Tradução: Fernando Pasquini Santos e Jemima S. L. Santos

Nota do tradutor:

O texto a seguir foi escrito por um dos mais importantes filósofos da tecnologia da atualidade, Albert Borgmann, atualmente professor da Universidade de Montana (EUA), e escritor de livros como Technology and the Character of Contemporary Life (1984), Crossing the Postmodern Divide (1992), Holding On to Reality: The Nature of Information at the Turn of the Millennium (1999) e Power Failure: Christianity in the Culture of Technology (2003).

O motivo da tradução deste texto é que considero-o bastante provocador (o que um norte-americano chamaria de “food for thought”). O texto não chega a conclusões muito bem definidas, mas nos convida a elas – principalmente conclusões na intersecção entre teologia e ciência/tecnologia. Nele, Borgmann trabalha algumas implicações de seu conceito de coisas, práticas e ocasiões focais, definido anteriormente e explicado em mais detalhes em sua obra maior de 1984, Technology and the Character of Contemporary Life (Tecnologia e o Caráter da Vida Contemporânea). Estes funcionam como um “contrapeso” ao que ele denomina paradigma de dispositivo, que caracteriza o ímpeto da tecnologia moderna. O conceito também já foi explorado por outros cristãos, como Marva Dawn, que usou-o para trabalhar o tema da adoração cristã. A ideia também tem muito potencial para ampliar a compreensão dos conceitos de “mundo-da-vida” em Husserl ou mesmo experiência pré-teórica em Herman Dooyeweerd.

Borgmann é muito perspicaz ao discutir implicações de tanto um elemento da ciência moderna – a astrofísica – como um elemento da tecnologia moderna – o ciberespaço – para a experiência humana e o senso de propósito. O autor se restringe ao aspecto espacial e nota, em um insight muito interessante, que “a cultura global avançada espelha, até certo ponto, a isotropia do universo”; ou melhor, a suposta ausência de um centro de sentido para o ser-no-mundo, conforme visto na astrofísica e vivido no ciberespaço.

Como cristão, penso que os conceitos de isotropia e centros focais representam um desafio muito interessante para uma teologia científica, e podem ajudar nas discussões sobre teleologia, ajuste fino do universo e a polêmica do princípio antrópico ou cosmológico. À medida que leio este texto, não consigo evitar pensar na narrativa da criação, em Gênesis 1-2, que tem um caráter explicitamente focal; ou seja, demonstra a criação de um centro, capaz de receber e formar o lar da humanidade, a partir do qual este se orientaria e prosseguiria em seu chamado cultural. Diversas implicações poderiam ser tiradas daí; a começar da percepção de que coisas, práticas e ocasiões focais são, para o cristão, definidas e asseguradas pelo Criador e Redentor; isto é, o “sentido da vida” – incluindo no aspecto espacial implicado na própria palavra – só pode ser obra da graça.

Espero que este texto possa incentivar reflexões e discussões proveitosas, como o fez comigo. Boa leitura!


Quando nas terças-feiras antes do Dia de Ação de Graças aparecem na aula introdutória de ética apenas em torno de metade dos meus alunos, eu recompenso esses fiéis com a promessa de revelar o sentido da vida.  O anúncio é sempre recebido com uma onda de riso – uma mistura de incredulidade, curiosidade e bom humor. O sentido da vida, eu digo, não pode ser emprestado, comprado ou manufaturado. Ele tem que ser descoberto. E como o descobrimos? Ora, usando o “localizador-de-sentido-da-vida”. E o que seria isso?

Então convido meus alunos a procurar em suas experiências ou aspirações por ocasiões em que eles poderiam afirmar quatro proposições:

(1) Não há nenhum lugar onde eu preferiria estar.

(2) Não há ninguém com quem eu preferiria estar.

(3) Não há nada que eu preferiria estar fazendo.

(4) E eu me lembrarei bem disto.

Exemplos de tais ocasiões são um jantar em casa, uma fogueira de um acampamento no meio do mato ou um recital de música à noite, e, para muitos de nós, poderia ser um culto em uma igreja.

O que fica sugerido em tudo isso é que nessas ocasiões o sentido da vida vem ao foco. A ideia de que ocasiões focais reúnem e revelam o sentido da vida não é nova. Ela é relacionada à noção grega do kairos, o momento auspicioso, e aos “momentos de vida” de Virginia Woolf. Dentre os muitos significados do primeiro, as ocasiões focais compartilham aquele que se refere à estatura pivotal do kairos na pressa e no fluxo do tempo. Com os momentos de vida de Woolf, as ocasiões focais têm em comum a visão abrangente que é centrada em uma coisa concreta. Porém, diferente do kairos, as ocasiões focais precisam ser regulares, e diferente de um momento de vida, elas precisam ser comunais e afirmativas.

