Michael Faraday

Michael Faraday (1791-1867) é um dos mais conhecidos de todos os cientistas britânicos cujas descobertas transformaram nosso mundo e que foi pioneiro no entendimento público da ciência em suas palestras na Royal Institution. Ele era igualmente uma pessoa de profunda fé religiosa, cuja ciência foi praticada dentro de uma visão de mundo cristã que moldou suas atitudes e práticas, uma visão de mundo que, em alguns casos influenciou mais diretamente sobre as suas teorias científicas. Este artigo sugere que a ‘convergência’ ao invés do modelo ‘divergente’ melhor descreve a ciência e a fé na vida de Michael Faraday.


por Colin Russell

Introdução

Michael Faraday (1791-1867) foi um dos fundadores do eletromagnetismo, arquiteto da teoria clássica dos campos, descobridor de duas leis de eletrólise e de numerosos compostos químicos, tais como benzeno e hidrocarbonetos totalmente clorados. Ao todo, ele produziu cerca de 400 publicações científicas. Ele foi muito estudado, e em 1971 tinha sido tema de mais biografias do que a maioria dos cientistas atraem. [1]

Sua teologia foi recentemente examinada cuidadosamente, especialmente por G. Cantor [2], embora um artigo anterior por R. E. D. Clark tenha aparecido em 1967 [3]. Este trabalho incidirá sobre as interações entre a teologia de Faraday e sua ciência.


As raízes das crenças de Faraday

Quando, anos mais tarde, Michael Faraday foi questionado sobre sua religião, ele respondeu: “Eu sou de uma seita muito pequena e desprezada de cristãos conhecidos, se é que são conhecidos, como sandemanianos, e nossa esperança é fundada sobre a fé que há em Cristo.” [4] Esta era a fé de seus pais que havia florescido em um canto remoto de Cumbria, e teria efeitos profundos em todos os departamentos da sua vida. Fundada na Escócia pelo ministro presbiteriano John Glas em 1724, era uma busca pelo Cristianismo primitivo revelado no Novo Testamento e foi promovida pelos pesados escritos teológicos do genro de Glas, Robert Sandeman.

Assim como com muitos naquela época, a família Faraday tinha uma longa tradição de “dissidência” religiosa (isto é, não conformidade com a Igreja da Inglaterra). No início do século XVIII, Robert Faraday gerenciava uma pequena propriedade no noroeste de Yorkshire e no devido tempo se juntou a Capela Sandemaniana em Wenning Bank, Clapham, Yorkshire. Foi nas devoções simples de sua igreja, com o seu apelo à autoridade bíblica e suas altas exigências éticas, que os filhos de Robert Faraday foram criados. Claramente evangélica, sua fé também era fortemente calvinista, enquanto os costumes da igreja eram levados a sério.

O filho de Robert, James, tornou-se ferreiro em Mallerstang, na estrada dos antigos tropeiros da Escócia para Londres. Então, em 1791, James e sua esposa Margaret mudaram-se para Londres. Pouco tempo depois, em setembro do mesmo ano, seu terceiro filho nasceu. Ele foi chamado Michael, segundo o pai de Margaret.

Nós omitimos os primeiros anos de penúria de Faraday, baixa escolaridade, estágio como encadernador e tentativas de auto-educação, retomando a narrativa quando Faraday residia  na Royal Institution de Londres. Ele foi introduzido lá graças ao químico Humphry Davy, cujas aulas ele havia assistido, e em 1813 Faraday foi contratado como assistente de Sir Humphry Davy na Royal Institution, onde passou os cinquenta e quatro anos seguintes, tornando-se diretor de seu próprio laboratório em 1825. Desde 1816 Faraday também vivia lá, no alto do edifício e livre de intrusões indesejáveis, continuando seu hábito da infância de frequentar a capela Sandemaniana na Paul’s Alley, na cidade de Londres. Semana após semana ele ouvia a leitura e exposição das Escrituras e adicionava sua própria contribuição musical ao canto dos hinos. Aos poucos, talvez de modo imperceptível, ele adotou os valores deles como seus próprios e se identificou mais profundamente com a comunidade.

