

Em um artigo importante, Stafleu (1991) sugere que aqueles trabalhando com o legado de Dooyeweerd estão apenas agora começando a colher os frutos antropológicos de seu pensamento. Central no próprio tratamento de seu sistema por Stafleu é o pensamento de que ser humano se dá por excelência na direção antecipatória, a saber, em alcançar funções mais elevadas, e em última instância a função da fé. Esta abordagem é também encontrada em Dooyeweerd. A estrutura de atos é flexível e aberta exatamente em razão do processo de abertura no sentido antecipatório. Em conexão com esta antecipação Dooyeweerd fala da direção transcendente do tempo na ordem da abertura dos aspectos. Stafleu (1986) aceita o ensinamento de Dooyeweerd relacionado ao tempo cósmico, mas porque ele coloca grande ênfase no transcender como antecipar, parece ser capaz de evitar o problema transcendental da unidade e diversidade (veja acima).62 Não é exagerado dizer que em Stafleu, a antecipação e a retrocipação tomam o lugar daquilo que em Dooyeweerd seriam a concentração e a divergência.

Nós podemos entender porque Stafleu aborda o tema desta forma quando consideramos suas visões sobre a ciência natural. Na ciência natural, a restrição metodológica ao físico, incluindo retrocipações do físico, provou ser enormemente bem-sucedida. Em relação aos humanos, no entanto, esta abordagem é fadada ao fracasso. Nos seres humanos, as funções pós-físicas, em particular, dificilmente podem ser encontradas em uma forma não-aberta. Humanos são ati- vos em todos os aspectos, não apenas na retrocipação, mas também, é especificamente, em uma direção antecipatória. Assim, a restrição metodológica às funções e suas retrocipações é uma tarefa impossível. Além disso, a doutrina das estruturas de individualidade é de um valor limitado no pós- físico. A estrutura de atos, por exemplo, não possui uma função fundante ou qualificadora. Stafleu não diz isso explicita- mente, mas pode se questionar se esta estrutura pode ainda ser chamada de uma subestrutura.63

Em vista do apresentado acima, é compreensível que ao discutir o funcionamento pós-psíquico, Stafleu tenda em grande medida para a análise modal. No entanto, uma dificuldade surge aqui. A existência humana ocorre de uma forma tão multiforme e variada, que se torna dificilmente possível abstrair o funcionamento ao ponto em que somos deixados puramente com um ‘sujeito modal’. Além disso, Stafleu demonstra que é possível clarificar a existência humana em termos de relações sujeito-objeto modais. Estas relações referem-se às funções subjetivas em lugar de sujeitos (pessoas, egos). Ele nota corretamente que esta abordagem, a qual busca considerar o caráter relacional do ser-humano, tem até o momento sido pouco explorada.

Notável no contexto das relações entre humanos e animais é que Stafleu atribui aos animais funções subjetivas na lógica, lingual e social – com a restrição de que nestas funções, os animais funcionam acima de tudo de uma forma retrocipatória. Em outras palavras, o comportamento animal pós-psíquico, expresso na habilidade (limitada) de distinguir, em simbolização primitiva e interação mútua, é totalmente marcada pelo funcionamento biótico e psíquico.

Em relação à distinção mente-corpo, Stafleu mantém que o que está em questão é primariamente a dualidade de direções antecipatórias e retrocipatórias. Em razão da abertura e flexibilidade da existência humana e porque a pessoa humana não pode ser analisada como uma estrutura de individualidade com uma função guia e fundante, todas as ênfases deveriam ser colocadas no aspecto da direção. A existência humana é caracterizada por um ser-dirigido simultâneo, tanto na retrocipação (corpórea) e na antecipação (espiritual), ambas direções envolvem todos os aspectos modais.

A ênfase de Stafleu na antecipação é reforçada ao ponto em que ele tende a uma forma de pensamento emergente.64 Sob condições específicas, existem estruturas que se desenvolvem (no sentido antecipatório) de tal forma que novas estruturas podem emergir. Isto não significa que as leis para estas novas estruturas já não existissem; elas apenas não eram operacionais. Se entendo Stafleu corretamente, (1991, 127) ele atribui o momento ativo e efetivo em direção a tal emergência sobretudo ao lado-sujeito.

Deixe-me encerrar esta seção com alguns comentários sobre a totalidade estrutural encáptica como uma (forma-) totalidade morfológica. Com Dengerink (1986, 256 ff, 333, 339), Stafleu tem pouco uso para esta caracterização. Sua hesitação é compreensível, mas isto deixa inexplorado uma linha possível de estudo oferecida pela teoria da estrutura de Dooyeweerd. Em relação às totalidades estruturais, Dooyeweerd geralmente diz que estas são identificáveis tanto por sua forma sensível objetiva quanto por sua forma cultural objetiva. Em relação ao corpo, ele afirma que a totalidade da forma é expressa na estrutura ‘exterior’ do corpo. Isto significa que ele opta pelo primeiro tipo – o corpo é reconhecido em virtude de sua forma sensível objetiva. Isto parece autoevidente, mas nos deixa de alguma forma insatisfeitos. O adjetivo ‘exterior’ sugere que o entrelaçamento das subestruturas se manifestam primeiramente em um sentido espacial-visual, a espacialidade proporcionou e demarcou o corpo como um aglomerado de entrelaçamentos espacial e visível.

Na experiência do corpo espacialmente visível, demarcação e proporção indubitavelmente exercem um papel importante. Outras ‘demarcações’, no entanto, embora não primariamente visuais, parecem menos importantes. Considere os limites sociais e emocionais – nós permitimos “A” se aproximar de forma mais aproximada de nós do que “B”. A ênfase de Dooyeweerd na forma exterior do corpo (morfologia) é um critério muito estreito para abarcar a totalidade da corporeidade. Os humanos não estão trancados em sua pele. Se nós continuássemos a enfatizar o espacial, deveríamos também considerar retrocipações do espacial nos aspectos, por exemplo, físico, social e jurídico e, juntamente destes, considerar a significância integradora da representação interna do próprio corpo, nossa autopercepção corporal (ver Glas 1995b). Em pacientes sofrendo de anorexia nervosa e em alguns pacientes psicóticos esta representação interna é seriamente distorcida. No encontro com tais pacientes nós somos impactados pela importância do corpo como percebido por si mesmo, por experiências emocionais, pela autoavaliação e pela organização do comporta- mento.

Em adição a tais analogias espaciais, podemos também pensar de uma variante da segunda possibilidade na concepção de Dooyeweerd – como ‘forma cultural objetiva’. Humanos são formativamente seres ativos (o modo histórico de ser). É em tal atividade formativa, no trabalho, lazer e arte, que humanos revelam sua singularidade e totalidade. Nós podemos denominar isso um entrelaçamento interior da totalidade-da- forma da corporeidade humana – como um complemento do entrelaçamento morfológico, exterior. Pelo que conheço, esta possibilidade no pensamento de Dooyeweerd em relação à caracterização da totalidade estrutural encáptica não tem, até o momento, sido notada.

  • O aspecto psíquico; emoções

Conectando com sugestões já encontradas em Vollenhoven, Troost e Van Dijk, Ouweneel propõe dividir o aspecto psíquico em uma aspecto perceptivo e sensitivo. O perceptivo se rela- ciona a percepções básicas ou elementares. Estas emergem de uma consciência irrefletida do estímulo sensível. Certos com- portamentos instintivos e tendências em animais, Ouweneel argumenta, pertencem também ao perceptivo. O aspecto sensitivo envolve emoções, impulsos e pulsões.

