Mila P. Free Images - Microcefalia
Por Davi Chang Ribeiro Lin e Karen Bomilcar.
  • Davi Chang Ribeiro Lin é psicólogo clínico, mestre em Teologia pelo Regent College (Canadá) e doutorando em Teologia (FAJE). É pastor na Comunidade Evangélica do Castelo, em Belo Horizonte (MG).
  • Karen Bomilcar é psicóloga clínica hospitalar, mestre em Teologia e Estudos Interdisciplinares pelo Regent College (Canadá). Atualmente reside em São Paulo (SP) onde serve no discipulado e cuidado pastoral de pessoas de diversas comunidades cristãs.

Confira este texto bastante interessante publicado no site da Ultimato.


DOSSIÊ*

O debate sobre a microcefalia está na ordem do dia. O tema estará em breve no Supremo Tribunal Federal, com uma petição da legalização de aborto liderada pela professora de Direito da Universidade de Brasília, Débora Diniz. Débora alcançou destaque mundial ao publicar um textono jornal “The New York Times”, argumentando que esta é a oportunidade do governo brasileiro “dar às mulheres o controle definitivo sobre sua vida reprodutiva” e o “poder de gerenciar sua gravidez”. Seu argumento ressalta que, como muitas mães contaminadas pelo Zika Vírus estão em regiões pobres e sofrem com o descaso do governo, é responsabilidade do Estado minorar o sofrimento permitindo o aborto. Em muitos casos, diante da fragilidade da vulnerabilidade familiar e social, o aborto dos microencefálicos aparenta ser a única solução possível. Esta argumentação, entretanto, não se aproxima das questões fundamentais envolvendo a microcefalia e outras deficiências mentais: no texto referido, o termo microcefalia não é sequer mencionado. Constitui-se uma solução técnica e pragmática, uma redução que despreza a totalidade dos fatores envolvidos. Ela ignora a possibilidade de se emergir uma resposta madura dos deficientes e seus familiares à fragilidade da vida.

O presente artigo não nasce de uma visão idealista alheia à experiência das pessoas. Como psicólogos, lidamos diariamente com o sofrimento humano e as realidades da vulnerabilidade social e a deficiência. Identificamo-nos com pessoas que não conseguem descobrir um caminho em meio à dor, sentem-se desesperadas e se angustiam pela falta de suporte. Entretanto, temos visto deficientes, mães e familiares aprendendo a reconhecer a força da vida em meio à fraqueza, descobrindo um horizonte grande e cheio de possibilidades, mesmo em meio aos limites e frustrações. Por isto cremos que o debate não deve focar-se no aborto: é preciso vislumbrar possibilidades de uma resposta que não nega a deficiência, mas que a inclui, mesmo sendo um posicionamento na fragilidade. Neste artigo, propomos que a concepção cristã da “força na fraqueza” gera um novo olhar à vulnerabilidade e deficiência; esta visão permite uma resposta a partir da fragilidade (e não contra ela) nos abrindo para a relação com os outros e com Deus.

Apesar de reconhecermos a necessidade de uma abordagem multidisciplinar pela complexidade dos desafios éticos contemporâneos, nosso enfoque é uma contribuição específica a um debate amplo: uma resposta cristã nutrida pelas experiências de acolhimento do sofrimento humano no trabalho psicológico.

O presente escondido da deficiência mental

Vivemos em momento histórico que despreza o fraco e a deficiência mental. Através dos avanços tecnológicos do século 21, a neurociência tem pesquisado o aumento da capacidade do cérebro. Diante dos projetos de “melhora humana”, o presente século tem aversão à deficiência cognitiva. Sem nos darmos conta, criamos nossos filhos para serem bons competidores no mercado de trabalho, e não os queremos limitados por deficiências de inteligência. A consequência é uma sociedade que exclui, inferioriza e nega o valor e o potencial do deficiente.

