autrismo

A relação entre natureza e moralidade, e o tema das origens do altruísmo humano, em particular, constituem uma área privilegiada de combate por ateus interessados em desqualificar atos fundamentados na religião. Vez ou outra sai algum escrito sobre o assunto.

Nesta semana ganhou espaço na internet uma pesquisa alegando que “Crianças sem religião são mais altruístas”. (O artigo está aqui: http://www.cell.com/current-biology/fulltext/S0960-9822(15)01167-7). De saída, chamamos a atenção do leitor para a crítica feita por William M. Briggs, que constatou uma série de problemas metodológicos neste estudo. Briggs é um especialista em estatística, portanto, alguém consciente de que os números algumas vezes mentem. Para quem quiser se aprofundar, o texto está disponível no link: http://wmbriggs.com/post/17238/

Em nosso artigo, entretanto, vamos lançar um pouco de luz sobre a própria ideia de altruísmo, a fim de esclarecer melhor a relação entre religião, moralidade e ciência e ajudar o leitor a analisar criticamente as interpretações ateístas do assunto.

Novos ateus acusam especialmente os cristãos de hipocrisia por alegarem fazer o bem sem pensar em algo em troca, quando, na perspectiva deles, a própria essência do cristianismo, a salvação, seria buscada através de uma barganha com a divindade: a bondade como uma moeda de troca para o paraíso.

Contra isso, afirmamos que as explicações naturalistas neo-ateias são tendenciosas e pouco convincentes neste sentido, restando somente a simples constatação de que o altruísmo com base religiosa é real. Devo também afirmar de início que a religião não necessariamente torna uma pessoa moral ou altruísta; e também que a negação da religiosidade não seria um empecilho para uma pessoa agir moral e altruisticamente. Também não é objetivo desse pequeno texto comentar sobre a evolução darwiniana e suas implicações científicas.

Como termo, o altruísmo é uma construção historicamente recente. Foi o sociólogo humanista August Comte quem o cunhou, no século XIX, derivando do italiano altrui, que significa “outros”. Na definição de Comte, altruísmo significaria a preocupação não-egoísta com o bem de outros. A partir de então, surgiram várias explicações para o altruísmo.

Em “O gene egoísta”, Richard Dawkins aponta a evolução como sendo centrada no gene, isto é, o gene fará de tudo para se auto-replicar. Para alguns, esta concepção pode ser aplicada à sociedade, tendo o egoísmo como a característica básica dos seres vivos e o altruísmo, quando ocorre, servindo somente para benefício próprio. De fato, a argumentação de Dawkins extrapola sua área científica avançando no campo da metafísica:

Agora eles [genes] apinham-se em colônias imensas, em segurança dentro de robôs desajeitados gigantescos, murados do mundo exterior, comunicando-se com ele por meio de vias indiretas e tortuosas, manipulando-o por controle remoto. Eles estão em mim e em você. Eles nos criaram, corpo e mente. E sua preservação é a razão última de nossa existência. Transformaram-se muito, esses replicadores. Agora eles recebem o nome de genes e nós somos suas máquinas de sobrevivência. (Richard Dawkins, O Gene egoísta. São Paulo: Cia das Letras, 2007, p. 16).

Alister McGrath critica essas pressuposições metafísicas e cita a reescrita deste parágrafo pelo biólogo sistêmico Denis Noble:

[Genes] estão aprisionadas em colônias imensas, presas dentro de seres altamente inteligentes, moldados pelo mundo exterior, comunicando-se com ele através de processos complexos, através dos quais, cegamente, como se por mágica, funções surgem. Eles estão em você e em mim; nós somos o sistema que permite que seus códigos sejam lidos; e sua preservação é totalmente dependente da alegria que nós experimentamos ao nos reproduzirmos. Nós somos a justificativa final para sua existência. (Alister E. Mcgrath. Darwinism and the divine. West Sussex, Wiley-Blackwell: 2011, p. 39).

Realmente, uma pérola da subversão ideológica.