Ouweneel encontra um argumento central para dividir o psíquico em uma modalidade perceptiva e sensitiva na visão do neurofisiologista McLean, que afirma que o cérebro consiste em três partes morfológica e bioquimicamente distintas: o tronco cerebral, incluindo o núcleo basal (‘cérebro reptiliano’), o sistema límbico (‘cérebro paleo-mamífero) e neocórtex (‘cérebro neo-mamífero’). Esta tríade corresponde incrivelmente com a divisão proposta em uma estrutura perceptiva, sensitiva e espiritiva (ou estrutura de atos). O tronco cerebral e o núcleo basal funcionariam no sentido perceptivo, o sistema límbico corresponderia à esfera sensitiva, enquanto o neo- córtex funcionaria no sentido espiritivo. O termo ‘espiritivo’ se refere ao que Dooyeweerd denomina estrutura de atos.

Um segundo argumento para dividir a modalidade psíquica repousa na aplicação da crítica de Dooyeweerd às antinomias ao psíquico. A crítica diz respeito a inconsistências e contra- dições que emergem quando a inquirição científica do fenômeno falha em fazer justiça às distinções modais. Ouweneel (1986, 115) argumenta que inconsistências e contradições de fato emergem quando as percepções e as emoções são reduzidas a uma simples modalidade. Tal redução é confrontada com a dificuldade que algumas percepções surgem de forma bastante independente dos sentimentos e das emoções, de forma contrária nenhum sentimento e emoções surgem totalmente independente de percepções. Isto implicaria que, para o psíquico, algumas leis sensitivas são encontradas. que não se mantêm para todos os sujeitos funcionando dentro desta esfera de lei. Afinal de contas, aceitamos que animais funcionam na esfera de lei psíquica., mas de muitas ordens de animais inferiores, não dizemos que têm emoções e pulsões, i.e. que eles funcionam no sentido sensitivo.

A proposta de Ouweneel é atraente e estimulante, mas também encontra objeções. Em primeiro lugar, existe uma objeção empírica. O tronco cerebral e o núcleo basal por    si mesmos provavelmente não são suficientes para fazer emergir até mesmo a mais elementar forma de consciência – formas elementares de consciência pressupõem a atividade cortical, pelo menos em humanos.66 Isto conduz a uma segunda questão. Não seria o caso que Ouweneel indentifica de forma precipitada algumas estruturas do cérebro com subestruturas na teoria filosófica da estrutura? Acima, notei que na visão de Dooyeweerd, os processos cerebrais devem sempre ser estudados em termos da totalidade do funcionamento humano, ou seja, em termos de todas as quatro subestruturas. Parece como se Ouweneel identificasse as várias camadas (anatômicas e funcionais) no cérebro com o funcionamento de aspectos modais de uma dada subestrutura.

Estas objeções não resolvem o tema da diferença factual entre a percepção como tal e o acesso afetivo primário. A questão é se esta diferença é suficientemente incisiva para postular a existência de uma esfera de lei separada. Nós podemos tomar um caminho distinto – aceitar, por exemplo, que tanto a percepção quanto a avaliação afetiva estão sujeitos a um processo qualificador subjacente. Nós podemos pensar no fato de que animais são menos rigorosamente conectados ao seu ambiente do que as plantas, e que para a sobrevivência e adaptação a um Umwelt em modificação, muitas respostas comportamentais inatas devem possuir certa variabilidade. O processo de aprendizado exerce um papel dominante em colocar tal variabilidade em uso, mesmo nas espécies animais mais inferiores (ver Carew, Walters e Kandel 1981, Kandel 1983, Kandel e Hawkins 1992). As diferenças entre sinalizar (perceptivo) e avaliação pré-reflexiva (sensitiva) desaparece, porque no processo de muitos sinais não é tanto a complexidade da consciência que conta, mas a complexidade do processamento (não-consciente) de in- formação. Animais tipicamente aprendem, porque eles são capazes de atribuir valores de manutenção e sobrevivência para todos os tipos de sinais no ambiente. O processo de aprendizagem determina, dependendo do ‘valor sensitivo’ do sinal (sinais de perigo, sinais de segurança), se certos padrões de comportamento serão fortalecidos ou inibidos.67 Memória ou lembrança exercem um papel preponderante em tais ‘avaliações de valores’.

Eu concluo esta seção com um breve comentário sobre a discussão em relação às emoções. Dooyeweerd, nós vimos, afirma que a estruturação encáptica do corpo implica que: à medida que as estruturas mais elevadas, na totalidade estrutural, temporariamente cessa de exercer seu papel condutor, as [estruturas] inferiores também se manifestarão exteriormente [i.e. como separada], de acordo com uma lei própria a ela. (compare, por exemplo, o papel temporário das paixões quando uma deliberação racional está momentaneamente ausente)” (Tese XI).

Dengerink (1986, 133) mantém que aqui Dooyeweerd dá a impressão de que a vida emocional “é caótica por natureza e necessita ser mantida nos trilhos pela razão (!).”68 Dooyeweerd certamente toma o termo ‘vinculante’ (vínculo encáptico) de forma bastante literal. Glas (1989) demonstrou que dentro do pensamento de Dooyeweerd é possível mais nuance, a saber entendendo a estrutura das emoções em um sentido tripartite:

  • Como subestrutura sujeita às suas leis próprias (rígidas) se manifestando em um sentido ‘externo’ (Ver Tese XI, recém citada), isto se relaciona à situações limite (um ataque de ira);
  • Uma subestrutura intencionalmente objetificada dentro da estrutura de atos; pense na situação que a atenção é dada a uma reação emocional específica você reconhece que você está irado quando nota os punhos cerrados);
  • Uma subestrutura somada em e aberta pelo ato; pense no colorido afetivo de muitas atividades (lavando os pratos de forma irritadiça).

Ainda assim, cada uma destas três versões são insuficientes para dar conta do fato de que as emoções primeiramente possuem uma função de sinalização e orientação pré-reflexiva, e que esta sinalização e orientação não apenas nos dizem algo sobre aquilo que é sinalizado (o objeto emocional), mas também e especialmente sobre aquilo que é subjacente à emoção. Emoções, em outras palavras, têm a ver com a re- lação eu-self. A relação eu-self deveria ser entendida como uma relação entre o “eu” no sentido central e os aspectos da estrutura do corpo. As emoções referem-se a uma mudança de posição pré-reflexiva inicialmente comum, sutil, na relação eu-self. De forma inconsciente, cora-se (a posição se modifica) e apenas então alguém se torna consciente de estar envergonhado (veja o b acima). Corar não é apenas uma ‘manifestação externa’ da subestrutura ‘animal’ (ver a). Como parte da totalidade do funcionamento humano, a vergonha revela algo sobre mim, por exemplo, o quão mal e inferior eu sinto sobre eu mesmo. Se insistirmos na reação ‘animal’, está certo, conquanto que entendamos que esta reação como tal (não secundariamente) nos diz algo sobre a pessoa corando. Precisa- mente as manifestações de emoção são plenamente pessoais.

Estas noções podem ser tratadas de forma justa se começarmos a partir de uma vida de atos multi-facetada: a orientação afetiva como uma expressão pré-reflexiva de como eu me relaciono comigo mesmo e com o mundo.

