Por Dr. Guilherme Braun Junior

O seguinte projeto é uma tentativa de abordar a relação entre experiência cotidiana e tecnologia a partir de uma perspectiva cristã, capaz de captar as relações básicas entre tecnologia e o mundo da vida (Lebenswelt) contemporâneo. Como ponto de entrada, eu pretendo apresentar: (a) alguns pressupostos básicos de uma perspectiva cristã, asim como (b) distinções básicas referentes à funcionalidade e (c) à essência da tecnologia moderna. Devido à complexidade do assunto, minha abordagem sobre a essência da tecnologia, nesse texto, vai deixar um gostinho de pessimismo, já que o tom Heideggeriano escolhido como pano de fundo inicial tende a ser predominantemente negativo. Mas, sem antecipar muito o que pretendo fazer no próximo texto, quero ao menos indicar que vou usar insights fenomonológicos e reformacionais para aprofundar de forma positiva (e otimista) as diversas maneiras por meio das quais seres humanos interagem com tecnologia na experiência cotidiana. No fim, pretendo conectar os insights elaborados com a visão bíblica integral da palavra de Deus e da fé cristã. Desse modo, espero esclarecer a relação entre tecnologia e revelação como chave para um entendimento cristão de tecnologia e experiência cotidiana.

Para começar, vale ressaltar alguns pressupostos básicos de uma abordagem cristã. Como criaturas, seres humanos são dependentes da revelação integral de Deus, que abrange não só as Escrituras como Palavra Inspirada, mas, também, Cristo como Palavra Incarnada e a Palavra da Lei (i.e. ordem da criação). Rodeados pela revelação integral de Deus na diversidade e coerência radical da criação, na face do próximo e na intencionalidade de cada evento temporal, a existência humana se desdobra inevitavelmente como resposta religiosa a essa revelação. Levando-se em consideração esses pressupostos, portanto, garante-se, desde o princípio, que uma abordagem cristã sobre tecnologia e experiência cotidiana respeitará os limites criacionais em questão. O significado dessa afirmação ficará claro no decorrer das elaborações.

A ubiquidade da tecnologia no mundo da vida contemporâneo se tornou fato inquestionável. Mas será que verdadeiramente entendemos a essência da tecnologia? Temos consciência das diversas maneiras que interagimos com ela na nossa vida cotidiana? Sendo a tecnologia quase que onipresente hoje em dia, o que devemos fazer para entrar em uma relação de liberdade com ela? (Heidegger 1962:5)

De acordo com o senso comum, tecnologia não passa de artefatos técnicos neutros. Mas essa alegada neutralidade da tecnologia é desafiada por diferentes escolas filosóficas. A filosofia analítica, por exemplo, enfatiza que artefatos tecnológicos são projetados para propósitos específicos, com funções e design próprios (i.e. proper function and design plan). Tais artefatos são intencionalmente projetados por seres humanos para transformar seu estado atual num estado desejado. Um exemplo básico que ilustra essa visão seria um carro, projetado para levar pessoas de um lugar para outro (De Vries 2005:23-34).

Adicional a essa visão analítica, filósofos reformacionais têm ressaltado que design e função própria não são suficientes, mas que é preciso notar que artefatos tecnológicos funcionam dentro de todos aspectos da realidade.  (De Vries 2005:45)

Tomemos um computador como exemplo:

  • O mecanismo do computador opera com 0´s e 1´s (aspecto numérico)
  • O computador ocupa espaço na escrivaninha ou colo (aspecto espacial)
  • Partes do computador são móveis (aspecto kinético)
  • Algumas de suas propriedades são duras, fortes, pesadas etc. (aspecto físico)
  • Ele pode ser tocado (aspecto sensitivo)
  • Seu desenvolvimento leva um período de anos (aspecto histórico)
  • Interagimos com ele usando linguagem (aspecto lingual)
  • Computadores conectam pessoas umas com as outras (aspecto social)
  • Ele tem um preço (aspecto econômico)
  • Sua aparência pode agradar ou desagradar pessoas (aspecto estético)
  • Seu design é protegido por patentes (aspecto jurídico)
  • Existem questões de privacidade quanto ao acesso de dados nele contidos (aspecto ético)
  • Seu desenvolvimento dele gerou fortes crenças no poder da tecnologia (aspecto pístico)

Mas não são só os artefatos tecnológicos que funcionam em todos os aspectos da realidade. Os próprios designers também, pois usam diversos tipos de conhecimento pra projetar seus artefatos. (De Vries 2005:46) Portanto, devido à sua intencionalidade (i.e. estrutura e direção), artefatos tecnológicos nunca são instrumentos neutros (Schuurman 2013:4).