O mundo privado do lar de Faraday se fundiu de forma indissociável com o de sua igreja. Entre os jovens membros da congregação Sandemaniana estava Sarah Barnard, filha de Edward Barnard, presbítero da capela e membro de uma antiga família Sandemaniana. Percebendo que estava apaixonado por ela, Faraday a perseguiu com uma energia geralmente reservada para investigações científicas. Ele foi totalmente bem-sucedido e, em 12 de junho de 1821, eles se casaram na Igreja Anglicana de St. Faith, na cidade de Londres, onde o casamento foi registrado, embora não tenha havido qualquer serviço religioso.

Poucos dias após o casamento, Faraday procurou tornar-se membro da igreja Sandemaniana, na qual sua esposa ingressara dois anos antes. O casamento deles talvez tenha precipitado essa atitude, embora quando Sarah lhe perguntara por que não tinham conversado sobre sua adesão, ele deu a memorável resposta: “Isso é entre mim e meu Deus”. Tornar-se membro da igreja era, em certo sentido, a conclusão natural de um processo que tivera início na infância, e significava muito para Faraday. Reputado como alguém que “compreende e acredita na VERDADE, e expressa a disposição de fazer tudo o que Cristo ordenou”, ele recebeu a imposição de mãos, o ósculo santo e calorosas boas vindas nessa pequena comunidade de crentes em Londres.

Em casa, no seu gabinete privado na Royal Institution, Faraday podia relaxar em perfeito contentamento e receber a família estendida da fé Sandemaniana. A maioria dos domingos era passada em sua igreja, onde o culto da Comunhão era espremido entre dois outros cultos de ensino e oração, cada um muitas vezes chegando a durar três horas. Depois dessa maratona espiritual era hora das reuniões familiares, e um outro encontro acontecia às noites de quarta-feira. Durante a semana, Michael Faraday visitava outros sandemanianos, especialmente os necessitados. Isso acabou se tornando mais uma  responsabilidade após sua admissão como diácono (1832) e presbítero (1840). Ele tornou-se gradualmente envolvido na pregação nas reuniões Sandemanianas em Londres e locais mais distantes. O físico John Tyndall, nada amigável à religião institucional, mas um simpático biógrafo contemporâneo de Faraday, atribuía a força de Faraday para os dias da semana a seus “exercícios dominicais”, acrescentando que ”ele bebe de uma fonte no domingo que refresca sua alma para a semana”.

Devemos agora perguntar como esta fé reagiu à ciência de Faraday. Surgem dois modelos possíveis.


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Um modelo divergente

Esta é uma visão convencional, de que entre ciência e fé haja um grande abismo. São dois mundos diferentes, entitades divergentes.

Nas próprias palavras de Faraday

Não há filosofia [ciência] em minha religião… Embora as obras naturais de Deus nunca possam, por qualquer eventualidade entrar em contradição com as coisas mais elevadas que pertencem à nossa existência futura, e devam, em tudo que diga respeito a Ele, sempre glorificá-Lo, ainda assim não penso que seja de modo algum necessário amarrar o estudo da ciência natural à religião, e na minha relação com meus semelhantes, aquilo que é religioso e aquilo que é filosófico sempre foram duas coisas distintas.

Sir John Meurig Thomas escreve:

Sereno na segurança de sua convicção religiosa, ele não se preocupava com o aparente conflito entre ciência e crenças religiosas. Ele poderia esfolar os espiritualistas por sua ingenuidade da fé e, ao mesmo tempo, aceitar, como faziam seus companheiros Sandemanianos, a verdade literal da Bíblia. Resoluto em sua busca por excelência como professor e dedicado à realização dos mais altos padrões da Royal Institution em Albemarle St, ele aceitou com serenidade os pronunciamentos teológicos primitivos de seus companheiros de adoração na Capela Paul’s Alley em Aldersgate Street. [5]

 Em outras palavras, a prática científica é mantida separada das convicções religiosas. A imagem é a de separação.