  • Camadas na vida de atos: disposições e ethos

Alguns têm também sugerido que a vida de atos é multi-camadas, especialmente Troost (1983), (1993) tem sido bastante explícito quanto a isso. Para concluir, considerarei brevemente suas visões. O interesse primário de Troost é a ática filosófica. Ele vê isto como praxeologia, o que quer dizer, como uma filosofia da ação humana enquanto determinada pelo ethos, as disposições (determinadas pelo temperamento e o caráter) e princípios subjacentes às ‘estruturas normativas situacionais’. Troost insiste que esta praxeologia deveria ser distinguida agudamente da ética, que é a ciência especial investigando a natureza apropriada e o lugar do aspecto moral do amor no contexto da realidade total. Nosso interesse obviamente é nas duas áreas de interesse praxeológicas mencionadas anteriormente: o ethos e as disposições.

Dooyeweerd distinguiu entre a alma (ou coração) e os atos. A Tese XXVIII expande isto ao caráter, temperamento e disposições:

o caráter como tal é de uma natureza típica normativa. O temperamento (qualificado psiquicamente), no entanto, é vinculado encapticamente no caráter. E no temperamento, por sua vez, estão encapticamente vinculados as disposições tipicamente qualificadas bióticamente (em particular o sexo), e as disposições tipicamente qualificadas fisicamente (disposições motoras no ‘tempo’ da pessoa).

Na obra de Troost, encontramos elaborações posteriores destas noções. A novidade aqui comparado à Dooyeweerd é a introdução do ethos. Troost apresenta o ethos como um estrato da vida de atos, de fato o mais inferior, o primeiro círculo em torno do coração como o centro. Ethos refere-se ao poder fundamental na personalidade, uma camada básica, continuamente operativa e integradora que direciona e organiza todos os desejos e esforços. Além disso, o ethos é comunal. Da mesma forma, podemos também dizer de culturas que elas são determinadas pelo ethos. Troost (1983, 108-13) mantém que termos como mentalidade e atitude são, aqui, insuficientes. Ethos se refere à motivação religiosa-ética de todo o comportamento humano, o conteúdo deste ethos incorpora expressões nas visões de mundo. Para Troost as disposições também constituem o nódulo ou junção de entrelaçamento com outras estruturas corporais. Para utilizar uma metáfora espacial, as disposições são localizadas entre o ethos e os atos de um estrato inferior (ou uma fase profunda) na vida de atos. Característico das disposições é que elas não estão vinculadas a uma qualificação modal única. Uma virtude tal como a coragem pode se manifestar, por exemplo, em interações mútuas (ousadia), e na estética (ousadia artística) ou na religião (a fortaleza da fé). Troost traça um paralelo com o papel exercido pela intuição no processo de aquisição de conhecimento. Dooyeweerd chamou de intuição um ‘estrato intermodal’ no conhecimento – intermodal, porque intuição envolve pelo menos alguma experiência do sentido de coerência multifacetado da realidade. Disposições são similares neste respeito, elas não podem ser analisadas em termos de uma “mero entrelaçar conceitual de antecipações e retrocipações”. Elas são ancoradas em uma camada profunda na vida de atos, onde modalidades “se tornam novamente conjuntas e se interpenetram.” (Troost 1993, 64)69

IV.  Conclusão

Um ponto deveria estar claro até o momento – a antropologia filosófica reformacional deriva sua vitalidade e amplitude de um esforço sustentado de pensar de forma conjunta estrutura e dinamismo. Eu tenho, portanto, concentrado nisto e – embora lamentando fazê-lo – deixei de lado os confrontos com pensadores como Heidegger, Sartre, Bergson, Ricoeur, Gadamer, Buber (para mencionar apenas alguns). Em consequência disto as obras de Zuidema, Van der Hoeven, Olthuis e Klapwijk permanecem sub-representadas.

Muito ainda há que ser feito – em conexão com a teoria estrutural precisamos de reflexões sobre temas tais como identidade e a relação eu-self e, juntamente com isso, pro- cessarmos pontos de achados científicos, especialmente nos campos da biologia (molecular) e as neurociências. Em conexão com o dinamismo, precisamos confrontar o vazio e a ausência de sentido na obra de pensadores cuja afinidade está com Nietzsche (ver Glas 1993). Além disso, o encontro com o pensamento judaico (Heschel, Levinas) e com o pensamento filosófico cristão na América do Norte é apenas o princípio. O futuro da antropologia filosófica reformacional não repousa em disciplinas filosóficas específicas (conquanto necessárias estas possam ser), nem em visões de mundo impressionistas (conquanto estas cosmovisões possam ser). Seu futuro repousa na concentração sobre a coerência intrínseca da análise estrutural e a resposta religiosa.


Leia os outros artigos da série Diálogo e Antítese clicando aqui.  ou aqui.


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NOTAS

 

