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Prefácio

Este livro é a versão revisada das Preleções Gifford, apresentadas na Universidade de Edimburgo em fevereiro de 2011. As palestras buscaram abordar a história de dois conjuntos inter-relacionados de assuntos — aqueles ligados à natureza do universo físico e suas operações e aqueles que dizem respeito aos objetivos da existência humana e seus valores morais. Hoje em dia tendemos a pensar nestas questões como se pertencessem aos domínios distintos da ciência e da religião. Quando observamos o passado, no entanto, vemos que os limites destes dois domínios eram entendidos de maneira muito diferente e que as questões que dizem respeito ao sentido e valor humanos últimos eram raramente dissociadas da compreensão da natureza do universo. Em certo sentido, então, este livro trata da história da ciência e da religião no Ocidente. Seria, porém, mais preciso dizer que ele busca descrever como viemos a entender o mundo do ponto de vista destas categorias distintas de “ciência” e “religião” — como, em outras palavras, viemos a separar o domínio dos fatos materiais da esfera de valores morais e religiosos.

Este assunto traz consigo dois desafios em particular. O primeiro deve ser, de imediato, mais ou menos aparente. Este livro não pode ser uma simples história das relações entre ciência e religião, já que meu argumento é que estas duas ideias, conforme são entendidas no presente, tratam-se de concepções relativamente recentes que surgiram no Ocidente no decorrer dos últimos trezentos anos. O que procurei fazer, portanto, foi examinar atividades passadas que eram tipicamente entendidas nestes termos ou eram consideradas como se conduzissem a eles. Parte significativa deste exercício será uma consideração do destino dos termos latinos scientia e religio. Estas duas noções começam como qualidades interiores do indivíduo — “virtudes”, se assim preferir — antes de se tornar entidades concretas e abstratas entendidas essencialmente do ponto de vista de doutrinas e práticas. Este processo de objetificação é pré-condição para a relação entre ciência e religião. Além da consideração dos termos latinos a partir dos quais as palavras modernas “ciência” e “religião” derivam, rastrearemos também configurações dinâmicas de outros conceitos genealogicamente relacionados a nossas ideias modernas de ciência e religião. Estão incluídos, “filosofia”, “filosofia natural”, “teologia”, “crença” e “doutrina”, todos os quais possuíam significados para agentes históricos passados que nos são bastante estranhos atualmente. Uma das minhas sugestões será que existe o perigo de interpretar erroneamente atividades passadas, caso pressuponhamos equivocadamente a estabilidade do significado de tais expressões.

Um segundo desafio diz respeito à amplitude histórica deste livro, que começa com a Grécia clássica e o cristianismo antigo e se estende até o fim do século XIX. Isto talvez pareça deveras ambicioso, ainda mais à luz da tendência acadêmica da rígida especialização histórica. Este escopo, porém, é necessário, em parte porque procuro questionar narrativas comuns sobre a trajetória da ciência que refletem tal magnitude começando de seu nascimento entre os gregos antigos, seu declínio na Idade Média cristã, sua revitalização com a revolução científica e o triunfo final com a profissionalização da ciência no século XIX. Também é relevante que, enquanto religião histórica, o cristianismo moderno ainda se avalia em relação a suas formas iniciais, o que justifica prestar atenção à era cristã antiga. Dito isto, não busquei fornecer uma história detalhada das múltiplas maneiras como, no Ocidente, o estudo do mundo natural se relacionou com questões filosóficas e religiosas mais amplas. Antes, tentei “perfurar” momentos históricos específicos, antes de prosseguir conduzindo exercícios parecidos para períodos históricos posteriores. Esta abordagem comparativa por amostragem inevitavelmente deixará de fora algumas partes importantes do enredo, mas nos permitirá fazer um inventário de noções relevantes em diversos pontos da história e a realizar uma avaliação das mudanças pelas quais elas passaram. Estas lacunas na narrativa também dificultarão a especificação de causas para todas as transições identificadas, mas, de todo modo, questões de causalidade histórica são notavelmente difíceis. Não obstante, proporei algumas sugestões do porquê aquilo que considero ser transições decisivas ocorre especificamente em dado momento histórico.