Geoffrey Cantor expressou isso de uma maneira diferente. Quando Faraday desce do mundo privado da sua casa para o mundo público de suas palestras “uma máscara desliza sobre seu rosto”. Pois aqui ele não está “em casa” e  precisa encontrar valores alheios aos do Sandemanianismo que governava supremo em sua vida privada. Na medida em que muitas pessoas têm uma distinção entre suas vidas privadas e públicas isso não é particularmente notável. Também não é surpreendente que uma palestra no artificial – mesmo sufocante – mundo do Teatro da Royal Institution, deva ser uma espécie de performance, onde uma “máscara” é necessária e esperada.

No entanto, há um outro elemento na análise de Cantor, que é de seletividade. Ele continua a argumentar que “no domínio público da Royal Institution, Faraday evitava os aspectos da vida mundana, que eram hostis ao Sandemanianismo”. Este é certamente o caso em que o que poderia ser interpretado como questões de discórdia, como a idade da Terra, a universalidade do dilúvio, e a continuidade das espécies foram cuidadosamente evitadas por Faraday. No entanto, todas essas eram questões tão distantes de seus projetos imediatos que elas nunca teriam sido candidatas sérias para debate.

Assim, na separação ou na seletividade, a religião de Faraday pode ser vista como divergente da sua ciência. Mas por que deveria ser assim? A resposta parece estar em dois movimentos contemporâneos contra os quais Michael Faraday reagiu.

Idealismo Romântico

Este foi um movimento que devia muito à Naturphilosophie alemã. Sua ênfase na “unidade” era refletida no trabalho de poetas românticos como Wordsworth e Coleridge, e há evidências de que a ênfase romântica na conexão de toda a criação foi útil para Faraday no desenvolvimento de algumas das suas ideias científicas (ver abaixo). Mas onde a unidade era aplicada a Deus e o homem, ou a Deus e o universo, a fé Sandemaniana de Faraday se levantava incrédula. Além disso, a ênfase romântica na intuição como um caminho para a verdade, na religião ou na ciência, era totalmente incompatível com sua compreensão da revelação através da Bíblia ou através de experimentos. Portanto, a ideia de unidade e de ligação entre ciência e religião eraanátema para Michael Faraday.

Teologia natural

Este foi um fenômeno especialmente britânico, popularizado pelos escritos de Paley e nos tratados de Bridgewater, que podiam ser resumidos na sucinta frase: “da Natureza para o Deus da natureza”. No entanto, entre os evangelicais, isto produziu muitas vezes efeitos negativos, pois parecia colocar a razão acima da revelação, a natureza acima da Escritura. Então, quando Faraday anunciou a famosa frase “não existe ‘filosofia’ em minha religião”, ele estava negando que o conhecimento científico (” filosofia “) poderia iluminar a religião ou levar os homens a Deus.

No entanto, mesmo quando tudo isso é reconhecido, problemas permanecem. Fortes evidências sugerem que Faraday pode não ter tido a intenção de dizer que não havia nenhuma conexão entre a verdade científica e a verdade religiosa. Como seu biógrafo Pearce Williams colocou, “suas intuições mais profundas sobre o mundo físico brotaram desta fé religiosa na origem divina da natureza”. Nós agora podemos ir ainda mais adiante e ver como essa mesma fé deu sentido, propósito e forma a toda a sua vida científica e não científica. Mesmo seu amigo agnóstico John Tyndall reconheceu que “o seu sentimento religioso e sua filosofia não podiam ser separadas” [6]. Um modelo alternativo parece melhor para encaixar os fatos.