    • Este texto surgiu em holandês em um capítulo em Van Woudenberg (1996). O autor agradece a J.N. Kraay por sua tradução conscienciosa do capítulo (N.doT. do holandês para o inglês). Embora meus pensamentos – por exemplo, em relação ao relacionamento eu-self e sua importância para a filosofia da mente e a filosofia da psiquiatria e a neurociência – tenham se desenvolvido com o tempo, eu fiz apenas algumas correções e adições comparadas ao texto original. Alguma literatura recente é adicionada em relação ao texto
    • doT. O termo pilarização (verzuiling) no contexto holandês se relaciona à proposta de reformadores políticos como Kuyper e Dooyeweerd que defendiam e articularam o direito de comunidades confessionais – com sistemas de crenças distintos – refletirem estas crenças em um arranjo institucional próprio, promovendo uma espécie de pluralismo social composto de distintas comunidades confessionais, como protestante, católica, secular, dentre outras. A pilarização foi duramente criticada por liberais de várias matizes, proponentes da depilarização (onsuiling), por estar aquela supostamente promovendo uma fragmentação do tecido social, sendo até mesmo criticada como fortalecendo o regime separatista sul-africano.
    • Para a abrangência e profundidade deste tema, ver Charles Taylor (1989; 1991). Para um relato psicológico/social e construtivista, ver Gergen (1991).
    • Esta teoria do atraso, desenvolvida pelo biólogo holandês Louis Bolk (1866-1930), é considerada agora como obsoleta. Psicólogos do desenvolvimento e neurobiólogos não consideram o bebê como um recipiente passivo, mas descobriram que o bebê já em seu nascimento possui um repertório motor refinado e habilidades sensoriais avançadas. Por intermédio deste equipamento bio-psíquico específico, ele molda e inicia a interação mãe-filho desde o princípio. Ver por exemplo, Stern (1985).
    • Uma das melhores introduções ainda é van Peursen (1956/1966).
    • Veja Murphy (1998), (2006) e Murphy e Brown (2007) para uma defesa desta posição desde um ponto de vista cristão. 7 Para introduções claras, ver Glover (1988), Cassam (1994), e para a tradição hermenêutica, ver Ricoeur (1992).
    • O behaviorismo psicológico e filosófico tentou tornar a necessidade solipsista em uma virtude dizendo que comportamentos e enunciados ver- bais que se referem ao eu interior são erroneamente entendidos como se referindo à realidade imperceptível, imaterial, em algum lugar dentro do ser humano; não existe um fantasma na máquina (o corpo). A tradição inteira que se baseia nos dados introspectivos deveria ser transformada em uma teoria de comportamentos publicamente observáveis que podem ser percebidos pelos sentidos. Clássico nesta abordagem – na filosofia – é a obra de Gilbert Ryle, The concept of mind (1949). A frase ‘o fantasma na máquina’ é de Ryle. No entanto, a rejeição completa de um eu interior conhecível introspectivamente ainda delata a dependência de uma forma cartesiana de questionamento; o behaviorismo mantém sem restrições a lacuna cartesiana entre o sujeito (consciência) e o objeto (a realidade empiricamente observável). Esforços têm sido feitos para fechar a lacuna por meio da redução deste subjetivismo o quanto for possível para a intersubjetividade (pública) e (assim) objetivamente observável. Deve ser notado, no entanto, que com o surgimento da psicologia cognitiva – preparada como é para aceitar representações e esquemas mentais – o behaviorismo radical está claramente em
    • Precisamente esta transformação do eu concreto em um eu teórico foi a razão para filósofos como Kant e Husserl distinguirem, ao lado de um eu empírico, um eu transcendental. Estes pensadores não consideram a ‘teorização’ do eu como um atalho; em lugar disso, isto expressa algo essencial: o eu transcendental (ego) se torna a condição para o O fato de que o eu (sujeito empírico) possa pensar pensamentos (objeto) é possível apenas sobre a pressuposição do eu transcendental como uma condição necessária para a síntese do momento subjetivo e objetivo no (auto-)conhecimento. Este ego transcendental tem um status puramente formal, e nenhum conteúdo empírico.
    • Ouweneel (1986) foi o primeiro a escrever um tratado sistemático sobre o homem a partir de uma perspectiva filosófica Após um resumo extenso e uma apologia das categorias de Dooyeweerd, Ouweneel oferece sua própria elaboração do processo de abertura no desenvolvimento humano (Capítulo 3) e propõe distinguir uma subestrutura perceptiva próxima à subestrutura sensitiva (ver abaixo).
    • Este artigo é referido como ‘Teses’ no texto principal. Estas Teses foram posteriormente publicadas no periódico estudantil Sola Fide 1954, 8-18. Nós utilizaremos uma tradução por John Vander Stelt (com pequenas correções do tradutor).
    • Em uma entrevista Dooyeweerd oferece como razão para não publicar a segunda parte o fato de que a “corrente escolástica tradicional… de repente perdeu sua posição no departamento teológico na Universidade Livre [Amsterdam].” (Van Dunné 1976, 54) Esta pode ter sido uma razão de porque a terceira parte também não Para sua antropologia, também, o dualismo é o maior parceiro de discussão de Dooyeweerd, e este dualismo se apoia em um arranjo ‘escolástico’ de subestruturas independentes no homem. De fato, um trecho datilografado de seções importantes da terceira parte sobreviveu (Ouweneel 1986, 17-20). O autor teve a oportunidade de consultar uma tradução de 160 páginas pre- paradas pelo Dooyeweerd Centre Ancaster (Canadá). A primeira parte lida com a filosofia da natureza, e se sobrepõe ao artigo de Dooyeweerd (1950) sobre o conceito de substância. A segunda parte, relacionada à antropologia, contém uma confrontação extensa com Gehlen, Scheler, e outros, juntamente com uma elaboração dos insights de Dooyeweerd em relação às subestruturas, especialmente a estrutura de atos. Ela também contém reflexões sobre o tema da evolução, sobre o corpo como uma totalidade de forma, sobre a diferença entre o homem e o animal, e sobre o coração supratemporal.
    • Aqui temos o princípio de esfera de Quando Dooyeweerd chama atenção para a autonomia relativa das partes em relação ao todo, dizendo que o primeiro se conforma ao seu próprio princípio estrutural, ele está tentando fazer justiça ao princípio de esfera de soberania na teoria das estruturas entitárias (ou coisas). Exemplos de encápsis são a relação entre os organismos vivos e seu ambiente, e a relação entre o matrimônio e o Estado.
    • Esta adição é importante, porque sabemos como a regulação da respiração, batimento cardíaco e transpiração é grandemente influenciada pelo processo de aprendizagem, emoções e atenção Pesquisas na década de sessenta indicaram que o direcionamento da atenção para o interior resulta em uma pulsação mais baixa. Bastante conhecido é o experimento de Pavlov no início do século passado no qual ele con- seguiu estimular a salivação em cachorros pela associação com estímulos; após inúmeras ofertas de alimento em combinação com um estímulo auditivo (um sino), se provou suficiente o toque do sino para que o cachorro salivasse. O entrelaçamento do biótico (salivação) e as subestruturas psíquicas (processo de aprendizagem), então, é bastante forte.
    • O termo ‘animal’ aparece na NC II, 114 (nota): ‘Eu tenho argumentado que a estrutura de atos da experiencia humana interna é fundada em uma estrutura inferior qualificada pelas pulsões dos sentimentos na qual o aspecto físico ainda não abriu suas esferas antecipatórias… Esta estrutura animal é vinculada pela ‘estrutura de atos mais elevada da experiência humana’ (itálicos meus). No entanto, deveria ficar claro que Dooyeweerd aqui aponta a subestrutura física no sentido estrito, à parte da abertura tipicamente humana desta estrutura por meio da anteci- pação de relações sujeito-objeto.