O livro é a culminação de inúmeros projetos nos quais estou trabalhando ao longo dos últimos vinte anos, começando com minhas pesquisas iniciais acerca de nossa noção ocidental de “religião” e incorporando trabalhos mais recentes sobre a identidade da filosofia e da ciência em diferentes períodos históricos, bem como sobre a relação histórica entre ciência e religião. Repetirei versões de alguns argumentos que desenvolvi anteriormente, mas o livro propõe o que eu acredito ser uma perspectiva completamente nova sobre essas questões, em especial em sua busca por relacionar mais detidamente a história da filosofia moral com a história da ciência. Em relação às palestras conforme foram apresentadas, embora eu tenha feito revisões e acréscimos significativos, os seis capítulos do livro correspondem ao conteúdo das seis palestras originais (em alguns casos, de maneira mais fiel do que em outros). O primeiro capítulo fornece um panorama compacto do argumento geral e os capítulos subsequentes preenchem os detalhes. Também acrescentei o aparato acadêmico na forma de notas de rodapé substanciais para quem estiver interessado em averiguar as fontes ou desejar investigar pontos específicos com um pouco mais de detalhes. As notas me permitirão deixar algumas discussões mais esotéricas fora do texto e a manter ao menos parte do estilo das apresentações orais. Em conformidade ao tom original das palestras nas quais este livro se baseia, tentei simplesmente contar a história e me abstive (ou ao menos procurei me abster) de intrometer na narrativa reflexões teóricas mais recônditas. Dito isto, acrescentei um breve epílogo no qual ofereço rápidos comentários sobre questões teóricas, além de observações sobre o modo como minha descrição se relaciona com outras discussões da história da modernidade ocidental.


LEIA UM TRECHO: 

Capítulo 1 | Os territórios da ciência e da religião

Como são ridículos os limites dos mortais!
—Sêneca, Questões naturais[i]

As ideias acerca de Deus nutridas por homens perversos devem ser más, e aquelas de homens bons, as mais excelentes.
—Clemente de Alexandria, Stromata[ii]

Mapas e territórios

Se fosse para o historiador argumentar que descobriu indícios de uma guerra até então desconhecida que teria irrompido no ano de 1600 entre Israel e Egito, tal alegação seria tratada com certo ceticismo. A refutação desta afirmação envolveria simplesmente indicar que os estados de Israel e Egito não existiam no começo do período moderno e que quaisquer conflitos travados àquela época não poderiam, por nenhuma interpretação razoável, ser descritos com precisão como se envolvessem uma guerra entre Israel e Egito. Tampouco historiadores céticos ficariam impressionados se seu colega apresentasse mapas medievais indicando a existência de lugares como Jerusalém e Alexandria e incluindo as diversas características topográficas — rios, desertos, montanhas, planícies e costas — que atualmente talvez incluamos em qualquer descrição dos estados modernos de Israel e Egito (ver figura 1). No caso, o que estaria em jogo não é se o território geográfico em questão existia à época, mas, sim se haviam fronteiras e identidades nacionais autoconscientes comparáveis. A negação da existência de uma Israel do século XVI não implica a negação da existência do território que hoje constitui a nação, mas, sim, a negação de que o território fosse então enxergado a partir de determinado ponto de vista, como algo circunscrito por um conjunto de fronteiras e fundamentado por ideais específicos de nação.[iii] Durante este período, os territórios daquilo que hoje conhecemos como Israel e Egito eram parte da mesma coisa, a saber, o Império Otomano. A ideia de uma Israel medieval e um Egito medieval só puderam surgir mediante a aplicação equivocada de nossos mapas presentes a territórios passados.