Um modelo convergente

Aqui a ciência e a fé Sandemaniana são vistas interagindo em uma variedade de formas.

(a) A vocação para a ciência

Como um jovem aprendiz, Faraday estava profundamente insatisfeito. A aquisição da habilidade de encadernação de livros, embora digna em si mesma, nunca conseguiria satisfazer uma necessidade da qual ele rapidamente tornava-se consciente. Trabalhando em um ambiente cercado de livros, ele começou a ansiar pelo conhecimento, por um encontro com a verdade sobre a natureza, assim como sua fé Sandemaniana garantia-lhe o acesso à verdade sobre Deus. Embora ele não tenha colocado bem assim, era como se Sandemanianismo e a ciência pudessem ser parceiros gêmeos em um empreendimento que havia sido recomendado muito tempo antes por Francis Bacon, que escreveu sobre os dois “livros”: da Escritura e da natureza. Muitos anos depois, o próprio Faraday falou sobre “o livro da natureza”, que foi “escrito pelo dedo de Deus” [7]. Há um isomorfismo evidente entre a ciência de Faraday e sua fé que apenas um modelo convergente pode acomodar.

Um aspecto da vocação de Faraday para a ciência era o seu exercício de excelente competência experimental [8]. Tyndall observou que ele era “o maior filósofo experimental que o mundo já viu”. Essa competência pode ter se derivado das habilidades de manipulação de seu pai ferreiro, habilidades às quais Faraday fez questão de prestar homenagem. Em um sentido mais geral, o Sandemanianismo encorajou as artes manuais, a perseverança e o espírito de investigação intelectual.

(b) Os conceitos da Ciência

É sempre notoriamente difícil provar uma conexão entre crenças metafísicas e as partes cognitivas da ciência. No entanto, há dois exemplos na ciência de Michael Faraday onde tais ligações são altamente prováveis.

As teorias de campo

Por muitos anos Faraday vinha desenvolvendo suas investigações em eletricidade e em magnetismo. Ele fora perseguido por questões a respeito de como as influências, elétricas ou magnéticas, eram efetivamente transmitidas. Havia dois tipos bastante comuns de explicação que ele rejeitava. Um deles era o de átomos materiais, como os propostos pelo químico John Dalton. O outro era a antiga doutrina de ‘ação à distância’: corpos são atraídos um pelo outro sem quaisquer corpos intermediários para passar os efeitos adiante em cadeia, por assim dizer. Eventualmente, Faraday chegou à sua teoria dos “campos”, que eram uma espécie de agentes mecânicos para transportar energia a certa distância.  

Possivelmente ele também estava em débito com algumas ideias semelhantes propostas pelo matemático italiano R. J. Boscovich no século XVIII. Mas em acréscimo à contribuição “secular”, pode ter havido uma vinda da teologia também. Alguns anos atrás, um documento foi descoberto na Biblioteca da Instituição de Engenheiros Eletricistas, um memorando particular de Faraday, nunca destinado à publicação, escrito a fim de esclarecer suas idéias sobre átomos e campos. Ao contrário de seus artigos publicados, este contém várias referências a Deus, numa das quais se perguntava se Deus não podia facilmente colocar “poder” ao redor de pontos centrais como Ele teria posto sobre os núcleos materiais. Sua teologia de um Deus todo-poderoso o levou à ideia de pontos centrais e, então, de campos ao redor deles. O professor Trevor Levere, de Toronto, que descobriu este documento, observou que estas novas ideias “se encaixavam com a visão de mundo imposta por sua religião” [9]. Depois disso, como outro comentarista afirmou, “Faraday estava, literalmente, brincando nos campos do Senhor”. [10]