    • Esta forma de elaboração permite a Dooyeweerd (NC II, 113) se distanciar tanto do behaviorismo quanto das psicologias que se baseiam pu- ramente em estados subjetivos internos (‘Erlebnisse’).
    • Para uma tentativa de elaborar sobre a visão de emoção em Dooyeweerd, veja Glas (1989).
    • Esta é uma elaboração de uma ideia subjacente à teoria inteira de Dooyeweerd sobre as estruturas de individualidade, e. a ideia de que mui- tas ciências, incluindo a biologia e a psicologia, invariavelmente tendem a absolutizar a função de seu conceito. A perspectiva (funcional) modal é vez e outra trocada por uma perspectiva (ôntica) em termos de entidades, diz Dooyeweerd. Funções são vistas como quase-entidades tendo vida própria. A consequência inevitável é que a coerência das funções se torna um problema. Isto em última instância resulta em seja um dualismo (duas funções feitas independentes e posicionadas uma em oposição à outra) ou algum tipo de monismo (redução das funções a apenas uma).
    • Objetivando a brevidade, eu salto o funcionamento do cérebro dentro da subestrutura física.
    • O fenômeno da plasticidade, atualmente um item da neurociência, não pode ser considerado separado do fato de que em humanos o biótico antecipa as funções-objetivas em esferas de leis mais
    • Ouweneel (1986, 202-206) fala de funções-objetivas internas ativadas de uma estrutura animal biótica (perceptiva), uma estrutura biótica mamífera (sensitiva), e uma estrutura biótica humana (espiritiva). A distinção interna-externa em relação às funções-objetivas tem a ver com o ser parte ou não ser parte de uma totalidade estrutural encáptica. A ativação da função-objetiva do canto do pássaro não procede do próprio pássaro; ela depende do humano (sendo, portanto, externa). Em uma pessoa humana cantando, esta abertura é Os termos ‘perceptiva’ e ‘sensitiva’ apontam para uma distinção no psíquico: Ouweneel defende que instâncias elementares de consciência (percepções) deveriam ser distinguidas de sentimentos, tendências e desejos (o sensitivo) (ver IV.3.c). O termo ‘espiritivo’ de Ouweneel aponta para o que Dooyeweerd denomina estrutura de atos.
    • Note que Dooyeweerd introduz ainda outro elemento nesta discussão, a saber, que no ato de vida humano a alma (ou coração) também está operativo. Eu deixo isto no momento para sublinhar novamente o ponto em questão, que o cérebro – e assim todos os órgãos do corpo humano
    • funciona igualmente em cada uma das quatro subestruturas.
    • Um exemplo pode auxiliar a ilustrar este ponto. O cientista que investiga a regulação neuro-hormonal do humor poderia perguntar se esta inquirição diz respeito sobretudo à área da subestrutura biótica, por exemplo, em um caso de estudo biológico-molecular de mudanças no receptor; ou se a inquirição está na área da subestrutura física, por exemplo, no caso de vários tipos de mudança de humor devido à manipula- ção (farmacológica) no nível do No primeiro caso, a regulação do humor é vista como função-objetiva (antecipatória) física dentro da subestrutura biótica. No segundo caso, estamos lidando com uma função-objetiva biótica dentro da subestrutura psíquica (ou como um objeto biótico na função modal psíquica). O problema neste tipo de pesquisa é que as duas perspectivas se alternam, e conduzem facilmente a um cur- to-circuito. Mudanças de humor são, assim, atribuídas causalmente a processos neurais. Nos termos do sistema de Dooyeweerd, esta atribuição implica um curto-circuito duplo: modal e em termos de entidades. O princípio da esfera de soberania (modal) não permite causalidade entre os modos funcionais (ele permite, de fato, coerência). A ideia de encápsis fundacional não permite causalidade entre subestruturas. Ela, na verdade, permite coerência e integração dentro de uma totalidade estrutural. Compare Glas (1991, Capítulo 6) e Glas (2001, Capítulo 4).
    • Isto não quer dizer que estes experimentos mentais sejam uma completa falta de Em uma palestra bem-humorada, publicada poste- riormente, Dennett (1981, 310-323) demonstra que é possível, até mesmo inevitável, levantar certos temas morais e jurídicos em uma estrutura fisicalista de pensamento.
    • Para uma ampla e acurada exposição e defesa, ver Ouweneel (1986, Chapters 5, 6). Para uma crítica, ver Steen (1983). Em sua oposição Steen utiliza Dooyeweerd o próprio ferramental conceitual de Dooyeweerd para pontuar traços do motive natureza-graça no pensamento de Dooyeweerd.
    • A expressão ‘impulso inato’ é derivada da definição de Dooyeweerd acerca da religião em NC I, 57: “o impulso inato do ego humano de direcionar-se em relação a uma verdadeira ou pretensa Origem absoluta de toda a diversidade temporal de sentido, a qual se encontra focada concentricamente em si ”
    • Em um idioma mais contemporâneo, este é o ponto central da reflexão também de Hart (1984, 279, 318) sobre o homem. O espírito não é algo extra, sobre ou por fora do corpo, e nem mais ou menos do que toda a corporeidade vista em termos da origem e destinação do homem e do mundo. A unidade do ser humano é a expressão deste dinamismo no desenvolvimento
    • Tese XVII: “A anima rationalis invariavelmente se confirma como o produto de uma abstração teórica da existência humana plena, temporal (portanto corpórea), e esta abstração é subsequentemente entendida como se referindo a uma substância que é essencialmente independente do corpo ”
    • Tese XVI: “A concepção definitiva de Aristóteles da anima rationalis como o ‘corpo em ação’ claramente demonstra que Aristóteles deve ter defendido o pensamento e a vontade como performances conscientes por parte da anima rationalis. Ele não poderia, no entanto, desenvolver consistentemente este importante insight porque o tema grego forma-matéria demandava que pelo menos o princípio geral de pensamento (como racional por princípio) fosse entendido como uma substância (ousia) totalmente independente do ‘corpo material’. Por causa disso, Aris- tóteles poderia conceber a faculdade do pensamento humano receptiva (pensamento como dunamis) como parte da alma humana, mas não a própria atividade de pensamento (nous poietikos), entendida como sendo a ‘forma do corpo’. Compare Glas (1992).
    • É por isto que Dooyeweerd denomina o coração (no sentido filosófico) uma ideia. A distinção entre conceito e ideia deriva de Kant. Em Kant ideias têm um significado regulador. Elas não têm conteúdo empírico, mas um efeito formativo no processo de aquisição de conhecimento. As ideias direcionam o conhecimento científico àquilo que está no outro lado da consciência conhecedora: a realidade essencialmente desconheci- da do ‘Ding-an-sich’. Dooyeweerd dá à sua interpretação das ideias (transcendentais) uma flexão religiosa, ou seja, ele vê as ideias como pressu- posições religiosas necessárias para o
    • Exemplos destas são: van der Hoeven (1963); Mekkes (1965), (1971), (1973); Zuidema (1948; 1972). Esta última obra contém artigos sobre Kierkegaard, Jaspers, Dewey, Heidegger, Merleau-Ponty, Blondel, Marcel, Ricoeur, Barth e
    • Para uma importante defesa (Neo-Thomista) do dualismo corpo-mente, ver Moreland e Rae (2000).
    • O argumento contrário a estas duas interpretações (tempo como uma estrutura abrangente; tempo como uma condição necessária) é que o pensamento seria capaz de abranger a direção efetiva da realidade q. história. O pensamento humano não pode, no entanto, se conectar de tal forma com aquilo que está fora da realidade c.q. historia. Ambos estão ultimamente determinados pela tríade Deus-lei-cosmos, o que quer dizer, pela resposta humana ao comando da criação, do amor e da responsabilidade. Esta resposta é histórica. Ver Vollenhoven (1992a), especialmente o esquema na página 184; e Vollenhoven (1992b).