De fato, uma vez que eu levei meus alunos a descobrirem o sentido da vida, continuo instando-os a organizarem suas vidas de tal modo que as ocasiões focais tenham lugar consistente e central nelas. Isso significa dizer que o sentido da vida constitui-se de uma tarefa dupla – localizar ocasiões focais e assegurar-se de que elas se encaixem apropriadamente no contexto mais amplo do mundo. A busca por esse encaixe é a essência da quarta afirmação. Muitos estudantes poderiam afirmar as três primeiras em um barzinho entre estranhos numa noite de sexta-feira se álcool o suficiente tiver sido ingerido. Mas a quarta não.

Assegurar um lugar central e consistente para ocasiões focais no mundo de alguém é, em parte, uma tarefa prosaica, uma questão de mudar-se para um lugar adequado, encontrar o tipo de emprego certo, entrar em acordo com a pessoa amada, ser firme quando intromissões ou tentações ameaçam. Esses arranjos, pode-se dizer, acontecem no mundo imediato e tangível.

Esse mundo, porém, está envolto por mundos maiores, mediatos e imaginários, no entanto, não menos reais por causa disso. O mundo real aqui e agora que parece ser o epítome da realidade imperceptivelmente oculta os mundos mediados e imaginados, e esses mundos decisivamente influenciam a realidade do aqui e agora.

Sentado em minha escrivaninha, lendo Justice as Fairness [Justiça como Equidade] de John Rawls, eu sei para o que estou olhando porque conheço seu passado e sua origem – é uma reafirmação de sua grande teoria da justiça e é amplamente baseado em anotações de aulas. Mas também vejo minha leitura dentro de um contexto de alternativas que estão abertas para mim e que eu poderia, ou mesmo deveria, aceitar. Talvez eu deva reler Spheres of Justice [Esferas da Justiça] de Michael Walzer ou finalmente ler Anarchy, State, and Utopia [Anarquia, Estado e Utopia] de Robert Nozick inteiro. E então há os lugares mais longínquos do espaço. O que eu vejo diante de mim não é apenas uma superfície, mas uma parede; e além dela o campus, o país, o planeta, o sistema solar, e assim por diante. Concebida rigorosamente, minha visão está confinada à superfície diante de mim. Mas a superfície não teria sentido sem seu pano de fundo mediato e imaginado.

Eu vou me preocupar aqui com colocar e assegurar ocasiões focais nestes três mundos mais amplos: os mundos do passado, do possível, e do presente em seu sentido mais amplo. Sabemos que o primeiro e o último são a história e a cosmologia. A região do possível hoje é o ciberespaço, conforme irei explicar. Cada um desses mundos tem uma conexão com as três dimensões das ocasiões focais que foram indicadas pelas três primeiras afirmações anteriores: as dimensões do espaço, da comunidade e do engajamento com a realidade. Para ser sucinto, vou me concentrar no aspecto espacial.

O que o desdobrar da história revela sobre as ocasiões focais de hoje? Ocasiões pré-modernas ocorriam em um contexto de uma cosmologia religiosa e moral e em uma textura de compromissos exigentes. Pense na vida dos indígenas Blackfoot, que se dava sob o olhar do Cacique Sol durante o dia, da Luz Vermelha Noturna durante a noite, e em meio às forças eloquentes da natureza, um tipo de vida que, ao anoitecer, se tornava um centro de descanso e luz nas tendas. James Welch descreve isso da seguinte forma:

“Os alojamentos de Lone Caters eram iluminados no interior por fogueiras. Era ao anoitecer, quando mesmo os cães descansavam e os cavalos pastavam sem perturbações ao longo das ribanceiras.”

Descanso e luz, requiem aeterna et lux perpetua, são o que os cristãos devem ter valorizado e desejado quando partissem. O céu tinha uma conotação espiritual [expressa pela palavra heaven, do inglês], e a vida diária era marcada pelo suor do rosto. Sob o céu e rodeado por trabalhos, havia as ocasiões diárias e festivas de oração e celebração. Uma ocasião festiva exibia a estrutura espacial característica da vida pré-moderna. A ocasião normalmente era centrada em algum ponto de referência, como a igreja do vilarejo, e estava sob a ordem cósmica. O centro físico e o contexto cósmico davam ao espaço pré-moderno a sua orientação.