Paramagnetismo de gases

Faraday também abordou a teoria de que todas as substâncias não efetivamente paramagnéticas (isto é, que não se alinham  prontamente quando colocadas dentro de um campo magnético) devem apresentar um comportamento diamagnético em vez disso (isto é, a tendência para se posicionar em ângulos retos com o eixo magnético). Então, o que se aplicava a sólidos e líquidos deveria ser igualmente aplicável aos gases. Os primeiros resultados foram decepcionantes, mas Faraday parece ter sido estimulado por uma descoberta do cientista italiano Michele Bancalari em 1847 do diamagnetismo em chamas (que são, afinal, gases queimando). Depois de repetir grande parte das descobertas de Bancalari, ele mostrou que muitos gases comuns eram diamagnéticos, mas que o oxigênio era consideravelmente paramagnético. Este resultado surpreendente foi usado para formular uma teoria do magnetismo da Terra que usou o fato do paramagnetismo do oxigênio. Embora equivocada, essa teoria parecia confirmar mais uma vez a grande interconexão de todo o universo analisado pela ciência. Em parte, isso pode ter sido um legado do Romantismo, mas Pearce Williams provavelmente estava certo quando escreveu: “Sua crença fortemente mantida na unidade das forças da matéria. . . revelou sua fé na harmonia da criação provocada pela beneficência do Criador “, que fez o universo inteiro trabalhar junto em harmonia. [11]

(c) Comunicação da Ciência

Faraday foi um dos grandes divulgadores científicos de todos os tempos, no começo fazendo aulas de elocução. Ao evitar maneirismos convencionais de retórica ou lógica complicada, ele estava na verdade reproduzindo o estilo dos melhores pregadores de sua igreja Sandemaniana (que não demonstravam qualquer dos floreios nem mesmo dos maiores pregadores como Wesley). Ele escrevia notas completas e as preparava com grande detalhamento. Os cientistas atuais que lamentam sua própria incapacidade de se comunicar efetivamente fariam bem em tomar nota da técnica de Michael Faraday. Acima de tudo eles deveriam ler a sua “História química de uma vela” (1860-1).

 Deixemos que um membro regular de seu público fale por todos:

 Nenhum ouvinte atento alguma vez saiu de uma das palestras de Faraday sem ter os limites de sua visão espiritual alargados, e sem sentir que sua imaginação tenha sido estimulada a algo além da expressão dos fatos físicos.

(d) Aplicação da Ciência

Química

No início do século XIX, a química era vista como uma grande benfeitora da humanidade, e Faraday descobriria que isso era altamente adequado à sua fé Sandemaniana. Ele falou dos “dons de Deus” concedidos para o benefício humano, da natureza operar “para o nosso bem” e da aplicação de leis científicas para contribuir com o bem-estar humano. O maior químico inglês de seu tempo, ele realizou várias análises de pequena escala para a indústria e era muito requisitado por seus serviços químicos fora da Royal Institution.

Trinity House

Em 1836, Faraday foi nomeado consultor científico da Trinity House (a autoridade que gerenciava os faróis da Grã-Bretanha). Ele era consultado sobre ventilação; luzes elétricas; óleos de aquecimento, etc. Sua energia era inesgotável. Mesmo em 1860, quando ele tinha sessenta e nove anos de idade, relatou:

Na sexta-feira fui novamente a Dover… na esperança de encontrar as estradas sem neve; elas ainda estavam bloqueadas para o farol, mas escalando cercas, paredes e campos, consegui chegar lá e fazer as investigações e observações necessárias.

A ciência tinha que ser aplicada em benefício da sociedade, neste caso,  em alto mar. Ele era perfeitamente ciente tanto da fragilidade humana quanto da grandiosidade da natureza, ênfases tão fortes no livro de Jó, que em sua Bíblia é o livro mais fortemente marcado no Antigo Testamento. 