Mas Dawkins não está sozinho nessa linha de argumentação. O filósofo da biologia Michael Ruse e o biólogo Edward O. Wilson dizem:

Moralidade, ou mais estritamente, nossa crença na moralidade, é meramente uma adaptação posta em prática para promover nossos fins reprodutivos. Uma vez que a base da ética não reside na vontade de Deus (…) ou em nenhuma outra parte da estrutura do universo. Em um sentido importante, ética (…) é uma ilusão embutida em nós pelos nossos genes para nos fazer colaborar.  (Ruse and Wilson. The evolution of ethics. New Scientist 108, no. 1478 (17 de outubro): 50-52)

Mas esse caminho argumentativo antecede em muitos anos a Dawkins, Ruse e Wilson. Em 1894, T. H. Huxley, “o buldogue de Darwin”, publicou “Evolution and Ethics”, no qual argumenta que ações éticas demandam uma interferência no processo evolucionário. Entretanto, Huxley deixa pouco espaço para a própria possibilidade da ética, pois acaba não enfatizando nada além de uma competição desenfreada de indivíduos egoístas. Na visão de Huxley, o pensamento evolucionário, visto em uma perspectiva naturalista, acabaria com a possibilidade de uma base transcendente e, assim, com a possibilidade da ética.

Um texto recente importante para nossa argumentação é o livro “Evolution and Ethics: Human morality in biological and religious perspective” que traz um balanço dos posicionamentos em biologia e em religião com relação à moral, dentro de uma perspectiva da evolução darwiniana.

Assim, há diversas obras sobre “evolução e ética” que estudam, basicamente, a tentativa humana de criar sentido em um mundo cheio de maldade, mas se veem com a complicação de que a natureza humana tende a ser vista como egoísta, ficando com dificuldades em responder questões envolvendo moralidade. A evolução, por si só, não provê justificação final para a moralidade. Esta justificativa deve ser buscada em outro lugar.

Seguindo a lógica apresentada acima pelos neo-darwinistas, façamos um exercício intelectual e pensemos em um Bom Samaritano “biologizado”. Este Bom Samaritano, assim diz a teoria biologizante – é incapaz de agir em favor da vítima. E, assim, deve ter uma consideração centrada em seu próprio interesse. Dentro do framework exposto pelos neo-darwinistas naturalistas, o Bom Samaritano seria um enganador que procurou, através de seu ato, converter outros. São exatamente nesses termos com que o biólogo Richard Alexander argumenta (1975, The search for a general theory of behavior. Behavioral Sciences 20: 77-100).

Mas essa conversão não traria bons frutos, ao menos? Quando discípulos se convertem às religiões que bons samaritanos trazem, as pessoas seriam movidas a agir justamente como seus conversores. Como se fosse por herança genética. Bons Samaritanos ensinam bondade através da palavra e do exemplo e pregam sobre o Deus de amor.

Mesmo não convertidos como Alexander e Dawkins parecem concordar que essa ética traz coisas boas. Alexander diz que “’amar seu próximo como a si mesmo’ é um objetivo admirável” (Darwinism and human affairs. Seattle: University of Washington Press, 1979, 96), mesmo que isso seja um “erro” em uma perspectiva evolucionista naturalista. Dawkins conclui que “Tentamos ensinar generosidade e altruísmo porque nascemos egoístas” (O Gene egoísta, p. 3).

Esta atividade missionária samaritana traz prosperidade cultural para os convertidos também. Esta boa religião deve ser universalmente compartilhada, pois gera preocupação para com outros humanos próximos e distantes, levando seus seguidores a se relacionar com justiça, amor e respeito. Assim, o esforço de adotar esse comportamento transcende os “genes egoístas” desses indivíduos. Qualquer relato de altruísmo intra-grupal para atingir sucesso competitivo extra-grupal é incapaz de explicar o universalismo dentro das maiores fés mundiais. É contra-evolutivo expandir para fora do grupo (Rolston, Homes. The good samaritan and his genes. IN: Clayton, Phillip, Schloss, Jeffrey. Evolution and ethics, 2004).

Se a função de uma religião é prover lealdade fervorosa para um grupo tribal de modo a garantir sua competitividade e sobrevivência, então levar a religião a estrangeiros é exatamente o comportamento errado. Se uma religião serve para promover o bem de certa sociedade e produzir numerosos descendentes, então a última coisa a desejar (segundo a lógica do “gene egoísta”) seria o compartilhamento dessa religião com outros. Estaria se oferecendo gratuitamente o segredo da felicidade e reduzindo a própria vantagem competitiva. Este seria um altruísmo do tipo autodestrutivo. “Do ponto de vista genético, converter outros com genes estrangeiros é o pior tipo de erro religioso que se pode fazer”. Entretanto, este é exatamente o segredo do sucesso das maiores religiões mundiais” (Rolston, 2004).