As ocasiões focais de hoje podem se parecer um pouco com suas ancestrais pré-modernas – uma fogueira de acampamento nas montanhas, uma mesa de jantar à luz de velas. Mas essa semelhança é apenas aparência, à medida que vemos essas ocasiões contra o pano de fundo daquilo que o céu e o engajamento se tornaram – a cosmologia da astrofísica e o mundo da tecnologia de informação. Desses dois contextos, o primeiro é bem articulado (embora repleto de perguntas sem resposta); mas o último, entretanto, precisa de uma definição. A tecnologia de informação, conforme uso o termo, é definida por três características. Primeiro, ela é digital (e geralmente binária). Seu formato digital a torna tanto robusta como maleável. A informação analógica, por contraste, está constantemente sujeita a decadência e é tão desajeitada para organizar e dar forma quanto um ensopado. Em segundo lugar, ela é eletrônica ou fotônica, propriedades que garantem a incrível velocidade pela qual quantidades massivas de informação são armazenadas, processadas e transmitidas. E em terceiro lugar, ela é traduzida para formas visuais ou acústicas em alta resolução, de forma atraente, e em superfícies de qualquer tamanho. Assim como suas antecessoras, a tecnologia de informação serve a muitos propósitos – ciência, utilidade e prazer. Culturalmente, sua terceira função é a mais influente, e é a totalidade e acessibilidade desta função que eu denomino ciberespaço. Trata-se de um espaço definido por seus exemplares mais avançados do que por suas fronteiras. De fato, o ofuscamento de fronteiras funcionais é uma marca e um predicamento da tecnologia de informação.

Quais são os desafios cosmológicos e tecnológicos com que precisamos lidar se vamos situar e nos lembrar bem de nossas ocasiões focais? Imagine uma vida que é resolutamente concentrada em ocasiões focais, excluindo cosmologia e tecnologia. A vida, por exemplo, de uma pessoa que trabalha como garçom ou pedreiro para pagar o aluguel e que fora isso passa todo tempo que pode acampando e fazendo trilhas no meio do mato. Seria uma existência idílica, baseada em capacidade física e habilidades, consciente das forças da natureza e afinada com a mudança das estações. Mas ela seria também uma vida precária e dependente, pra não dizer parasita do trabalho e da boa vontade de pessoas familiarizadas com ciência e conhecedoras da tecnologia, pessoas que usam ciência e tecnologia para monitorar e desacelerar o aquecimento global, para proteger regiões selvagens, para desenhar e manufaturar tendas e mochilas, panelas e fogões, comida e roupas. Uma vida idílica como essa, embora admirável em alguns aspectos, seria vivida nas sombras ou mesmo na escuridão da ignorância e da indiferença. Ela seria o contrário de reivindicar orientação de divindades celestiais e de compromissos cotidianos. Ela seria utópica, arriscada e irresponsável.

Nós precisamos reconhecer e entrar no ciberespaço – esse parece ser o imperativo ético. Ou pelo menos parece ter sido assim há dez ou vinte anos. Hoje mais e mais pessoas já estão e estão sempre nele. Houve um tempo, uma geração atrás, quando o acesso a computadores (mainframes) era caro, limitado e difícil. Então veio o tempo em que computadores pessoais tornaram-se disponíveis, mas você tinha que dominar as convenções misteriosas do Disk Operating System (DOS) para se mover pelo ciberespaço. Hoje nós navegamos com muita facilidade o oceano de informações, em telas grandes e pequenas.

A informação tecnológica, no entanto, não tomou realmente a forma de um oceano com margens reconhecíveis e terra seca. Ela se parece mais com um dilúvio que submerge cada vez mais os contornos do mundo tangível e emocional. Os Palm Pilots, Treos, Blackberrys e agora o iPhone deram a ela uma onipresença brilhante e múltipla. A realidade de coisas rígidas e discretas submeteu-se à disponibilidade fluida do ciberespaço. Com certeza a realidade ainda é necessária, como uma plataforma para pisarmos, o ar para respirarmos, a comida para vivermos, assim como microchips, energia e software são necessários para fazer uma tela de computador ou de televisão existirem. A realidade verdadeira desenvolve-se em duas funções relativas ao ciberespaço; ela constitui seu maquinário e seu material bruto, ou seja, sua base e o ímpeto de seu conteúdo.

