Uma Teleologia do Trabalho Divino e Humano – Criação e Processo Criativo

Por Breno Oliveira Perdigão

 

O campo de estudo da teleologia tem muito a contribuir para compreendermos a presença de metas, fins ou objetivos últimos no trabalho divino da Criação e por consequência no trabalho humano e no desenvolvimento tecnológico advindo do mesmo.

De acordo com o filosofo holandês Herman Dooyeweerd [1] todo pensamento filosófico é dirigido de forma consciente ou inconsciente por aquilo que ele denomina de motivos básicos religiosos que estão inescapavelmente ligados ao seu ponto arquimediano, “sendo as forças motrizes mais profundas por trás de todo o desenvolvimento cultural e espiritual do Ocidente [2]. Este fato se concretiza no pensamento de dois dos mais influentes pensadores do século XVIII, o filosofo e teólogo Jonathan Edwards e Benjamim Franklin, cientista e inventor da América britânica.

Apesar das diferenças entre ambos eles compartilhavam o ser produto da cultura calvinista da Nova Inglaterra no período em que sua herança cultural enfrentava uma severa crise [3]. Porém há diferenças evidentes em seus sistemas filosóficos. Fundamentado e imerso no que Dooyeweerd denomina de motivo básico da natureza e da liberdade, com seus dois polos dialéticos, Franklin assume que o “homem é autônomo e livre, e que a natureza é completamente determinada” [4]; no campo da ética, os princípios morais deveriam ser determinados apenas por avaliar-se as consequências das ações, articulando o que se tornaria uma das mais proeminentes tradições americanas para se libertar de restrições morais baseadas em religião [5]. De acordo com George Marsden, pode-se encontrar um nítido contraste entre o pensamento distintamente cristão de Edwards e o pensamento moderno preeminente em sua época na definição daquilo que deve ser considerado verdadeiro e bom [6]. Com este intuito, Jonathan Edwards concluiu uma de suas obras filosóficas mais importantes, o tratado The End for God Created World, na qual aborda as questões relacionadas a teleologia do mundo criado.

 

Uma Teleologia do Trabalho Divino

O ponto de partida adotado por Edwards para explicar o fim da obra criativa de Deus não foi a razão autônoma do homem, mas sim que um Deus amoroso está no amago do universo, sendo este essencialmente pessoal e a expressão criativa de uma pessoa [7]. Com o desenrolar do Iluminismo, muitos pensadores elaboraram teorias fundamentados na pressuposição de que o universo é essencialmente impessoal e controlado unicamente por leis da natureza.

Logo no início de sua obra, Edwards toma por necessário fazer uma distinção entre fim principal, fim inferior, fim último e fim subordinado:

Para evitar toda confusão em nossas indagações concernentes ao fim para o qual Deus criou o mundo, deve-se observar uma distinção entre o fim principal e o fim último pelo qual um agente realiza uma obra. Estas duas frases nem sempre têm precisamente a mesma significação – e, embora o fim principal seja sempre um fim último, nem sempre o fim último é um fim principal. Um fim principal é contrário a um fim inferior; um fim último é contrário a um fim subordinado.

Um fim subordinado é aquele que um agente visa, não de todo por causa dele, mas inteiramente por causa de um fim ulterior, do qual aquele é considerado como que um meio […]. Um fim último é o que o agente procura, naquilo que ele faz, por sua própria causa; aquilo que ele ama, valoriza, ou no que tem prazer por sua própria causa, e não meramente como um meio para um fim ulterior. [8]

Desta forma, toda vez que um homem chega àquilo em que seu desejo termina e repousa, sendo algo que é estimado por sua própria causa, então ele chega a um fim último. Entretanto, se alguém possui um único fim último em tudo o que faz, este fim último pode ser considerado o seu fim supremo. [9]

De acordo com Edwards, Deus não faz nada inadvertidamente, ou sem um desígnio, portanto, o fim último de Deus em sua obra criativa era que houvesse uma gloriosa e abundante comunicação de si mesmo e “emanação de sua infinita plenitude de bondade ad extra, ou fora dele mesmo; e que a disposição de se comunicar a si mesmo, ou difundir a sua própria plenitude, foi o que o moveu a criar o mundo.” [10] Ao fazer deste o seu fim, Deus manifesta uma suprema consideração por si mesmo, de forma que ele faz de si mesmo o seu fim.

Com a beleza do amor de Deus se derramando sobre suas criaturas no cerne da realidade, o bem mais elevado passa a ser definido como retornar este amor ao próprio Deus. Se verdadeiramente amamos a Deus, devemos amar o que Ele ama. Segundo Edwards, o problema das filosofias modernas, e consequentemente, da visão teleológica moderna, é que elas começam tipicamente no lugar errado, isto é, com os seres humanos e suas necessidades. Este tipo de visão conduz, muitas vezes, ao pensamento utilitarista.