Minha sugestão é que algo parecido seja válido para as entidades “ciência” e “religião” e, mais especificamente, que muitas alegações acerca de supostas relações históricas sejam confusas pela mesmíssima razão das alegações acerca de um conflito no século XVI entre Israel e Egito: isto é, envolvem a projeção deturpadora de nossos mapas conceituais presentes sobre os territórios intelectuais do passado. Os conceitos “ciência” e “religião” são tão familiares e as atividades e realizações comumente rotuladas como “religiosas” e “científicas” são tão centrais à cultura ocidental que é natural supor que se tratem de características persistentes da paisagem cultural do Ocidente. Esta visão, contudo, está errada. De fato, é verdade que, no Ocidente, desde o século VI a.C., houve tentativas de descrever o mundo sistematicamente, de entender os princípios fundamentais por trás dos fenômenos naturais e de propor explicações naturalísticas das causas em operação no cosmo. Todavia, como veremos, estas práticas passadas mantêm apenas uma semelhança aparente com a ciência moderna. Também é verdade que, quase desde o começo da história documentada, diversas sociedades se dedicaram a celebrações religiosas, reservaram espaços e tempos sagrados e nutriram crenças sobre realidades transcendentais e conduta apropriada; porém, somente em tempos recentes é que tais crenças e atividades ficaram amarradas à noção comum de “religião” e foram separadas dos domínios “não-religiosos” ou seculares da existência humana.

Ao apontar que “ciência” e “religião” são conceitos de cunhagem relativamente recente, pretendo fazer mais do que uma alegação histórica acerca da aplicação anacrônica de conceitos modernos a eras passadas. O que tenho em mente não é apenas expor a história de como estas categorias de “ciência” e “religião” emergiram na consciência ocidental, mas também mostrar como o modo de sua emergência é capaz de fornecer percepções cruciais sobre suas relações presentes. Da mesma forma como podemos esclarecer conflitos internacionais contemporâneos ao atentar para os processos históricos pelos quais fronteiras nacionais foram construídas a partir de determinado território geográfico, assim se dá também com os respectivos territórios da religião e das ciências naturais. Como as fronteiras de estados nacionais são muitas vezes mais uma consequência de ambições imperiais, conveniência política e contingências históricas do que uma atenção consciente a falhas sísmicas mais “naturais” de geografia, cultura e etnia — pense neste contexto nas fronteiras do estado moderno de Israel —, assim também a compartimentação da cultura ocidental moderna que deu origem às noções distintas de “ciência” e “religião” resultou não de uma consideração racional ou desapaixonada sobre como dividir a vida cultural segundo linhas de fratura naturais, mas em grau considerável teve a ver com o poder político — concebido de maneira ampla — e com as intempéries da história.


As articulações da natureza

Outra forma de pensar sobre estes dois conceitos é considerar uma analogia com o que os filósofos denominam “tipos naturais”. O rótulo “gênero natural” se aplica a agrupamentos naturais de coisas, cuja identidade é natural no sentido de que não depende de seres humanos. As ciências da química e zoologia, por exemplo, buscam identificar tais gêneros. Elementos e compostos químicos são bons exemplos de gêneros naturais — água, carbono e hidrocarbonetos, por exemplo. Esporadicamente, nossos conceitos cotidianos, nossas ideias de quais coisas andam juntas, não se encaixam muito bem com os gêneros naturais verdadeiros. Todos sabemos o que é jade, por exemplo. Esta pedra lustrosa, verde e semipreciosa poderia parecer um bom candidato a ser um gênero natural, mas acontece que existem duas substâncias quimicamente distintas chamadas “jade” — jadeíte e nefrite.[iv] Uma é um silicato de sódio e alumínio; a outra, silicato calcário e magnésio. Uma vez que a microestrutura é levada em conta, fica claro que jade não é gênero natural, pois se trata, na verdade, de dois gêneros diferentes de algo natural. Meu argumento com relação às categorias de “religião” e “ciência” é que, em certo grau, estamos errados ao pensar que sejam análogas a gêneros naturais, porque, a despeito das semelhanças aparentes entre aquilo que denominamos religiões e aquilo que denominamos ciências, de fato, os conceitos e maneira como as empregamos mascaram diferenças empíricas importantes.