Do ponto de vista das ocasiões focais, o ciberespaço é a grande distração. Enquanto televisão, ele invade e dissolve primeiro as conversas durante o jantar e finalmente a própria mesa de jantar. Enquanto Treo, ele segue a pessoa que caminha na trilha no meio do mato e desvia a atenção do aqui e agora. Como água que dá vida, o ciberespaço insinua-se de forma útil nas fendas da realidade apenas para corroer o que prometeu nutrir. Talvez, enquanto estou me sentando para jantar, eu esteja esperando um telefonema importante. Aí está ele, diz o meu Blackberry. O telefonema é misericordiosamente breve; mas ei, há um e-mail ainda mais importante. E já que eu estou aqui, como está o livro que o meu correspondente mencionou? E não é que os Giants acabaram de finalizar uma partida de desempate? Quando eu olho para cima, todo mundo já saiu da mesa.

Não é irresponsável aventurar-se pelo mato no outono sem um celular para chamar socorro no caso de uma perna quebrada ou de neve em excesso ameaçando um desastre? E eu não deveria conseguir dar à equipe de busca minhas coordenadas de GPS? O meu Blackberry proverá tudo isso (lembre-se, você ouviu isso aqui primeiro), e já que eu tenho que levá-lo de qualquer forma (carregado pelas células solares na minha mochila), por que não mandar um e-mail para meus amigos nas cidades para contar a eles o quão idílico é aqui perto na fogueira em uma campina nas Montanhas Rochosas? E eu não deveria me manter informado do que está acontecendo no mundo também?

As distrações sedutoras do ciberespaço podem, em parte, ser explicadas pela comparação da estrutura espacial da realidade focal com a do ciberespaço. A estrutura da informação eletrônica está em um senso topológico informal. O ciberespaço tem uma estrutura. Sites são aninhados e linkados na tela em uma ordem definida. Mas não há distâncias mensuráveis entre eles. Tudo está igualmente perto e longe, facilmente alcançável, e por isso… eu prontamente escorrego do que é importante para as distrações, por meio de algo interessante. Na realidade focal, algumas coisas estão perto e outras estão longe. A fogueira está perto da barraca. O riacho está a cem passos. A comida está suspensa a cinquenta jardas de distância e a quinze pés do chão. O começo da trilha fica a quinze milhas de distância. As velas estão acesas na mesa de jantar, mas a comida ainda está na cozinha e o vinho está no porão. A correspondência está lá embaixo na caixa do correio, o concerto vai ser a duas milhas daqui.

A curiosidade, a ânsia para investigar e descobrir, foi crucial em um cenário neolítico e é reprimida pelo ciberespaço. Você tinha que esperar pelo jornal, ir até a biblioteca ou comparecer a um concerto para descobrir o que estava lá fora. O ciberespaço causa a eutrofização da curiosidade; ele provê nutrientes demais em todos os lugares e o tempo todo. A curiosidade, como resultado disso, torna-se inquieta e disforme.

A curiosidade, desde o começo da era moderna, atingiu sua forma mais disciplinada e incisiva na ciência, e, da mesma forma, nós pensamos em suas descobertas como aquilo que explica a realidade da forma mais objetiva e penetrante, aquela em que nós confiamos em nossa busca por saúde, segurança e prosperidade. Quando os chips não funcionam e uma decisão precisa ser tomada em face à doença, terror ou desamparo, nós preferimos confiar em imagens de ressonância magnética do que na visão de um médium, em uma máquina de raio-x do que em uma oração, e em arroz de alta produtividade do que na propiciação de divindades. Essas tecnologias são mais do que ciência, é claro. Elas incorporam engenhosidade, melhorias incrementais, propaganda vigorosa, e muito mais. Mas o que dá a pesquisa e desenvolvimento, engenharia e manufatura, seu poder distintivo é sua consistência com a biologia, a química, e finalmente a física. A física, nos limites do muito grande e do muito pequeno, consiste na teoria da relatividade e na teoria quântica. Essas duas revelam a estrutura última da realidade. Ela parece um mundo ameaçadoramente austero e abstrato.

Isso é assim de duas formas. As declarações dominantes da astrofísica estão escritas em linguagem matemática. Enquanto a matemática que Newton usou e teve que inventar tornou-se parte de uma boa educação de colégio, a matemática da física avançada é difícil e abstrata demais para todos exceto os especialistas, que são uma fração minúscula da humanidade.