    • Em questão aqui está a cosmologia de Dooyeweerd como antropocêntrica. Aparentemente, Vollenhoven atribui um papel menos central aos humanos no todo da criação do que Dooyeweerd. De fato, Dooyeweerd, em lugar do que Vollenhoven tende a sugerir, não negaria que a alma está sujeita à lei. Para Dooyeweerd a supratemporalidade não é supra-criacional e a eternidade é eternidade criada (aevum). Vollenhoven está correto, no entanto, ao dizer que no pensamento de Dooyeweerd a totalidade da realidade temporal está focada na Origem do sentido via o coração
    • O termo ‘manto de funções’ é provavelmente derivado do termo paulino ‘tenda terrena’ em 2 5:1-4.
    • A primeira ‘determinação’ é a ‘assim-chamada’ distinção (que é modal), a segunda ‘determinação’ é a distinção ‘isto-aquilo’ (entitária). Ver Vollenhoven (1967, 22ff, 53ff). 37 Em relação a estes conflitos e a comunicação com Janse, ver Stellingwerff (1992, 60-65).
    • Dooyeweerd fala, de fato, de uma transcendência do tempo cósmico. Na conhecida nota na NC I, 31-32, em reação ao ‘Divergentierapport I’ escrito por Vollenhoven e circulando entre o quadro de diretores da Associação para a Filosofia Calvinista, ele escreve: “ (…) Alguns buscam o ponto de concentração da existência humana no tempo e supõem que este centro religioso deve certamente ser pré-funcional, mas não supra- temporal. Mas pelo menos dentro do horizonte do tempo cósmico nós não temos uma única experiência de algo ‘pré-funcional’, e. de algo que transcenderia a diversidade modal dos aspectos. Nós adquirimos esta experiencia apenas na concentração religiosa, ou radix, de nossa existên- cia sobre a Origem absoluta. Nesta concentração nós transcendemos o tempo cósmico. Como poderia o homem se dirigir em relação às coisas eternas, se a eternidade não ‘estivesse em seu coração’? Mesmo a absolutização idólatra do temporal não pode ser explicada desde o horizonte temporal da existência humana. Pois o último em nenhum momento oferece um ponto de contato para uma ideia do absoluto, a menos que esta esteja relacionada a priori ao supratemporal. Este ato de concentração pressupõe um ponto de partida supratemporal em nossa consciência. Isto, no entanto, não é dizer que o centro religioso da existência humana é encontrado em uma imobilidade rígida e estática. Esta é uma ideia metafísica grega de supratemporalidade.” Lendo esta passagem nós deveríamos reconhecer que a noção de tempo de Dooyeweerd se refere ao tempo cósmico, o qual está relacionado à diversidade modal (e coerência) em lugar de transitoriedade. Esta é a razão de por que Dooyeweerd não pode senão dizer que a unidade da existência pode ser capturada apenas pela transcendência da diversidade temporal. Assim podemos concluir que as diferenças entre Dooyeweerd e Vollenhoven a respeito da supratemporalidade do coração dependem de visões distintas sobre o tempo e a ordem cósmica do tempo. A rejeição de Vollenhoven da noção de ordem temporal cósmica e sua exclusão das qualificações numérica e espacial da noção de ordem do tempo ‘significaria até mesmo um regresso em face à visão de Kant’ e também em face ao matemático Hamilton e da escola intuicionista de matemática, de acordo com Dooyeweerd (NC I, 31-32, note 1). Para uma discussão do ‘Divergentierapport’, ver Tol e Bril (1992, 107- 11).
    • Ver Popma (1963), especialmente os capítulos sobre doença e pecado, e envelhecimento e velhice, e Popma (1962, 75ff) sobre lavagem cerebral.
    • Popma escreveu três livros sobre este tópico e em suas outras obras, também, o tema comumente retorna (ver Popma 1945, 1965, 1972). Ver também ‘Het onaantastbare in ons’ em Popma (1963, 291-311). Popma era um teólogo. Ele escrevia em um estilo de ensaio, tendendo à im- provisação. Ele comumente meditava extensivamente em passagens bíblicas. Seus escritos são caracteristicamente intrépidos e reflexivamente filosóficos.
    • Em relação a este ensinamento bíblico, considere por exemplo textos tais como “Em verdade em verdade eu te digo, aquele que crê em mim tem a vida eternal” (João 6:47), também 6:40 e 6:54, e “E esta é a vida eterna: que te conheçam a ti só, por único Deus verdadeiro…” (João 17:3).
    • A precisão é importante aqui. A formulação de Popma é que transcender coincide com se posicionar ‘em oposição’ à criaturidade, portanto este opor-a-si-mesmo-à-criaturidade é identificado com a oposição característica da atitude teórica do pensamento. Em Dooyeweerd existe ainda outra conexão nesta corrente: o autoconhecimento religioso, q. transcender a ordem cósmica do tempo, não é, enquanto tal, teórico; ao invés disso, ele é uma condição que faz o ‘em oposição’ na teorização possível. Dooyeweerd distingue o acima supratemporal (transcendência, autoconhecimento religioso) e o temporal ‘em oposição à’ típica da relação Gegenstand. Em Popma ‘acima’ e ‘em oposição à’ de alguma forma coincidem.
    • Aqui o ponto de partida é o que Jesus diz a Marta na morte de Lázaro: ‘Aquele que crê em mim, ainda que morra, viverá.’ (João 11:25). O in- violável no ser humano é a fé em Cristo, o Cristo que ordenou a Lázaro retornar da Esta fé é inviolável no sentido que não apenas doença, decadência, violência e traição não têm poder sobre esta; ela é inatacável mesmo na morte e no Juízo Final.
    • A passagem se refere à igreja, mas pode ser facilmente aplicada aos seres humanos. Ser igreja, Popma parece dizer, nunca é atingível nesta vida. A igreja não-sendo-deste-mundo é comumente identificada de forma injusta com o seu sendo-no-mundo. No entanto, Popma (1965, 253) diz que “Na medida que a congregação deixa este ‘não-ser-deste-mundo’ ser submergido pelo ‘ser-no-mundo’, na medida que a igreja concre- tamente se historiciza, ela existe pela graça de um mito… e vive em um tempo mítico.” O mito, então, consiste nisso: que a igreja identifica seu ‘ser-do-céu’ com sua forma histórica. Com certeza, a igreja necessita de organização, mas mesmo assim ela “deve com igual insistência negar sua forma Sua única possibilidade é existir em Widerspruch (contradição).” Como quer que se pense nesta passagem – marcada pela própria experiência de Popma nas batalhas eclesiásticas dos anos 1940 e 1950 – nós reconhecemos algo aqui que é bem menos proeminente em Dooyeweerd e Vollenhoven, a saber, uma consciência vital da discórdia e condição fraturada da existência humana.
    • Outros que deveriam ser mencionados são Schoep (1948) e Van Dijk (1965) em relação às
    • Por exemplo, ver NC I, 55: “[Deus] expressou sua imagem no homem concentrando sua existência temporal inteira na unidade religiosa radical de um ego no qual a totalidade do sentido do cosmos temporal seria focalizado sobre sua ”
    • Posteriormente, Geertsema (1992, 130) repetiu esta crítica e naquela ocasião falou de uma “injustificada metabasis eis allo genos” ou seja, um vínculo não permissível entre o ensinamento bíblico e os problemas filosóficos.
    • Veja também a passagem na Tese V: “Esta revelação em relação à ‘alma’ da existência humana como um centro integral da totalidade da cor- poreidade é inteiramente correlata com a autorrevelação de Deus como o Criador integral dos céus e da terra, que não tem um poder autônomo contra ” Esta ideia da correlação deveria, no entanto, ser fortemente distinguida da ideia da analogia entis (analogia entre o ser de Deus e o ser da criação) Dooyeweerd rejeita fortemente a analogia entis.
