O ENCAIXE EMPÍRICO: ciências naturais e teologia cristã buscando novos caminhos de diálogo

Pedro Lucas Dulci

Filósofo, Teólogo e professor

No livro Verdadeiros Cientistas, Fé verdadeira (Berry, 2016), organizado pelo professor de genética R. J. Berry, temos um valioso artigo do teólogo e doutor em bioquímica Alister McGrath, intitulado: Ciência, Fé e a Compreensão do sentido das coisas. Nele, McGrath nos deixa explícito aquele que é a corrente elétrica de suas investigações a respeito do diálogo em ciência e religião. Contando sobre sua trajetória pessoal de estudos – das ciências naturais à teologia – ele diz o seguinte:

meu verdadeiro interesse fazia uma transição para outra área. Nunca perdi o fascínio pelo mundo natural; simplesmente surgiu outro interesse. A princípio, esses interesses eram concorrentes, mas depois complementares. O que eu antes supunha ser o campo de batalha entre ciência e religião passou a ser cada vez mais percebido como a representação de uma sinergia crítica, porém construtiva, com um enorme potencial para o enriquecimento intelectual. Como, eu me perguntava, os métodos e as premissas das ciências naturais poderiam ser utilizados para desenvolver uma teologia cristã robusta? E o que eu poderia fazer para explorar adequadamente essa possibilidade? (McGrath, 2016, p. 24).

Essa modificação na trajetória de seus interesses também contribuiu para que McGrath empreendesse uma transição de sua abordagem. Seus esforços teológicos e apologéticos passaram a ter outro tipo de relação com a teologia natural e com a ciência. Mais uma vez, em suas palavras:

Isso me levou a dar um segundo passo, afastando-me da ideia de que alguém poderia “provar” a existência de Deus por meio do mundo natural. Em vez disso, passei a ver que o ponto-chave era o fato de haver um alto grau de ressonância intelectual entre a visão cristã da realidade e o que realmente observamos. A fé cristã oferece um “encaixe empírico” com o mundo real. Essa noção de “encaixe empírico” foi explorada teologicamente pelo matemático e filósofo da religião de Oxford Ian T. Ramsey (1915-1972), que a colocou da seguinte maneira: “O modelo teológico funciona mais como a colocação de urna bota ou sapato do que o “sim” ou “não” de uma lista de chamada. […] Assim, o teste de um sapato é medido pela sua habilidade de se encaixar a urna ampla série de fenômenos, pela sua habilidade geral de atender uma série de necessidades. Isso é o que eu posso chamar de método de encaixe empírico, que é demonstrado pela teorização teológica” (McGrath, 2016 p. 26).

Sob a inspiração do insight do professor Ian Ramsey, McGrath reorientou sua abordagem teológica. Na verdade, sua postura apologética passou a considerar em estreita afinidade o potencial que as ciências naturais tinham para interpretar a realidade através de lentes genuinamente cristãs. Entretanto, isso não significaria que o trabalho apologético seria o de deduzir dos fenômenos naturais e dos eventos empíricos “provas” para a existência de Deus. Ao contrário, trata-se de: “como a visão da natureza de um ponto de vista da fé, de modo em que ela seria vista, interpretada e apreciada através de lentes cristãs. Acontecimentos e entidades naturais não seriam, portanto, “provas”, mas consoantes com a existência de Deus. O que é observado na ordem natural harmoniza-se com os temas principais da visão cristã de Deus” (McGrath, 2016, p. 26).

De maneira geral, portanto, podemos dizer que, através dessa modificação em seus esforços intelectuais, o trabalho de McGrath encaminhou-se na direção de procurar fazer com que a teologia aprendesse com a metodologia e as premissas usadas pelas ciências naturais – e, a partir disso, desenvolver uma renovada relação com as mesmas. O ponto alto dessas investigações foi a sua publicação de uma série de livros a respeito de teologia científica – isto é, de como a reflexão cristã pode se beneficiar do rigor intelectual das ciências empíricas. Uma dessas obras importantes é o recém-traduzido livro A ciência de Deus: uma introdução à teologia científica (McGrath, 2016b). Nele, podemos ver McGrath desenvolver os insights supracitados de maneira muito interessante:

Um dos pressupostos fundamentais de uma teologia científica é que, uma vez que a ontologia do mundo natural é determinada pelo seu status como criação e reflexo de Deus, os métodos e premissas que atuam nas ciências naturais podem estimular e informar os métodos e premissas de uma teologia cristã responsável. A temática básica de “encontro com a realidade” percorre tanto essas ciências naturais quanto uma teologia científica e tem suas raízes na doutrina cristã da criação. Isso não significa dizer que as ciências naturais e a teologia cristã são idênticas, seja em conteúdo ou em métodos. A ideia de um “diálogo com a realidade” contém em si mesma a noção correlata de se interagir com cada nível dessa realidade, de acordo com sua natureza distinta (McGrath, 2016b, p. 35).

Em uma percepção consideravelmente simples – que McGrath reconstrói a genealogia na teologia antiga – podemos ver um dos pilares fundamentais para o desenvolvimento tanto de uma postura apologética renovada, como também de uma prática científica que glorifique a Deus. A qual seja, de que a visão de mundo cristã, retirada das Escrituras, não se limita a enfatizar o fato de toda a realidade ser uma criação de Deus, mas de que essa racionalidade intrínseca à realidade criada tem eco e é reafirmada por Cristo em sua ressurreição. Quando Jesus reafirma a ordem criacional em Mateus 28.19-20, ele devolve aos seres humanos a constatação de Gênesis que ocupar-se com as obras das mãos de Deus é um trabalho bom e que o glorifica.

A argumentação de McGrath não se limita a isso e nem termina por aqui. Ele ainda está vivo e trazendo muitas considerações interessantes nesse diálogo entre fé cristã e ciência natural – como acontecerá na I Conferência Nacional de Cristãos na Ciência, em novembro de 2016, em São Paulo. Entretanto, até lá, o que fica para nós é o incentivo de reavaliar a relação que fazemos entre teologia e ciência, como também encontrar no desenvolvimento científico contemporâneo um enorme potencial de sinergia intelectual e apologética. Um bom lugar para começar essas duas atividades são as recentes obras publicas de McGrath.


Referências bibliográficas

BERRY, R. J. (org). Verdadeiros Cientistas, fé verdadeira. Trad. Thaís Semionato. Viçosa, MG: Ultimato, 2016 (Coleção Ciência e fé cristã).

MCGRATH, Alister. Ciência, Fé e a Compreensão do sentido das coisas. In: BERRY, R. J. (org). Verdadeiros Cientistas, fé verdadeira. Trad. Thaís Semionato. Viçosa, MG: Ultimato, 2016 (Coleção Ciência e fé cristã).

MCGRATH, Alister. A ciência de Deus: uma introdução à teologia científica. Trad. Thaís Semionato. Viçosa, MG: Ultimato, 2016b (Coleção Ciência e fé cristã).

 

 

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