No caso do jade, a suposição de que haja uma única entidade unitária pode ser dissipada pela medição cuidadosa de algumas propriedades menos óbvias. Os dois minerais têm gravidades específicas, índices refratário e rigidez levemente diferentes. Análise espectrográfica infravermelha também revelará suas diferentes constituições químicas. No caso da religião, minha sugestão é que, além do exame detido das características empíricas das chamadas religiões — que já trazem à luz uma diversidade enorme e possivelmente irreconciliável —, sua história também é reveladora. Outro caso de gêneros aparentes reforça o ponto. Superficialmente, baleias parecem peixes e morcegos parecem aves, de modo que taxonomias populares tendem a agrupá-los juntos. Exames detidos das estruturas internas revelarão padrão diferente de afinidades, mas o mesmo se daria com a história evolutiva destas criaturas, supondo que ela pudesse ser estabelecida. As histórias familiares desses grupos tornariam aparente que baleias e morcegos deveriam ser classificados apropriadamente com os mamíferos. Considerações semelhantes se aplicam tanto a “religião” quanto a “ciência”, e podemos reconstruir a história destas ideias com precisão muito maior do que somos capazes de estabelecer a filogenia dos táxons biológicos. O que a história das categorias mostrará é como atividades díspares ou ao menos significativamente distintas vieram a ser classificadas em conjunto. No caso da ciência, “história natural” e “filosofia natural” ficam juntas sob a rubrica “ciência” pela primeira vez somente no século XIX. Estas atividades envolviam abordagens muito diferentes ao estudo da natureza e, seguramente, seus descendentes modernos — biologia e física — ainda exibem os vestígios de seu passado genealógico. Portanto, como nosso uso da palavra única “jade” disfarça a composição diferente dos dois gêneros que agora carregam tal rótulo, assim também o uso de “ciência” tanto para ciências históricas, como geologia e biologia evolutiva, quanto para ciências físicas, como química e física, tende a mascarar diferenças fundamentais. Estas diferenças necessariamente complicarão quaisquer afirmações globais acerca das entidades “ciência” e “religião”, bem como seu relacionamento imaginado.

O que segue destas considerações é que distorcemos o passado se aplicamos acriticamente nossas categorias modernas a atividades passadas que teriam sido conceituadas por quem nelas se envolvesse de maneira bem distinta. Não deveríamos utilizar nossos mapas presentes para entender seu território. Não deveríamos supor gêneros naturais onde não há nenhum. Isto significa que a ideia do conflito perene entre ciência e religião deve ser falsa, assim como alegações sobre um antigo conflito moderno entre Israel e Egito devem ser falsas. E isto será igualmente verdadeiro para qualquer relação considerada entre ciência e religião antes do período moderno. Ademais, podemos dizer que relações contemporâneas entre ciência e religião, não importa como sejam interpretadas (isto é, quer positiva quer negativamente), são em grande medida determinadas pelas condições históricas sob as quais fronteiras disciplinares se originaram e se desenvolveram ao longo do tempo. Voltando mais uma vez à analogia de mapa e território, podemos perguntar se os mapas conceituais dos quais dependemos atualmente para navegar pelo nosso relevo cultural são, usando a expressão horrível, mas pertinente, “adequados à sua finalidade”. Assim, a questão da origem das fronteiras pode ir além da descrição e compreensão rumo à investigação crítica da adequação do modo como mapas conceituais atuais dividem o território. Bons conceitos, usando a vívida imagem de Platão, talham a natureza nas articulações (e não, segundo ele disse na sequência, desmembram-na como o faz um açougueiro grosseiro).[v] Parte do encargo deste livro, então, é perguntar se estas formas específicas de dividir aspectos da cultura ocidental contemporânea — “ciência” e “religião” — são úteis. Ao lidar com esta questão, espero mostrar que “ciência” e “religião” não são formas autoevidentes ou naturais de dividir o território cultural, que a história mostra que isto é o caso (como, aliás, apresenta-o a consideração de culturas diferentes da nossa) e que persistir com tais categorias de maneira acrítica pode não apenas gerar conflito desnecessário entre ciência e religião, mas pode também disfarçar o que talvez devessem ser fontes legítimas de tensão entre os caminhos da fé e o estudo formal da natureza. Em suma, este projeto busca expor uma cartografia histórica das categorias de “religião” e “ciência” — possivelmente, as duas categorias culturais mais importantes para a compreensão da natureza da modernidade e seu legado —, tendo em vista lançar luz na sua relação presente.