Apesar de muitas vezes serem vistas como fardos, pessoas com deficiência mental carregam um presente escondido. A microcefalia ou a síndrome de Down podem se tornar recursos pelo quais compreendemos que a capacidade da cabeça não determina a grandeza do coração. Nesta infinidade de possibilidades que a vida apresenta, deficientes mentais podem responder de maneira madura aos seus relacionamentos e na sua vinculação com o mundo. E mesmo naqueles em que o retardo mental é severo, o presente escondido permanece: por se comunicarem prioritariamente em afeto e não entrarem na mentalidade da performance, da capacidade cognitiva que valoriza a produtividade, eles subvertem a lógica desumanizadora que despreza a vulnerabilidade. Os deficientes tem uma capacidade profunda de receber afeto, e assim compreendem o amor incondicional de Deus, que não se baseia no mérito. Eles nos ensinam a ver a fraqueza como graça, e a perseverar sem desprezar a deficiência, mas acolhe-la como um dom.

A necessidade da afirmação da potencialidade do deficiente mental não exclui os limites e as impossibilidades. Porém ela nos instiga a pensar que a vulnerabilidade carrega uma espera. Vulnerabilidade significa que a vida não está programada, permanece aberta e precisa ser cuidada. As famílias de crianças com deficiências tem uma oportunidade de descobrirem o mistério do amor nascido na fraqueza.

Temos prestado um desserviço como cristãos ao encorajar, sem qualquer reflexão, a lógica da vitória/cura sobre o sofrimento, sem atentar para as questões da vulnerabilidade, da limitação e principalmente do Deus que nos sustenta de maneira constante enquanto convivemos com a dor, nos trazendo cura para fragilidades que não conseguimos “nomear”. Nos esquecemos de que o milagre mais importante é Deus fazer brotar em nós um amor incondicional e doador pelos filhos nas suas deficiências.

A pessoa como um dom relacional e o desafio de uma vida não nascida

O conceito de “pessoa” está no centro dos desafios éticos atuais. Na tradição ocidental, enfatizou-se “pessoa” ora como alguém dotado de capacidade cognitiva-racional, um indivíduo independente; ora a partir da relação, um ser presenteado por um outro. No caso da permissão para o aborto no caso de anencefalia, concedida pelo Supremo Tribunal Federal em 2012, o ministro Marco Aurélio Mello utilizou a concepção de pessoa a partir da capacidade cognitiva, em moldes jurídicos (sujeito de direitos), indivíduos produtivos que participam da vida social: “não há possibilidade de desenvolvimento da massa encefálica em momento posterior. O anencéfalo jamais se transformará em uma pessoa.” Diante dos debates atuais, é necessário redescobrir a tradição da segunda concepção, a pessoa humana como um presente relacional. Na visão cristã, o conceito de pessoa inclui a capacidade racional, mas vai além dela: na Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo são pessoas, no qual um é para o outro doador, o receptor e o presente.

O conceito de pessoa pode ser compreendido a partir da relação, pois até mesmo uma criança com poucos instantes de vida já incide sobre a família e a marca. Sua existência, mesmo intrauterina, já é um acontecimento que desperta nos pais a vinculação e a doação afetiva. O livro de Sarah Williams (“The Shaming of the Strong: the challenge of an unborn life”) é o testemunho pessoal da Sarah sobre sua terceira gestação, de sua filha que foi diagnosticada com uma “patologia incompatível com a vida”. Ela foi aconselhada a abortar (por todos os médicos), mas optou por levar a gestação até o final. A bebê viveu até o final da gestação, mas nasceu morta. Sarah descreve todo o processo, gestação, nomeação da criança, papel dela na constituição familiar e o turbilhão de sofrimento, sentimentos e transformações que ocorreram em sua família e contextos relacionais mais amplos. “Mas Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios, e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes”. (1 Coríntios 1.27)

Durante a gestação, Sarah meditou por dois meses no Salmo 139. “Tu viste o meu embrião; os Teus olhos me viram substância ainda informe, quando no oculto fui formado” diz o salmista.