No entanto, a opinião comum sobre tecnologia é que ela é neutra. E a atitude gerada por essa opinião é ingênua e consumista. Por exemplo, como meio  de informação, tecnologia tende a ser usada e abusada como fonte de conhecimento imediato. Tal absorção de pontos de vistas tecnológicos (i.e. google, wikipedia, etc.) não só induzem a evitar verdadeira reflexão e auto-reflexão, como também obscurecem a natureza das realidades acessadas através dela.

Mas como acontece tal redução da realidade por meio de tecnologia? O fenomonologista Don Ihde ilustra essa questão usando o telescópio de Galileo como exemplo. O “modo de ver” tecnológico, na sua estrutura básica de magnificação/redução, tende a aumentar algo focado ao passo que remove algo do cenário, tal como a visão proporcionada pelo telescópio onde as estrelas são aproximadas ao custo do resto do mundo. (Ihde 1990:34-50)

E é justamente essa estrutura básica de magnificação e redução que descreve a verdadeira essência da tecnologia moderna. O pai da filosofia existencialista, Martin Heidegger, também visto como o pai da filosofia da tecnologia, foi o primeiro a questionar a definição instrumental da tecnologia, afirmando que, na sua verdadeira essência, tecnologias modernas (em contraste a tecnologias pré-modernas como martelo etc.) são modos humanos de revelar e reconstruir potencialidades cósmicas. Já que tecnologia traz à tona (Hervorbringen) o que estava escondido, tecnologia é uma forma de poeisis. Portanto, existe um vínculo essencial entre o poético tecnológico e o poético artístico (i.e. como revelação de potencialidades humanas e criacionais).  E de acordo com Heidegger, a única maneira de entrar em uma relação de liberdade com a tecnologia é por meio da abertura existencial para sua verdadeira essência  (Heidegger 1962:5) temporal (i.e. criacional), assim reconhecendo suas limitações (i.e. criacionais).

Outra diferença entre tecnologias tradicionais e modernas é o fato de que a tecnologia moderna não só traz à tona potencialidades (Hervorbringen), mas ela também desafia a natureza  (Herausfordern), forçando-a a se manifestar. Usando esse insight, Heidegger desmascara o ideal da ciência moderna de controle sobre a natureza como sendo baseado no equívoco de que tecnologia moderna seria ciência aplicada (senso comum), apontando, pelo contrário, que a ciência moderna é fruto dos pontos de vistas redutivos humanos. (Heidegger 1962:12-19).

Vale a pena lembrar os efeitos devastadores causados pelo ideal moderno da ciência. A trajetória percorrida por sociedades modernas, organizadas por princípios que absolutizam tecnologia e ciência, segundo Charles Taylor, pode ser caracterizada pelas tentativas revolucionárias de reconciliar a existência humana com a natureza por meio do ideal científico de transformação, resultando sempre em alienação e nihilismo ao invés de verdadeira liberdade. (Taylor 1979:137-156)

Visto que o ideal da ciência moderna é baseado no equívoco quanto aos limites e à temporalidade da tecnologia, como revelação poética que reflete a visão redutiva humana, Heidegger alerta quanto ao poder da tecnologia (ainda presente) de esconder a verdadeira essência das coisas. (Heidegger 1962:20-23)

Ao entender possíveis perigos relacionados à tecnologia e o mundo de vida contemporâneo, cabe ao cientista cristão, não só reconhecer os limites da sua perspectiva temporal, mas também ser encorajado a explorar as potencialidades dadas na criação como ato de fé, conscientes de que a radical diversidade e coerência do mundo não só reflete a glória de Deus como fato, mas também como chamado dado ao homem para que ele participe no mundo como agente revelador da realidade criada por Deus.


Bibliografia
DE VRIES, M. J. 2005. Teaching About Technology. An Introduction to the Philosophy of Technology for Non-philosophers, Dordrecht: Springer.
HEIDEGGER, M. 1962. Die Technik und die Kehre, Pfullingen: Verlag Guenther Neske.
IHDE, D. 1990. Technology and the lifeword: from garden to earth, Bloomington: Indiana University Press.
TAYLOR, C. 1979. Hegel and Modern Society. Cambridge: Cambridge University Press.
SCHUURMAN, D. C. 2013. Shaping a Digital World, Faith, Culture and Computer Technology, Illinois: InterVarsity Press.

 

 

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