Tudo isso implica que existe algo não muito acertado com o modo como pensamos atualmente acerca da relação entre ciência e religião, quer pensemos nela do ponto de vista de conflito ou congruência, quer até mesmo pensemos que não têm muito a ver uma com a outra. Não apenas boa parte de nossa discussão presente se mantém desinformada das considerações históricas pertinentes — imagine uma análise comparável das tensões no Oriente Médio que não fizesse nenhuma referência à história —, mas também frequentemente alheia à natureza problemática das categorias em questão. Boa parte da discussão contemporânea sobre ciência e religião supõe que existem atividades humanas separadas, “ciência” e “religião”, que tiveram alguma essência unitária e persistente ao longo do tempo. Que isto não é verdade, espero ilustrar de inúmeras formas, uma das quais envolve atentar de perto para a história dos termos envolvidos.

Nas seções restantes deste capítulo, farei alguns comentários bastante sumários e condensados acerca da história dos termos “religião” e “ciência” (ou ao menos seus equivalentes latinos). Abordagens mais extensas aparecerão nos capítulos seguintes, mas por ora busco simplesmente estabelecer uma defesa básica da importância de reconsiderar nossa compreensão histórica destes dois conceitos.


A história de “religião”

Na seção de sua monumental Suma Teológica (Summa theologiae) que é dedicada a uma discussão das virtudes da justiça e da prudência, Tomás de Aquino (1225-74), sacerdote dominicano do século XIII, investiga, de seu modo tipicamente metódico e perspicaz, a natureza da religião. Ao lado do pai da igreja norte-africano Agostinho de Hipona (354-430), Tomás é provavelmente o escritor cristão mais influente depois dos autores bíblicos. Desde o princípio, fica claro que, para Tomás, religião (religio) é uma virtude —não, aliás, uma das virtudes teológicas preeminentes, mas, mesmo assim, uma virtude moral importante relacionada à justiça.[vi] Ele explica que, em seu sentido primário, religio refere-se aos atos interiores de devoção e oração, sendo esta dimensão interior mais importante do que quaisquer outras expressões exteriores desta virtude. Tomás de Aquino reconhece que uma gama de comportamentos exteriores está associada a religio — votos, dízimos, ofertas e assim por diante —, mas os considera secundários. Como julgo imediatamente óbvio, esta noção de religião é bem diferente daquela com a qual estamos familiarizados. Não há nenhum sentido em que religio se refira a sistemas de crenças proposicionais, nem nenhum sentido de diferentes religiões (plural).[vii] Entre a época de Tomás e a nossa, religio se transformou de virtude humana em algo genérico, tipicamente constituído por conjuntos de crenças e práticas. Também se tornou a forma mais comum de caracterizar atitudes, crenças e práticas ligadas ao sagrado ou sobrenatural.