(e) o estilo de vida na Ciência

Em suas relações pessoais dentro da ciência, Faraday mostrou o que seus adversários poderiam ter caricaturado como pietismo, mas que, na realidade, era uma mera manifestação de sua fé Sandemaniana. Embora ele se irasse, ele nunca foi vingativo e, embora tratado de forma abusiva por Davy durante a fase inicial de sua carreira, quando ele trabalhou como seu assistente, nunca dava ouvidos a críticas a seu antigo mentor, mas virava as costas e ia embora. E as honras terrenas que um brilhante cientista poderia ter esperado foram desdenhadas, incluindo a Presidência da Royal Society e até mesmo o título de Cavaleiro do Império Britânico.

Foi levantada a questão sobre até que ponto alguém tão “não mundano” como Faraday poderia estar contente recebendo um rendimento tão generoso para o tempo (até £1000 por ano). Como Sandemaniano, no entanto, ele estava comprometido com uma visão bíblica da riqueza que incluía ordens como “Não podeis servir a Deus e a Mamom [valores mundanos]” (Mt. 6:24) e “Buscai primeiro o reino de Deus” (Mt. 6:33). Evidências interessantes relevantes para a fé interior de Faraday vem de suas Bíblias (a antiga Authorised Version, é claro) que foram examinadas por H. T. Pratt. [12] Elas são bem marcadas e as marcações sugerem certos valores que Faraday considerava extremamente caros. Assim, há linhas verticais evidentes feitas a lápis pela longa passagem que contém este último verso, e muitas outras, incluindo:

O amor ao dinheiro é a raiz de todos os males (I Tm. 6:10);

Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem os consomem, e onde os ladrões minam e roubam: mas ajuntai para vós tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem os consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam (Mt. 6:19-20).

O físico John Tyndall, um colega na Royal Institution, afirmou que, na década de 1830 a renda externa de Faraday se reduziu rapidamente a nada, e sabemos que nos últimos anos o seu salário extra de £200 por serviços à Trinity House muitas vezes não foi recebido. Dizia-se que ele poderia ter ganhado £5000 por ano depois de 1832 caso assim o desejasse. [13] E Faraday nunca patenteou nenhuma de suas invenções. Tudo isto  ajuda a formar uma imagem consistente de um homem  despreocupado no que se refere à riqueza mundana. Há muito nos manuscritos de Faraday que confirmam este ponto de vista. Não é de se espantar que outro verso claramente marcado em sua Bíblia fosse Gálatas 6:9: “E não nos cansemos de fazer o bem: Porque a seu tempo ceifaremos, se não houvermos desfalecido.”


Os últimos anos

Por volta da década de 1860 ficou claro que Faraday, agora em seus setenta anos, teria que enfrentar a aposentadoria com todas as perdas que isso inevitavelmente significava. Em 1864 ele renunciou à sua liderança na igreja Sandemaniana e em 1865 abandonou a posição de Superintendente da Casa na Royal Institution, e cortou sua longa relação com a Trinity House. Pelos dois anos restantes de sua vida, ele esteve a maior parte do tempo confinado à sua cadeira em casa, e aqueles que vinham vê-lo ficavam impressionados tanto pela sua serenidade como pela sua saída do mundo da ciência ao qual tinha servido tanto tempo.

Uma breve carta que escreveu em 1861 a de la Rive revela algo da força interior que ele tirava de sua fé cristã enquanto o mundo que ele tinha conhecido por tanto tempo começava a entrar em colapso ao seu redor.

Essa paz está somente no dom de Deus e, como é Ele quem a dá, por que temeríamos? Seu dom inefável em Seu Filho amado é o fundamento de uma esperança indubitável. [14]

Como o fim se aproximava, visitantes e cuidadores igualmente testemunhavam sua confiança tranquila. Em seus momentos de lucidez, ele falava de seu conforto em Cristo, e se debruçava sobre passagens tais como os Salmos 23 e 46. Então, em 25 de agosto de 1867, sentado tranquilo em sua cadeira de estudo, ele morreu.

