Este texto foi extraído do livro de Mark Noll “Jesus Christ and the Life of the Mind” (Jesus Cristo e a Vida da Mente). Neste excerto, Noll revela algumas das implicações que se seguem de uma visão da ciência centrada em Cristo. Se alguém aceita que a natureza é criada e sustentada por Jesus Cristo, explica o autor, então é preciso concluir que olhar para a natureza é, de fato, a melhor maneira de aprender sobre a natureza. Uma vez que Cristo é revelado tanto na ciência quanto na Escritura, essas coisas devem se complementar em vez de contradizer.


Uma Cristologia para a Ciência

Por Mark Noll
Traduzido por Tiago Garros

Publicado originalmente em Biologos.org a partir de excerto do livro “Jesus Christ and the Life of the Mind, de Mark Noll.

ABC² - Jesus Christ and the Life of the Mind


O teólogo Robert Barron esclareceu muito sobre o que está por trás dos recentes conflitos sobre as origens humanas que apresentam verdades supostamente bíblicas que lutam contra conclusões supostamente científicas.

Em suas palavras, “debates recentes a respeito dos relatos evolucionistas e ‘criacionistas’ das origens da natureza são completamente marcados por pressupostos modernos sobre um Deus distante, competitivo e que ocasionalmente intervém, não importando se a existência de tal Deus é afirmada ou negada.”[1] A resposta de Barron a esses debates modernos é uma sofisticada exposição da cristologia clássica dirigida a seus pares teológicos. Meu esforço é muito mais simples e é voltado para acadêmicos em geral, mas vem da mesma perspectiva cristológica.

Cristo como Criador, Sustentador, Redentor

A ortodoxia cristã clássica, expressa nos credos que resumem as Escrituras, começa no princípio: a natureza deve sua existência e é sustentada por Jesus Cristo. Deste ponto de partida, várias ramificações importantes seguem naturalmente.

Uma é a implicação de que a melhor maneira de descobrir a natureza é olhar para a natureza. Essa implicação vem diretamente do princípio cristológico da contingência. Conforme descrito nos Evangelhos, os indivíduos que queriam aprender a verdade sobre Jesus tinham que “vir e ver”. Da mesma forma, para descobrir o que poderia ser verdade na natureza, é necessário “vir e ver”.

O processo de “vir e ver” não leva à verdade infalível sobre o mundo físico, uma vez que não há inspiração especial do Espírito Santo para o Livro da Natureza como existe para o Livro das Escrituras. Mas “vir e ver” ainda é o método que a crença em Cristo como Salvador privilegia para aprender sobre todos os outros objetos, incluindo a natureza. Esse privilégio significa que os resultados científicos provenientes de investigações cuidadosas, organizadas e cuidadosamente verificadas dos fenômenos naturais devem, por razões cristocêntricas, ser levadas a sério.

Nesta perspectiva, os sucessos da ciência moderna nos últimos séculos testificam implicitamente a existência de um Deus criador e redentor. Para citar novamente Robert Barron, a atividade científica, por sua própria natureza, “implica. . . uma inevitável correspondência entre a atividade da mente e a estrutura do ser: a inteligência encontrará seu cumprimento nessa universal e inescapável inteligibilidade”. Mas como essa implicação pode ser justificada? De acordo com Barron,

A universalidade da inteligibilidade objetiva (assumida por qualquer cientista honesto) pode ser explicada apenas pelo recurso a uma inteligência subjetiva transcendente que concebeu o mundo à existência, de modo que todo ato de conhecer um objeto ou evento mundano é, literalmente, um reconhecimento, um ‘pensando novamente’ no que já foi pensado por um conhecedor divino primordial.[2]

Em linguagem leiga, a “inteligência subjetiva transcendente” e o “conhecedor divino primordial” garantem a possibilidade de que a mente de um pesquisador possa apreender algo real sobre o mundo além da mente. As Escrituras – em João 1, Colossenses 1 e Hebreus 1 – fornecem um nome para essa “inteligência” e aquele “conhecedor”. Nesses termos, a existência da natureza e a possibilidade de compreender a natureza pressupõem Jesus Cristo.

Uma segunda implicação que surge da centralidade de Cristo na criação diz respeito à interpretação das Escrituras. Textos bíblicos clássicos sobre o propósito da Bíblia reforçam o princípio fundamental de que a confiança dos crentes na Escritura se baseia em sua mensagem de salvação em Jesus Cristo. Assim, em João 20, a história do Evangelho foi escrita para que [você] “creia que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (20:31). Em 2 Timóteo 3, as inspiradas ou “sopradas-por-Deus” “escrituras sagradas” têm como principal finalidade a instrução “para a salvação pela fé em Cristo Jesus” (3:15). E em 2 Pedro 1, a afirmação de que “a palavra dos profetas tornou-se mais certa”, conforme esses profetas foram “levados pelo Espírito Santo” (1:19, 21) trata preeminentemente do “poder e vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1:16).