A compreensão de Tomás sobre religio não lhe era de modo algum peculiar. Antes do século XVII, a palavra “religião” e seus cognatos eram usados com relativa infrequência. Equivalentes do termo são praticamente inexistentes nos documentos canônicos das religiões ocidentais — a Bíblia hebraica, o Novo Testamento e o Alcorão. Quando o termo era usado no Ocidente pré-moderno, não se referia a conjuntos separados de crenças e práticas, mas, sim, a algo mais como “piedade interior”, conforme vimos no caso de Tomás de Aquino, ou “culto”. Ademais, enquanto virtude associada à justiça, religio era entendida segundo o modelo aristotélico de virtudes como o ponto médio ideal entre dois extremos — no caso, irreligião e superstição.[viii]

O vocabulário de “religião verdadeira” que encontramos nos escritos de alguns dos pais da igreja provê exemplo instrutivo. “A religião verdadeira” sugere um sistema de crenças distinto de outros sistemas do mesmo tipo que são falsos. Exame detido do conteúdo de tais expressões, entretanto, revela que discussões antigas sobre religião verdadeira e falsa estavam normalmente preocupadas não com crença, mas, sim, com culto, além da questão da direção apropriada ou não do culto. Tertuliano (c. 160—c. 220) foi o primeiro pensador cristão a produzir escritos substanciais em latim e foi também provavelmente o primeiro a usar a expressão “religião verdadeira”. Ao descrever o cristianismo como “a religião verdadeira do Deus verdadeiro”, porém, ele se refere ao culto genuíno direcionado a um Deus real (e não fictício).[ix] Outro erudito escritor cristão norte-africano, Lactâncio (c. 240-320), dá ao primeiro livro de suas Instituições divinas o título “De falsa religione”. Novamente, porém, seu propósito não é demonstrar a falsidade das crenças pagãs, mas mostrar que “as cerimônias religiosas dos deuses [pagãos] são falsas”, o que significa simplesmente dizer que os objetos do culto pagão são deuses falsos. Seu projeto positivo, uma explicação da religião verdadeira, foi “ensinar de que modo ou com qual sacrifício Deus deve ser cultuado”. Este culto corretamente direcionado era, segundo Lactâncio, “o dever do homem, e neste único objeto consiste a soma de todas as coisas e o curso da vida feliz”.[x]

A opção de Jerônimo por religio em sua tradução do grego relativamente incomum, thrēskeia, em Tiago 1.27, igualmente associa a palavra com culto e adoração. Na versão Almeida 21, o versículo é assim traduzido: “A religião [thrēskeia] pura e imaculada diante do nosso Deus e Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas dificuldades e não se deixar contaminar pelo mundo”.[xi] O sentido desta passagem é que a “religião” dos cristãos é uma forma de culto que consiste em atos de caridade, mais do que rituais. No caso, o contraste se dá entre religião que é vã [vana] e aquela que é “pura e imaculada” [religio munda et immaculata].[xii] Na Idade Média, isto passou a ser considerado equivalente à distinção entre religião verdadeira e falsa. Distinctiones Abel, obra do século XII de autoria de Pedro Cantor (m. 1197), um dos mais destacados teólogos do século XII na Universidade de Paris, faz referência direta à passagem de Tiago, distinguindo a religião que é pura e verdadeira (munda et vera) daquela que é vã e falsa (vana et falsa).[xiii] Seu pupilo, o escolástico Radulfus Ardens, também falou de “religião verdadeira” nesse contexto, concluindo que ela consiste no “temor e amor de Deus e na observância de seus mandamentos”.[xiv] Aqui novamente não há nenhum sentido de conteúdo doutrinário verdadeiro ou falso.