 

Uma Teleologia do Trabalho Humano – Utilitarismo e o Proposito Criativo

Na Idade Moderna pode-se verificar a ocorrência de uma mudança drástica nas aclarações teleológicas que afirmavam um fim determinado para a existência de todas as coisas. Passou-se a considerar que a explicação teleológica era antropomórfica, pois o fato do ser humano atribuir objetivos às suas próprias ações (por exemplo, o engenheiro impondo seus objetivos sobre o objeto trabalhado) não justifica conjecturar que o universo em sua totalidade seja submetido a alguma finalidade imposta [11].

A explicação dos fenômenos abandonou uma abordagem teleológica e, em seu lugar, buscou explicar os fenômenos como emergentes. O utilitarismo, decorrente desta visão moderna do significado teleológico do universo, enxerga os problemas das relações humanas a partir da ideia que podemos conhecer o bem e o mal em função de critérios identificáveis pela nossa capacidade racional, sendo a razão autônoma a forma mais confiável de conhecimento; e que os fundamentos da ética e da moral são fundamentados unicamente a partir das consequências das ações. [12]

Tendo em vista este cenário preparado pelo modernismo e sua visão teleológica utilitarista, Dorothy L. Sayers questiona acerca da compreensão do propósito criativo do homem como tendo o único objetivo a resolução de problemas e o fornecimento de soluções. A vida se apresenta ao homem não como material maleável, mas como uma série de problemas de extrema dificuldade que devem ser resolvidos com os meios disponíveis. Há uma vasta experiência humana que não permite resposta em termos de solução para um determinado problema. “O homem é tão relutante em admitir qualquer problema para o qual seja incapaz de dar solução, que os alquimistas buscam o elixir da vida desde tempos muito antigos. ” [14] Assim, para nos convencermos da possibilidade de “resolvermos” todas as questões devemos tão somente defini-las em termos que admitem solução. De forma semelhante ao método científico e tecnológico no qual o método isola um aspecto da realidade e as definições são feitas em compartimentos isolados, Willem H. Vanderburg afirma que está é uma abordagem “dessimbolizada” [15], na qual o sentido das coisas é visto sempre de forma compartimentalizada e isolada, uma coisa não é mais vista em função de seu relacionamento com todas as outras.

Em contraste, segundo Sayers, a característica comum a Deus e ao homem é o desejo e a capacidade de fazer coisas. Nós passamos nossa vida compondo diferentes matérias em novos padrões e “criando”, desta forma, aquilo que não existia até então [13]. Em seu trabalho criativo, o homem deve respeitar a integridade do seu material e trabalhar de acordo com ela.

A vocação da mente criativa do homem não trata simplesmente da solução de problemas, “dentro dos limites impostos pelas condições em que estão colocados, mas da formação de uma síntese que inclua toda a dialética da situação em uma manifestação de poder. ” [16] O que torna clara a diferença entre o homem que trabalha para viver e o trabalhador criativo é o desejo do segundo em ver o trabalho realizado.

Conforme Dorothy L. Sayers afirma:

A única maneira de fazer um trabalho bom em si mesmo e, assim, torná-lo bom para a humanidade, é mantendo os olhos voltados para a integridade da obra. Essa é apenas outra forma de dizer que a obra deve ser medida segundo o padrão da eternidade, ou que deve ser realizada em primeiro lugar para Deus. [17]

 

 

Referência

[1] KALSBEEK, L. Contornos da filosofia cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2015.

[2] DOOYEWEERD, H. Raízes da cultura ocidental. São Paulo: Cultura Cristã, 2015.

[3] MARSDEN, George M. A Breve Vida de Jonathan Edwards. São José dos Campos: Fiel, 2015.

[4] DOOYEWEERD, H. Raízes da cultura ocidental. São Paulo: Cultura Cristã, 2015.

[5] MARSDEN, George M. A Breve Vida de Jonathan Edwards. São José dos Campos: Fiel, 2015.

[6] Ibid.

[7] EDWARDS, J. The End for God Created World. Estados Unidos, 1765.

[10] Ibid.

[11] VASCONCELOS, V.V. MARTINS JUNIOR, P.P. A Teleologia e o Estudo das Ciências da Natureza – Contribuições da Filosofia. AMBIENTE & EDUCAÇÃO: revista de educação ambiental. Vol. 16(1), 2011

[12] “Utilitarianism is still the ethical theory which people love to hate”.(Harrison, Ross. “Introduction”. In “A Fragment on government”, Jeremy Bentham, Cambridge, Cambridge University Press, 1994).

[13] SAYERS, Dorothy L. A Mente do Criador. São Paulo: É Realizações, 2016.

[14] Ibid.

[15] VANDERBURG, Willem H. Our War on Ourselves: Rethinking Science, Technology, and Economic Growth. Toronto: University of Toronto Press, 2011.

[16] SAYERS, Dorothy L. A Mente do Criador. São Paulo: É Realizações, 2016.

[17] Ibid.

 

 

 

 

 

 

 

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