Assim, quando é feita a pergunta, “quem é o meu próximo?”, a resposta vem em termos de quem tem a necessidade que eu possa ajudar, com meu tempo, com meu dinheiro ou minha religião, e não quem é provável de retribuir com a rede ganha através da minha linha genética religiosa.

Não há nenhum benefício diferencial de sobrevivência, porque todos os convertidos extra-grupais também são vencedores. Não há mais aquela competitividade que os neodarwinianos naturalistas requerem como a base da seleção natural. É impossível manter os benefícios somente em nível local e dentro do grupo.

Por fim, cabe um último ponto ainda na posição dos neodarwinianas naturalistas. Alexander diz que a

“sociedade é baseada em mentiras…  ‘Amar seu próximo como a si mesmo’. Mas esse admirável objetivo é claramente contrário à tendência de agir de uma maneira reprodutivamente egoísta. “Ame o seu próximo dando a impressão que ama seu próximo como a si mesmo” estaria mais próximo à realidade.” (Alexander, 1975, 96)

Ao menos o autor concorda que isto é admirável. Neste sentido, podemos seguir os questionamentos de Philip A. Rolnick:

Em primeiro lugar, em violação à navalha de Occam, esta ideia tem de funcionar ao longo do tempo a fim de dar conta dos muitos atos de caridade feitos para aqueles que não são próximos. Seria evidentemente mais simples somente assumir que algumas vezes um ato de bondade é o que aparecer ser: um ato de bondade.

Em segundo lugar, há ao menos algumas evidências experimentais que apoiam a alegação de que o altruísmo pode ser genuíno – por exemplo, o trabalho dos psicólogos Batson e Shaw (Evidence of altruism: toward a pluralism of prosocial motives. Psychological Inquiry 2, no. 2:107-122).

Em terceiro, missionários religiosos normalmente assumem grandes riscos e submetem-se a grandes despesas em benefício de grupos que carregam quase nenhuma similaridade genética à dos missionários. Como já foi comentado, a tendência de religiões mundiais deveria apontar contra isso. Assim, e isto é importante, quando se movem para além de suas aplicações biológicas, as explicações neodarwinianas naturalistas se tornam tendenciosas e pouco convincentes. (Darwin’s problems, neo-darwinian solutions, and Jesus’ love commands. IN: Clayton, Phillip, Schloss, Jeffrey. Evolution and ethics, 2004)

Cito a passagem de um sermão do filósofo cristão Joseph Butler (1692-1752):

Assim como os animais, a humanidade possui diversos instintos e princípios de ação. Alguns deles conduzem ao bem da comunidade de maneira mais direta e imediata, ao passo que outros vão mais diretamente ao bem particular (…) Não é uma representação verdadeira da humanidade afirmar que [os princípios de ação] são completamente governados pelo amor próprio, o amor ao poder e os apetites sexuais. (…) É fato manifesto que algumas pessoas, via de regra, são influenciadas pela amizade, compaixão, gratidão (…) e, em alguns momentos, gostar do que é justo e certo assume o primeiro lugar entre outras motivações e ações. (fifteen sermons, citado IN: Moreland, J.P, Craig, William Lane. Filosofia e cosmovisão cristã, p. 522).

Por fim, cabe expor o que alguns dizem no sentido de que a Bíblia – com sua ênfase em evitar o inferno e ir para o céu e garantir recompensas eternas para a vida na terra – estaria na verdade defendendo o egoísmo.

Inicialmente, deve-se distinguir entre alcançar o que é de meu interesse como subproduto da ação versus o interesse próprio como única intenção do ato. “As passagens bíblicas que apelam aos interesses próprios podem simplesmente destacar que, se você fizer intencionalmente a coisa certa, então bons subprodutos disso serão as recompensas.” (Moreland, Craig. Filosofia e cosmovisão crista, p. 528).

A ênfase das Escrituras no interesse próprio se fundamenta na ideia de que isso é o certo a fazer, e não no simples fato de tais interesses serem meus, mas no fato de eu ser uma criatura com valor intrínseco, feito à imagem de Deus. Como diz C. S. Lewis, em “O Peso da glória”, o anseio pelo céu e por recompensas é um desejo natural que expressa nossa constituição natural. Fomos criados para desejar honra diante de Deus, estar em sua presença e desfrutar das recompensas que ele nos dará.