Físicos de primeira classe escreveram livros admiráveis para tornar as abstrações da matemática inteligíveis e intuitivas. Como todos os leigos, estou em dívida para com eles. Mas esses autores encontram-se tendo que trocar uma abstração por outra, as abstrações da matemática pelas abstrações das estruturas que são isotrópicas, homogêneas, destituídas de tempo absoluto, sem posições inequívocas, e com conexões ininteligíveis entre eventos que são instantaneamente correlacionados por distâncias de bilhões de anos-luz. Para fazerem-se compreendidos, esses escritores sentem-se compelidos a nos dizer que o mundo concreto de nosso aqui e agora é uma ilusão.

À medida que a topologia do ciberespaço lança luz à estrutura espacial das ocasiões focais de uma forma, também a isotropia do cosmos o faz de outra. Vou limitar a discussão a uma questão de estrutura espacial. Dizer que a estrutura do cosmos é isotrópica é dizer que ele parece o mesmo em todas as direções. Em sua maior escala, ele não exibe qualquer direção distintiva e não contém lugares especiais. A isotropia claramente contrasta com a estrutura espacial das ocasiões focais. Tal ocasião constitui um centro espacial; não há outro lugar que gostaria de estar e nenhum outro mais desejável. Ela tem uma periferia que a circunda, e exibe a orientação para cima e para baixo que é parte da vida cotidiana e se reflete em inúmeras metáforas. Aqui também podemos usar um termo técnico em um sentido informal e pensar em isotropia como uma propriedade de “mais ou menos”, ao invés de “tudo ou nada”. Ou seja, a isotropia pode crescer. Lugares privilegiados e direções podem não desaparecer, mas podem empalidecer.

A direção para cima e para baixo, embora obstinadamente dominando nossos sentidos corporais e percepção, foi enfraquecida há muito tempo quando a forma redonda da Terra foi descoberta. A globalização de hoje a atenuou ainda mais, especialmente para os cidadãos mais avançados do novo milênio, aqueles para quem a China ou o Brasil estão “por cima” tanto quanto a América do Norte. Para essas mesmas pessoas, foi ofuscada a realidade do lugar específico onde elas querem estar acima de todos os outros. Elas não mais têm apenas um lar, e muitos de nós, pessoas normais, temos dificuldade em dizer qual a nossa cidade natal. A nostalgia, primeiro diagnosticada como a dor violenta que mercenários suíços sofriam quando eram afastados de seus vilarejos na montanha, está se tornando algo do passado. O mundo para as pessoas móveis e afluentes está começando a se tornar o mesmo em todas as direções, os mesmos aeroportos, os mesmos hotéis, os mesmos shopping centers, e apenas um e o mesmo ciberespaço. Assim, a cultura global avançada reflete, até certo ponto, a isotropia do universo.

O mundo não tem mais um ponto central, nem neste planeta e nem no cosmos. A vida cotidiana e, especialmente as ocasiões festivas na terra, ainda revelam traços e lembranças de pontos focais, como o colégio que frequentamos, o lugar onde nos casamos, a capital onde o novo presidente toma posse. É o universo que nos dá a impressão de falta de propósito. “Quanto mais o universo parece compreensível,” disse Steven Weinberg de forma memorável, “mais ele parece sem propósito.” Ele de fato se sentia nostálgico quanto ao fim do mundo pré-moderno, e uma década e meia após este comentário, disse o seguinte:

“De fato ela foi nostálgica acerca de um mundo no qual os céus declaravam a glória de Deus. Cerca de um século e meio atrás Matthew Arnold encontrou na maré em retirada uma metáfora para a retirada da fé religiosa, e ouviu no som da água ‘a nota da tristeza’. Seria maravilhoso encontrar nas leis da natureza um plano preparado por um criador intencional no qual os seres humanos tivessem um papel especial. Eu encontro tristeza ao duvidar que vamos encontrar.”

O lamento de Weinberg anda junto com o conselho de Lee Smolin:

“Então nosso mundo é incrivelmente grande, devagar e frio comparado com o mundo fundamental. Nosso trabalho é remover os preconceitos e brilhos impostos por nossa perspectiva paroquial e imaginar o espaço e o tempo em seus próprios termos, em sua própria escala natural”.

Enquanto Weinberg tinha em mente a estrutura de larga escala do universo, Smolin pensa na escala granular inferior da realidade com seus períodos irredutíveis de tempo e espaço e seu grau último de temperatura. E enquanto Weinberg é nostálgico, Smolin demonstra uma sobriedade inteligente, assim como Brian Greene:

“a lição geral que emergiu da investigação científica no último século é que a experiência humana é geralmente um guia enganoso para a verdadeira natureza da realidade.”