Como essas passagens sugerem, a salvação em Cristo ancora a confiança do crente de que toda a Escritura é fidedigna.[3] Mas por causa desse fato supremo, o esforço para entender como a Escritura é confiável para questões como a ordenação da natureza nunca deve se afastar da consideração de Cristo e seu trabalho. No entanto, como vimos, “Cristo e sua obra” incluem, como um objeto, o mundo material da criação e, como método, “venha e veja”. Em outras palavras, seguir o Cristo revelado na Escritura como Redentor significa seguir o Cristo que tornou possível para os humanos entenderem o mundo físico e que ofereceu um meio (“vir e ver”) para obter esse entendimento.

A desarmonia final e última entre o que “vir e ver” demonstra sobre Cristo e o que “vir e ver” revela sobre o mundo da natureza é impossível. Este Cristo é o mesmo por quem Deus trabalhou “para reconciliar consigo todas as coisas. . . fazendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz” (Cl 1:20) e em quem “todas as coisas foram criadas” e em quem “todas as coisas subsistem” (1: 16-17).

No entanto, é indiscutível que em algumas questões que envolvem teologia e ciência, a confiança em Cristo (e, portanto, a confiança nas Escrituras) parece entrar em conflito com aquilo que a confiança no procedimento autorizado por Cristo (“venha e veja”) revela sobre um mundo criado e sustentado por Cristo. O desfile de questões difíceis que surgem do esforço de reunir interpretações padrão das Escrituras e interpretações padrão do mundo natural é longo. Tentar responder a essas perguntas tem sido uma característica marcante da era científica moderna.

• No século XIX, muitos fervorosos crentes se indagavam:  se “vir e ver” na geologia e na astronomia levava à conclusão de que a existência material tem uma longa história, deveríamos então entender os “dias” de Gênesis 1 como longos períodos de tempo ou deveria adotar-se uma nova interpretação de Gênesis 1: 1 que postula uma “lacuna” entre “no princípio” e “Deus criou”?

• Avanços mais recentes tanto na compreensão histórica (o antigo Oriente Próximo) quanto na ciência empírica (genética, biologia, astronomia) suscitaram questionamentos sobre os relatos da criação do início do Gênesis. Cientistas bem treinados, com fortes convicções cristãs, seguiram o procedimento enraizado em Cristo de “vir e ver” em seu estudo de evidências físicas para a origem do universo e concluíram que muito da teoria evolutiva padrão parece bem fundamentada.[4] Da mesma forma, estudiosos bíblicos bem-treinados com fortes convicções cristãs seguiram o procedimento enraizado em Cristo de “vir e ver” em seu estudo das culturas do antigo Oriente Próximo e concluíram que os primeiros capítulos de Gênesis parecem estar diretamente preocupados em atacar a idolatria que trocava Deus pelo sol ou pela lua.[5] Dada a combinação dessas duas correntes de testemunho, deve-se pensar que o início de Gênesis não está preocupado com as questões científicas modernas, mas está muito preocupado em incentivar a adoração do único Deus verdadeiro que é o originador e sustentador de todas as coisas?

• Ainda mais recentemente, o consenso aproximado sobre a mudança evolutiva reunida a partir de muitas disciplinas científicas faz perguntas ainda mais complexas: por exemplo, se a evolução humana parece indicada por uma ampla gama de procedimentos científicos responsáveis (“venha e veja”), como uma interpretação bíblica responsável compreende a ênfase do Novo Testamento em Cristo (definitivamente localizado no tempo e espaço históricos) como superação da pecaminosidade herdada de Adão e Eva, a quem a Escritura, pelo menos em um nível superficial, também representa como indivíduos no tempo e espaço históricos?

Todas essas questões causaram consternação compreensível quando foram levantadas pela primeira vez, uma vez que desafiaram interpretações específicas das Escrituras que haviam sido estreitamente entrelaçadas com interpretações básicas de toda a Bíblia. Mesmo após longa e duradoura consideração, tais questões continuam a representar verdadeiros desafios.

Responder tais perguntas com responsabilidade requer sofisticação no conhecimento científico e sofisticação na interpretação bíblica – exercida de forma humilde, ensinável e não-defensiva. Infelizmente, essas características e capacidades nem sempre predominam quando essas questões são abordadas. Mas as questões difíceis quase certamente continuarão a se multiplicar por causa de duas realidades em andamento: o Espírito Santo continua a conceder nova vida em Cristo através da mensagem da cruz encontrada nas Escrituras, e investigações responsáveis levam a plausíveis conclusões evolutivas adicionais vindas de disciplinas científicas relevantes.


[1]  Robert Barron, The Priority of Christ: Toward a Postliberal Catholicism (Grand Rapids: Brazos, 2007), p. 221. Por conveniência, volto várias vezes nos parágrafos seguintes a este livro de Robert Barron. Mas há outros esforços paralelos, por exemplo, do físico e teólogo anglicano John C. Polkinghorne, em livros como Belief in God in an Age of Science (New Haven: Yale University Press, 1998), e Science and the Trinity; The Christian Encounter with Reality (New Haven: Yale University Press, 2004).

[2] Barron, Priority of Christ, p. 154

[3] Veja acima sobre Providência.

[4] Barron, Priority of Christ, p. 13.

[5] A Summa of the Summa, ed. Peter Kreeft (San Francisco: Ignatius, 1990), 174 (de Thomas Aquinas, Summa Theologica, I, 22, 4).

 

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