O grande sociólogo polonês Zygmunt Bauman, “acertou na trave” ao se posicionar com relação ao questionamento moral do “sou por acaso guardião do meu irmão?”:

Argumentos racionais não ajudarão; não existe, sejamos francos, nenhuma “boa razão” pela qual deveríamos ser os guardiães de nossos irmãos, pela qual deveríamos nos preocupar, pela qual deveríamos ser morais – e numa sociedade orientada pela utilidade, os pobres e indolentes, inúteis e sem função, não podem contar com provas racionais de seus direitos à felicidade. Sim, é necessário admitir, não há nada de “razoável” em assumir responsabilidades, preocupar-se e ser moral. A moralidade tem apenas a ela mesma para se apoiar: é melhor se preocupar do que lavar as próprias mãos, melhor ser solidário com a infelicidade do outro do que ser indiferente, é muito melhor ser moral, mesmo que isso não faça as pessoas mais ricas nem as companhias mais lucrativas (Bauman, Zygmunt, A sociedade individualizada. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p.109).

Explico: acertou na trave porque, apesar de reconhecer a necessidade premente e, também, ausente, na sociedade ocidental pós-moderna de atos de altruísmo, ainda assim coloca o norte da bússola do altruísmo apontando para si mesma.

Concluindo, diante de tudo o que foi brevemente exposto acima, posições filosóficas com relação ao altruísmo não conseguem se manter para além da ética religiosa. As bases evolucionistas por si só não são suficientes para dar conta de explicar atos não egoístas.

Diversas teorias tentam explicar e aplicar a moralidade: a teoria dos jogos procura compreender a competição analisando os diferentes movimentos estratégicos através de fórmulas matemáticas; a teoria filosófica do egoísmo ético afirma que cada pessoa é moralmente obrigada a seguir somente as regras que se encaixam nos máximos interesses próprios do agente durante toda a sua jornada; os utilitaristas, por sua vez, entendem utilidade como qualquer bem que devamos buscar para maximizar as consequências de nossos atos e regras morais. Aqui, o objetivo das ações morais é a satisfação dos desejos ou anseios que expressam preferências individuais.

Essa última abordagem é posicionamento perigoso que alguns neo-ateístas têm preferido e que podem levar a implicações fatais. As ideias têm consequências. O fato é que, quando alguém tenta usar o princípio utilitarista para determinar qual ação tomar, põe-se sob o risco de justificar qualquer ação, contanto que isso satisfaça as preferencias particulares do indivíduo ou de um grupo privilegiado. Essa teoria não pode responder ao simples fato de que as pessoas podem ter preferências moralmente inaceitáveis como o desejo de matar alguém ou de eliminar um subconjunto da sociedade em nome do “bem comum”.

Enfim, o naturalismo filosófico não dá conta de explicar a objetividade moral (de que há certos e errados) sem apelar para uma base transcendental. Sem valores morais objetivos, para além do indivíduo, a explicação do altruísmo fica sem sentido. Daí a incapacidade dos neo-ateus em compreender esse fenômeno.

por Luiz Adriano Borges

Bibliografia:

Alexander , Richard. The search for a general theory of behavior. IN: Behavioral Sciences, 1975,  20: 77-100

________________. Darwinism and human affairs. Seatle: University of Washington Press, 1979.

Bauman, Zygmunt, A sociedade individualizada. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

Batson, Shaw. Evidence of altruism: toward a pluralism of prosocial motives. Psychological Inquiry 2, no. 2:107-122.

Clayton, Philip; Schloss, Jeffrey. Evolution and Ethics: Human morality in biological and religious perspective. Wm. B. Eerdmans Publishing Co, 2004.

Dawkins, Richard. O Gene egoísta. São Paulo: Cia das Letras, 2007

Lewis, C. S. O Peso da glória. São Paulo: Vida Nova, 2008.

Mcgrath, Alister E. Darwinism and the divine. West Sussex, Wiley-Blackwell: 2011

Moreland, J.P, Craig, William Lane. Filosofia e cosmovisão crista. São Paulo: Vida Nova, 2008. t

Rolnick, Philip A. Darwin’s problems, neo-darwinian solutions, and Jesus’ love commands. IN: Clayton, Phillip, Schloss, Jeffrey. Evolution and ethics, 2004

Ruse, Michael; Wilson, E. O. The evolution of ethics. New Scientist 108, no. 1478 (17 de outubro): 50-52

 

 

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