Talvez o uso mais evidente da expressão “religião verdadeira” entre os pais da igreja apareceu no título de De vera religione (Da religião verdadeira), escrita pelo grande doutor da igreja latina, Agostinho de Hipona. Nesta obra, uma de suas primeiras, Agostinho segue Tertuliano e Lactâncio ao descrever a religião verdadeira como culto corretamente direcionado. Como ele veio a relatar em suas Retratações: “Argumentei extensivamente e de diversas formas que religião verdadeira significa o culto do único Deus verdadeiro”.[xv] Não é nenhuma surpresa que Agostinho aqui sugira que “religião verdadeira é encontrada somente na Igreja Católica”.[xvi] Intrigante, porém, é que, ao escrever as Retratações, ele chegou a afirmar que, embora a religião cristã seja uma forma de religião verdadeira, ela não deve ser identificada como a verdadeira religião. Isso, segundo ele raciocinou, devia-se ao fato de que religião verdadeira existira desde o começo da história e, portanto, antes da gênese do cristianismo.[xvii] Agostinho tratou da questão de religião verdadeira e falsa mais uma vez em um opúsculo, Seis questões em resposta aos pagãos, escrito entre 406 e 412 e anexado à carta enviada a Deogracias, sacerdote em Cartago. Aqui ele repete a posição familiar segundo a qual religião verdadeira e falsa se relacionam ao objeto de culto: “O que a religião verdadeira repreende nas práticas supersticiosas dos pagãos é que oferecem sacrifício a deuses falsos e demônios malignos”.[xviii] Novamente, ele prossegue, explicando que diversas formas cultuais podem ser todas expressões legítimas da religião verdadeira e que as formas exteriores da religião verdadeira talvez variem em diferentes tempos e lugares: “não faz nenhuma diferença que as pessoas cultuem com diferentes cerimônias de acordo com as diferentes exigências de tempos e lugares, se aquilo que é cultuado é santo”. Uma variedade de diferentes formas culturais de culto talvez seja, portanto, motivada por uma “religião” subjacente comum: “diferentes ritos são celebrados em povos diferentes unidos por uma única e idêntica religião”.[xix] Se a religião verdadeira pode existir fora das formas estabelecidas de culto católico, inversamente, talvez falte a alguns que exibissem as formas exteriores da religião católica “a virtude invisível e espiritual da religião”.[xx]