    • Dooyeweerd permaneceu fiel à Abraham Kuyper (1898/1943, 20) aqui, especificamente na conhecida, e quase infame, passagem de Calvinis- mo: “Portanto, a primeira reivindicação exige que um sistema de vida como esse encontre seu ponto de partida em uma interpretação especial de nossa relação com Deus. Isto não é secundário, mas imperativo. Se uma ação como essa está para colocar sua marca sobre toda nossa vida, ela deve partir daquele ponto em nossa consciência no qual nossa vida ainda não está dividida e encontra-se compreendida em sua unidade – não nas vinhas que se espalham, mas na raiz da qual as vinhas nascem. Certamente, esse ponto encontra-se na antítese entre tudo que é finito em nossa vida humana e o infinito que se encontra além Somente aqui encontramos a fonte comum da qual os diferentes cursos de nossa vida humana nascem e separam-se. Pessoalmente, é nossa repetida experiência que nas profundezas de nossos corações, no ponto onde nos mostramos a nós mesmos ao Único Eterno, todos os raios de nossa vida convergem como em um foco, e somente ali recobramos esta harmonia que nós tão frequente e penosamente perdemos no stress do dever diário.” Wiskerke (1978, 75ff.) denominou esta visão semi-mística ‘a condição do coração’ da filosofia da ideia cosmonômica (ver também notas interessantes na pp. 259ff). A afirmação e Kuyper no livro Calvinismo é em parte baseada em sua interpretação de Eclesiastes 3:11 (‘[Deus] colocou a eternidade no coração do homem’): “Esta era é o mundo do Eterno, na qual o tempo, e com o tempo tudo aquilo que é finito, nasceu… A era que o deixa saltar sobre os limites do finito e o envolve no oceano do divino e celestial… que renova sua fé como totalmente outra, totalmente independente da faculdade de pensamento, e revela você a você mesmo como um ser totalmente outro, mais rico e mais brilhante do que o mundo jamais lhe permitiu enxergar em seus próprios espelhos.” (De Heraut 1781, 18-2-1912; citado em holandês por Wiskerke 1978, 79). Wiskerke sugere que este semi-misticismo evidencia alguma afinidade com pensadores como Clemente de Alexandria, Orígenes e particularmente Gregório de Níssa. De acordo com Gregório, embora renunciando as paixões e demonstrando algo do modelo divino e, em última instância, por meio da concentração, a alma adquire um tipo de extasis no qual o próprio ser humano ‘possui’ Deus.’ Wiskerke admite que certamente Kuyper era um conquistador do mundo mais do que um eremita. O paralelo, no entanto, vai até certo ponto; Kuyper se caracteriza por um semi-misticismo. “A experiência do centro do interior, assim, é um ponto de partida em lugar de uma conclusão; ela pede a clarificação em reflexão e a aplicação na prática. (Wiskerke 1978, 84).
    • O pano de fundo deste dilema entre substancialismo (começando a partir do primado da substância sobre revelação) versus funcionalismo (onde a função ou relação é primário sobre a substância). De acordo com Dooyeweerd existe uma terceira opção, diz Berkouwer, a saber que “a relação não chega a ameaçar, ofuscar ou dissolver a realidade; em vez disso, ela torna possível entender a natureza desta realidade em sua rela- ção com ” Em outras palavras, se alguém defende que uma visão relacional do homem não representa de forma adequada a ‘realidade’, i.e. o status ôntico do ser-humano, eles revelam que ainda estão escravizados a uma visão na qual as substâncias são vistas de forma muito intensa como autossuficientes. Mas se relações e substâncias não devessem ser colocadas em oposição uma à outra, a implicação é que também o coração supratemporal existe em um sentido ‘relacional-ôntico’. Não surpreende, portanto, que Blosser interprete o comentário de Berkouwer como uma alegação por um pensamento-de-substância mitigado, em outras palavras, como um pensamento que admite a existência de sustâncias, embora não atribua a elas autossuficiência. Ver Blosser (1993, 205-08) e Evans (1993).
    • Ver Brüggeman-Kruijff (1981, 156): o fraturado versus o uno e indiviso. Também em Van Woudenberg (1992, 171-176).
    • Cooper não está só, como fica claro em uma declaração de Alvin Plantinga em uma entrevista no Beweging 59 (1995), 11. Plantinga declara que ele tem duas objeções à filosofia de Dooyeweerd: a rejeição do dualismo corpo-alma e o quadro de referência transcendental de sua filoso- fia. Para uma abordagem dualista, ver também Swinburne (1987).
    • Poder-se-ia também aplicar a rejeição da noção de extinção ao Paulo denomina o corpo uma semente semeada no campo a ser levanta- do no Primeiro Dia (I Cor. 15: 35-49). Como eu o vejo, este pensamento escritural tem sido insuficientemente considerado na antropologia cristã. De fato, a rejeição da noção de extinção não pode mais ser utilizada para argumentar a favor de um dualismo de corpo e alma.
    • Poder-se-ia perguntar se a alma estar sujeita à morte não implicaria também um elemento de Cooper enfatiza a existência continuada, pessoal, da alma. A Bíblia, no entanto, fala da morte como uma mortificação do pecado e que, certamente, implica uma mudança profunda. Na morte a identidade pessoal permanece, eu permaneço sendo eu, no entanto se tornando totalmente distinto do que eu era anteriormente à minha morte.
    • Cooper (1989, 221) também comenta sobre indicações na Escritura de que pessoas continuam vivos após a morte com uma forma visível de corporeidade: as aparições de Samuel, Moisés e Com grande reserva, Cooper tende em direção da visão de que estas eram manifestações visíveis de energia, provavelmente comparável à do éter-corpo no espiritismo (e na antroposofia). Popma, que também coloca uma forte ênfase na continuidade da vida temporal da alma após a morte é mais cauteloso, mas também se refere a uma continuação do manto-de-funções em alguma outra forma, desconhecida. Para Cooper este pensamento é um argumento a favor do dualismo (à vista da diferença entre este corpo-e- nergia e o corpo terreno ordinário). Em Popma, a ideia de uma continuação do manto-de-funções funciona como um argumento antidualista.
    • Especialmente em conexão com este ‘antes e após a morte’, questões podem ser levantadas. A alma emerge do processo de morte imodifi- cada? Eu sugeri que, considerando o não-mais-em-pecado após a morte, isto é improvável. Existe continuidade e descontinuidade. A questão é se a descontinuidade é tamanha que ameace a identidade da alma como uma substância não-material. Cooper não iria tão longe, porque ele parece identificar identidade pessoal com a existência da alma. Tal identificação, no entanto, é questionável, não apenas porque desta forma o caráter pessoal da corporeidade se torna um problema (a personificação do corpo é então secundária, uma vez que esta é alcançada apenas na junção do corpóreo e o espiritual), ela também e questionável porque a personalidade humana é e permanece um segredo – um mistério que não permite identificação com qualquer tipo de substância.
    • Na passagem em questão, Cooper cita Dooyeweerd via a tradução inglesa de Berkouwer (1957). Berkouwer por sua vez citou o artigo de Dooyeweerd (1940, 181) sobre o problema do tempo, o qual contém a passagem sobre a alma humana que “naar het getuigenis van de Schrift door den tijdelijken dood niet getroffen wordt, maar ook na de aflegging van het “lichaam”, i. van heel den tijdelijken in individualiteits-struc- tuur besloten bestaansvorm, blijft voortbestaan.” Masa tradução é incorreta! Os tradutores do livro de Berkouwer apresentaram a passage como segue: “A alma, a Escritura demonstra, não é afetada pela morte temporal, mas após o fim do corpo (i.e. de todos os aspectos temporais do homem), ela continua como uma forma de existência com uma estrutura de individualidade” (Cooper 1989, 251). O texto holandês, Berkouwer (1957, 285, note 148), cita Dooyeweerd corretamente. Em Dooyeweerd o termo ‘estrutura de individualidade’ se refere ao corpo; os tradutores o relacionaram, erroneamente, à alma. É provável que isto tenha ocasionado o mal-entendido de Cooper. A passagem deveria dizer: “Como as Escrituras testificam, [a alma humana] não é tocada pela morte temporal, mas continua a existir mesmo após o ‘corpo’ ser vertido, i.e. [o verter] da forma de existência da estrutura-de-individualidade-integrada, inteiramente temporal.”