Quatro dias mais tarde ocorreu o seu funeral no cemitério de Highgate, no norte de Londres. Apenas familiares próximos e alguns amigos pessoais estavam presentes. Não houve, a seu pedido, nenhuma cerimônia ou pompa. Como era costume Sandemaniano, seu corpo foi sepultado em solo não “consagrado” por cerimônia eclesiástica, sem culto religioso (pois nenhum foi ordenado nas Escrituras), e em perfeito silêncio. À cabeceira da sepultura uma pedra simples traz as palavras:

MICHAEL FARADAY

Nascido em  21 de Setembro de 1791

Faleceu em 25 de Agosto de 1867

O epitáfio de seu amigo agnóstico Tyndall foi: “Justo e fiel cavaleiro de Deus”.

Michael Faraday era inigualável no que concerne à ciência – um gigante entre pigmeus. Em sua síntese de ciência e cristianismo, em sua forte confiança na autoridade das Escrituras, e em sua fé simples em Cristo, Faraday era um expoente de um grande número de cientistas talentosos, tanto antes como depois. Para eles, e para ele, a tarefa de exploração científica não era apenas empolgante e gratificante. Em um sentido muito real, era uma vocação cristã.


Sobre o autor

Prof. Colin Russell FRSC é professor emérito de História da Ciência e Tecnologia na Open University e foi anteriormente chefe do Departamento de História da Ciência e Tecnologia da Open University e presidente da Sociedade Britânica de História da Ciência. Livros recentes do Prof. Russell incluem uma biografia de Michael Faraday intitulada Michael Faraday: Física e Fé (Oxford University Press, 2000). 


Tradução: Breno Perdigão

Revisão: Asafe Gonçalves e Tiago Augusto Pereira


Notas:

[1] – Três volumes recentes são Agassi, J. Faraday como um filósofo natural, Chicago e Londres: University of Chicago Press (1971), p.1x .; Williams, L. P. Michael Faraday, Londres: Chapman & Hall (1965); Thomas, J. M. Michael Faraday e a Royal Institution, Bristol: Hilger (1991). Houve várias tentativas de publicar as cartas de Faraday, a última (e mais bem sucedida), sendo por James, F. As Correspondências de Michael Faraday, Londres: Institution of Electrical Engineers (De 1991).

[2] – Cantor, G. Michael Faraday: Sandemaniano e cientista. Um estudo da ciência e da religião no século XIX, Basingstoke: Macmillan (1991).

[3] – Clark, R.E.D. Hibbert Journal (1967), 144-147.

[4] – Bence Jones, H. A vida e as cartas de Faraday, Londres: Longmans (1870), vol. ii, pp.195-196.

[5] – Thomas, J. M. op. cit., (1), pp. 116-117.

[6] – Tyndall, J. Faraday como um descobridor, Londres: Longmans (1868), p.178.

[7] – Cantor, G. op. cit., (6), p.200.

[8] – Um caso notável foi o seu isolamento de benzeno por destilação de óleo de baleia. Um trabalho recente demonstrou que a mistura contém mais de 300 compostos químicos, muitos dos quais Faraday foi capaz de separar: Kaiser, R. Angew. Chem.Int. EDN. (1968), 7, 345.

[9] – Levere, T.H. Jornal britânico para a História da Ciência (1968) 4, 95-107

[10] – Berman, M. Mudança social e organização científica, Londres: Heinemann (1978),p.162.

[11] – Williams L.P. op. cit., (1), p. 396.

[12] – Pratt, H.T. Boletim de História da Química (1991) 11, 40-47; reimpresso em Ciência & Fé Cristã (1993) 5, 103-115.

[13] – Thompson, S. P. Michael Faraday: sua vida e obra, Londres: Cassell (1901), p. 63.

[14] – Letter to A. de la Rive, 19 de Setembro de 1861.


Veja a seguir: Alister McGrath: Jornada de Ciência, História de Fé

 

 

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