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Referências

[i] Sêneca, Questões naturais, pref. 9
[ii] Clemente de Alexandria, Stromata 7.4 (ANF vol. 2, p. 529).
[iii] Sobre a distinção entre mapa e território, ver Alfred Korzybski, Science and Sanity: An Introduction to Non-Aristotelian Systems and General Semantics (Lancaster, PA: International Non-Aristotelian Library, 1941); Jonathan Z. Smith, Map Is Not Territory: Studies in the History of Religions (Leiden: Brill, 1978).
[iv] Ver J. LaPorte, Natural Kinds and Conceptual Change (Cambridge: Cambridge University Press, 2004), pp. 94-100. Sobre Israel e ideias de nação, ver Shlomo Sand, The Invention of the Land of Israel: From Holy Land to Homeland (Londres: Verso, 2012).
[v] Platão, Fedro 265e.
[vi] Tomás de Aquino, ST 2a2ae, 81, 5-6. Para a gama completa de significados de religio em Tomás, ver Roy J. Deferrari et al., A Lexicon of St. Thomas Aquinas (Baltimore: John Lucas, 1948), p. 960.
[vii] Um segundo sentido de religio na Idade Média se refere à vida monástica. É este o primeiro significado do inglês “religion” proposto pelo Oxford English Dictionary: “Um estado de vida sujeito a votos religiosos; a condição de pertencer a uma ordem religiosa”. OED online, s.v. “religion”, 1. http://www.oed.com/view/Entry/161944?redirectedFrom=religion#eid, acessado em 12 de junho de 2012. Sobre estas acepções da palavra, ver John Bossy, “Some Elementary Forms of Durkheim”, Past and Present 95 (1982): 3-18; Peter Biller, “Words and the Medieval Notion of ‘Religion’”, Journal of Ecclesiastical History 36 (1985): 351-59.
[viii] Tomás de Aquino, ST 2a2ae, 91, 1. Para Cícero, superstitio se voltava ao objeto apropriado — Deus ou os deuses —, mas era inapropriada por ser excessiva. De natura deorum I, 42, 117; II, 28, 72; cf. Isidoro, Etymologiae VIII.iii.6. Teólogos dos séculos XI ao XII normalmente entendiam religio deste modo, como virtude subsidiária à justiça. Ver O. Lottin, Psychologie et morale au XIIe et XIIIe siècles, 7 vols. (Louvain-Gembloux: Duculot, 1942-54), vol. 3/2, pp. 313-26. A discussão de Tomás de Aquino sobre religio teve influência considerável por sua incorporação na grande enciclopédia medieval de Vicente de Beauvais, Speculum maius. Ver Vicente de Beauvais, Speculum morale 1, 3.61, em Speculum quadruplex naturale, doctrinale, morale, historiale, 4 vols., Douai 1624, vol. 4, pp. 357-60.
[ix]Veram religionem veri dei”. Tertuliano, Apologeticus 24.1 (PL 1, col. 476; LCL 250, p. 130), cf. 35.1. De spectaculis 1. Aqui difiro da leitura de Maurice Sachot, para quem Tertuliano introduz uma nova concepção de religio e defende o cristianismo como “a religião verdadeira” em sentido mais moderno. Quando le christianisme a changé le monde (Paris: Odile Jacob, 2007), pp. 108-9. Cf. Sachot, “‘Religio/Superstitio’, Historique d’une subversion et d’un retournement”, Revue d’histoire des religions 208 (1991): 355-94. Competindo com Tertuliano ao posto de primeiro escritor cristão a usar a expressão “religião verdadeira” está Minúcio Félix, Otávio 1.5, 38.7 (LCL 250, pp. 314, 434), que usa a expressão no mesmo sentido. A influência de um texto sobre outro é provável, mas a data exata de composição de Otávio é incerta.
[x] Lactâncio, Instituições divinas 1.1, 2.1 (ANF vol. 7, pp. 9, 40); grifo meu.
[xi]Religio munda et inmaculata apud Deum et Patrem haec est visitare pupillos et viduas in tribulatione eorum inmaculatum se custodire ab hoc saeculo” (Vulgata).
[xii] Este contraste se estabelece no versículo anterior: “Se alguém se considera religioso e não refreia sua língua, engana seu coração, e sua religião é inútil” (1.26).
[xiii] MS Bodley 920, fol. 72r., Biblioteca Bodleiana, Oxford. Citado em Biller, “Medieval Notions of Religion”, 357.
[xiv]In timore igitur et amore Dei, et in observantia mandatorum ejus, consistit vera religio”. In epistulas et evangelia dominicalia homiliae 62, PL 155, col. 1894B.
[xv]In quo multipliciter et copiosissime disputatur, unum verum Deum… religione vera colendum”. Agostinho, Retractionum libri duo I.13.1. PL 32, col. 602. Tradução inglesa em Augustine: Earlier Writings, ed. John H. S. Burleigh (Londres: SCM, 1953), p. 218.
[xvi] Agostinho, De vera religione IV (Vera religio in sola Ecclesia catholica). PL 34, col. 0127.
[xvii]Nam res ipsa quae nunc christiana religio nuncupatur, erat apud antiquos, nec defuit ab initio generis humani, quousque ipse Christus veniret in carne, unde vera religio quae jam erat coepit appelari christiana”. Retractionum I.13.3, col. 603. “Pois o que hoje se chama religião cristã existiu desde tempos antigos e nunca esteve ausente desde o princípio da raça humana até que Cristo veio em carne. Daí a religião verdadeira que já existia começou a ser chamada de cristã”. Augustine: Earlier Writings, p. 218.
[xviii] Agostinho, carta 102, Agostinho a Deogracias 19, Works, vol. II/2, p. 30.
[xix] Ibid., pp. 25, 26.
[xx] Agostinho, Sermão 71, 32, Works, vol. III/3, p. 266. Também Exposições dos Salmos, Salmos 47, 8, 13, 14, Works, vol. III/16, pp. 343, 347, 348. Em outro lugar Agostinho identifica religio com piedade [pietas], devoção [devotio] e testemunho verdadeiro [verum testimonium]. Sermão 335a, 1, Works, vol. IIII/9, p. 211.

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