    • Na intepretação que Cooper faz de Dooyeweerd, dois erros posteriores estão Cooper (1989, 250) diz que a noção de Dooyeweerd do “ego permite ao sobrenatural moldar o temporal, mas não o contrário.” Dooyeweerd, no entanto, fala tanto de divergência quanto de concen- tração. Cooper também afirma que em Dooyeweerd as direções básicas do pensamento, imaginação e vontade estão enraizadas no coração, não na estrutura temporal de atos. A passagem em questão lida com o funcionamento da alma após a morte. Cooper mantém que tal enraizamento das direções básicas do coração nos permitem argumentar que as direções básicas podem também funcionar fora dos modos terrenos (i.e. temporais). À parte do fato de que para Dooyeweerd o supratemporal pertence à ordem criatural (terrena), Cooper negligencia que Dooyeweerd negou fortemente a ideia de um centro pessoal incorpóreo: atos e direções básicas são inconcebíveis sem o envolvimento do manto de funções temporais, c.q. a estrutura de atos.
    • Esta questão foi também colocada por Brüggeman-Kruijff (1981).
    • Wiskerke (1978) pontuou isto no capítulo sobre a concepção semi-mística do coração em Kuyper; ver também Wiskerke (1963, 224). 61 As contribuições ao congresso foram publicadas na Philosophia Reformata 1992 e
    • Stafleu (1991, 130) diz: “Seria completamente equivocado relacionar o caráter religioso da humanidade exclusivamente à questão de destino, unidade e ” A natureza religiosa do ser humano é dada com seu lugar no cosmos, na posição normativa em relação aos reinos das plantas e dos animais, e relativo à história da cultura.
    • Stafleu adiciona duas subestruturas: uma espacial e uma cinemática. Argumentos a favor disso são encontrados em Stafleu (1985), (1989, Capítulos 3-5). Além disso, ele emenda Dooyeweerd em conexão ao entrelaçamento das subestruturas por meio de distinções adicionais entre as possíveis funções fundantes. A subestrutura cinemática divide-se em duas, uma subestrutura com uma função fundante numérica e uma subestrutura com uma função fundante especial; a subestrutura física, portanto, consiste em três subestruturas, a biótica em quatro e a psíquica em Juntamente com a estrutura física simples isto significa um total de quinze subestruturas. Stafleu negligencia aqui a figura das encápsis fundantes: em Dooyeweerd a subestrutura subjacente como estrutura de individualidade, ao invés da modalidade fundacional, é a fundação para as subestruturas mais elevadas. Ver NC III, 653-661 e Ouweneel (1986, 191).
    • ‘Emergência’ aqui significa que no curso da evolução estruturas se desenvolveram espontaneamente que, comparadas às estruturas exis- tentes, são conceitualmente ou ônticamente de uma ordem qualitativamente distinta. Dentro da continuidade do processo evolutivo, então, algo novo emerge. Stafleu não é um evolucionista no sentido de que a teoria da evolução seja sua visão de mundo; mas ele adere à teoria da evolução. Como ele a vê, a filosofia sistemática reformacional tem se interessado muito pouco pelo tema da evolução. Stafleu mantém que a evolução é comumente tomada erroneamente, como significando a emergência de novas estruturas. Estruturas bióticas, por exemplo, podem ser explicadas via leis de estruturas existentes, em outras palavras, por leis físico-químicas. Abordada desta forma a irredutibilidade dos aspectos modais está em questão (a objeção clássica do lado da filosofia reformacional). O problema, no entanto, se dissolve inteiramente tão logo a lei e aquilo que está sujeito à lei não sejam mesclados. As leis para novas estruturas não são elas mesas produtos da evolução; elas se tornam operacionais uma vez que a situação esteja pronta para
    • Um exemplo conhecido a este respeito é um dos paradoxos de Zeno, que argumentou que Aquiles nunca poderá alcançar a tartaruga se à últi- ma for permitido começar Quando Aquiles cobrir a distância que a tartaruga tinha em um ponto X a tartaruga terá se movido, e quando Aquiles tiver coberto também aquela distância, a tartaruga terá se movido também, etc. O paradoxo se dissolve tão logo seja reconhecido que a análise espacial (distâncias) não é suficiente para estudar o fenômeno da velocidade. A velocidade é uma categoria cinemática. Quando o aspecto espacial não está relacionado ao tempo (como no aspecto cinemático), a diferença de velocidade é um fenômeno que não pode ser capturado.
    • Em seres humanos em uma condição vegetativa o córtex cerebral e partes importantes do Sistema límbico são O tronco cerebral (e núcleo básico), no entanto, estão intactos. Estes pacientes estão em um coma permanente, e estão inconscientes, embora possam como uma regra respirar e engolir sem ajuda mecânica. Em outras palavras, estes pacientes em coma têm um ‘cérebro reptiliano’ intacto, mas não funcio- nam no sentido perceptivo.
    • Nas últimas décadas tem sido estabelecido que a assim chamada reação orientada é fortemente influenciada pelos processos ‘sensitivamente’ determinados. Contra Ouweneel (1986, 108-109).
    • Na teoria da totalidade estrutural encáptica Dengerink observa muitos remanescentes da hierarquia aristotélica de funções.
    • Em razão de escaparem a qualificação modal precisa, Troost sugere que o insight em relação às disposições pode ser adquirido apenas em um entendimento governado-por-ideia (idee-matig), em uma ideia-regulada ‘no caminho’ na direção transcendental do tempo. Para a filosofia reformacional, isto faz emergir um antigo problema prima facie puramente teórico: as modalidades ‘continuam’ até no coração? Poder-se-ia parafrasear a visão de Troost por exemplo de tal forma que para ele o coração deveria ser primariamente buscado ‘por baixo’ ou ‘por trás’ da estrutura de atos, e que as disposições – relativas a este eixo vertical – constituem uma camada horizontal na qual as subestruturas inferiores são entrelaçadas com a estrutura de atos. Neste caso, a integração das estruturas inferiores na estrutura de atos se daria via as disposições em lugar de um relacionamento direto com o coração. Esta noção – para a qual pistas podem ser encontradas em Dooyeweerd – em todo o caso conduziriam a uma imagem consideravelmente mais sutil da ‘vinculação’ e ‘liberação’ das Se eu entendo Troost corretamente, ele permitiria estas interpretações para as subestruturas, embora não ara as modalidades. Sua cautela em relação à ‘continuidade’ das modalidades ‘no’ coração é epistemológica: a concentração cosmológica das funções modais no coração é uma ideia transcendental; no muito nós enxergamos pontos (a ideia-regulada ‘em direção’

Sobre o autor:

Filósofo  e  psiquiatra, Gerrit Glas estudou medicina (University of Amsterdam; 1981) e filosofia (VU University; 1982; cum laude). Formado em psiquiatria (1985; Universidade de Amsterdã) e psicoterapia de grupo (1997). De 1993 a 2009, ocupou uma cadeira especial em Filosofia Cristã na Universidade de Leiden (Faculdade de Filosofia). De 2006 a 2012, ocupou uma cadeira de filosofia e psiquiatria no Leiden University Medical Center. Atua na Faculdade de Filosofia da Universidade de Amsterdã (cadeira Dooyeweerd).

 

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