Ocasiões focais são deixadas em uma posição precária entre o ciberespaço e a cosmologia. As distrações da informação tecnológica parecem contaminá-las e as abstrações da astrofísica parecem dissolvê-las. Ainda assim, não podemos salvar os momentos focais imunizando-os contra o ciberespaço e separando-os da cosmologia. Tais medidas os deixariam sombrios e equivocados. Não poderíamos nos lembrar deles muito bem. O ciberespaço ilumina os perigos e as responsabilidades das ocasiões focais; a astrofísica clarifica a passagem do firmamento e o desaparecimento do centro cósmico.

Em resposta, precisamos nos lembrar das afirmações focais. O ponto crucial de nosso “ser-no-mundo” é a ocasião focal. Ela “toca fogo às equações” da cosmologia, para adaptar a observação de Stephen Hawking; e, frente às distrações tecnológicas, ela nos permite, nas palavras de Henry Bugbee, “testemunhar aquilo que não pode nos iludir.” Uma ocasião focal dá propósito ao universo e o faz concreto, e ordena o ciberespaço, fazendo-o discreto.

Deixe-me elaborar. Em um livro rico e perspicaz, intitulado The View from the Center of the Universe [A Vista do Centro do Universo], Joel Primack e Nancy Ellen Abrams apontaram que nós constituímos o centro do universo em muitos sentidos. Nós vivemos no meio do caminho da vida do cosmos. Ocupamos o meio da escala das maiores e menores estruturas do mundo. Consistimos nos materiais mais raros que formam o universo. A partir da estrutura total do cosmos, Primack e Abrams nos fazem focar na terra e em nós. Mas por que não focar nas águias ao invés de nós? Ou no sol, ao invés da terra? Ou no buraco negro no centro da galáxia?

Ver uma ocasião focal como o centro do universo é o complemento ao trabalho admirável de Primack e Abram. Ela ancora e garante o assombro que sentimos diante da grandeza do cosmos. De forma mais particular, uma ocasião focal fornece-nos a métrica pela qual medimos o pano de fundo que as estruturas cósmicas constituem para nós na terra. Para usar apenas o aspecto espacial que tenho considerado, deveríamos considerar a isotropia cósmica como o estado fundamental da realidade e a ocasião focal como a explosão de significado que centra o universo moralmente e, portanto, materialmente. Dessa forma, podemos habitar na isotropia do universo de forma mais concreta, e assim também para as outras propriedades aparentemente estranhas do cosmos. Tudo isso é nada mais do que uma conjectura de proposta. De qualquer forma, ela precisará de uma apropriação mais consciente e focada dos centros de nossas vidas, de pessoas reunindo forças para responder aos grandes convites que Weinberg, Hawkins, Greene, Smolin, Primack e Abrams nos fizeram em seus livros, um convite que precisamos aceitar se queremos ser capazes de estar em casa no mundo hoje.

Para lidarmos com o brilho confuso da informação tecnológica, precisamos de um ponto de referência que nos permita discernir no ciberespaço o que vale a pena e o que é distração. É uma questão de critério que tem um lado semântico e um lado sintático. Usar um critério semântico é focar a própria curiosidade na informação necessária para tornar as ocasiões focais centrais, regulares e responsáveis. Tal informação continua dividindo-se em aspectos culturais, econômicos, ambientais, sociais e outros.
Com critério sintático, quero dizer a estruturação do tempo e do espaço, uma ordenação que envolve as questões prosaicas do mundo imediato que considerei anteriormente. A perigosa inundação de informação precisa ser contida e desviada. São necessários tempos e lugares que estejam seguros contra as intrusões dos dispositivos de informação, como uma sala de estar que não tenha telas eletrônicas e de onde os Blackberrys, Treos, Palm Pilots e iPhones sejam banidos. São necessários tempos, como a hora do jantar, nos quais chamadas e notícias são eliminados.

A vida a que devemos aspirar pode ser luminosa, centrada e clara – iluminada pela informação tecnológica, centrada na ocasião focal, e clarificada pela cosmologia. Uma ocasião focal, tornada dessa forma responsável, pode, por sua vez, ir ao encontro das distrações do ciberespaço com critérios e ao encontro das abstrações da cosmologia com concretude. Então estaremos em uma posição de lembrarmo-nos bem dela.

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