Sarah escreve:

“Se este texto é verdade, então Deus sonhou e amou minha filha como sugere o versículo. Isso tem implicações profundas sobre meu conceito de ‘normalidade’ e principalmente para meu papel de mãe, minha relação com Deus e com minha filha. Eu queria um bebê para segurar, uma criança para brincar e ensinar, para estar de acordo com meus sonhos e projeto de família e preencher algumas das minhas ambições. Eu não queria um bebê deformado e certamente não queria um bebê morto. Deus começou a me desafiar: e se a definição de vida de Deus é diferente da minha? E se o destino deste bebê é passar toda a eternidade com Deus? E se os dias que Ele ordenou para ela não incluírem um aniversário? Será que estes dias foram menos preciosos ou sem significado? E se meu papel na relação com ela, de mãe e filha, é cooperar para que os sonhos de Deus para esta criança sejam concretizados? E se o trabalho que Deus me deu foi o de nutrir sua vida e prepará-la para o céu, mantendo uma postura de oração e adoração ao Pai para familiarizá-la com a doce presença do Pai do céu, para onde ela iria em breve?” 1

A experiência da hospitalidade radical aos filhos

Partindo da visão bíblica, somos ensinados que filhos são bênçãos de Deus e promovem profundas transformações de perspectiva, independente do tempo de duração na qual esta relação entre pais e filhos ocorre. Filhos promovem aprofundamento e extensão da comunidade do amor que Deus idealizou. A família, seja ela nuclear ou comunidade, será o ambiente no qual podem se desenvolver, aprofundando seu caráter para a vida e o serviço a Deus.

Em uma época na qual palavras como “felicidade”, “sucesso”, “auto-realização” norteiam a maneira pela as pessoas balizam suas vidas, se relacionam, trabalham e desenvolvem, os esforços tendem a se voltarem para um caminho de individualismo. Concepções autocentradas de conceitos como autonomia e liberdade estão tão arraigados no modo de vida contemporâneo que não temos encontrado espaço para refletir acerca do que maternidade e paternidade realmente representam como desafio e possibilidade.

Receber uma criança é o caminho de abandonar um estilo de vida individualista e permitir que a vida seja transformada de maneiras sobre as quais não se tem controle. Uma das razões pelas quais as pessoas já não têm enxergado filhos como presentes, mas como fardos, é a indisponibilidade de reorganizar vida e prioridades. Temem os efeitos e mudanças que podem causar em seus planos de realização pessoal e relacionamentos.

A sociedade de consumo tem ditado as regras e esta forma de enxergar a vida está impregnada em nossa maneira de pensar e tomar decisões. Os filhos podem ser vistos apenas como mais uma “tarefa a cumprir” na lista da vida adulta e seu desenvolvimento. Podem ser vistos apenas como uma meta na direção da realização pessoal assim como uma carreira bem sucedida, o carro do ano e o novo apartamento. Este contexto é espaço para que adultos considerem o fato de ter um filho como um direito na jornada da vida e não mais reconhecerem o amplo significado da maternidade e paternidade. Isto pode ser exemplificado com o crescente processo de escolha na separação de material genético e social, a amplificação de motivos pelos quais as crianças são concebidas e a compreensão da procriação apenas como reprodução, o que faz com que as crianças sejam vistas como produtos que podem ser manipulados com valores atribuídos.

Uma vez que os pais enxergam filhos com um olhar mercadológico na economia da vida, recai sobre eles a expectativa de um retorno do tempo e dinheiro investidos. Esta realidade transforma o conceito de filhos como presentes e os transforma apenas em fardos ou investimentos. Sob esta perspectiva, a maternidade e a paternidade responsável inclui estar consciente acerca de tudo o que significa trazer uma criança ao mundo, criando intencionalmente um contexto que permite o desenvolvimento dos filhos, sem reduzir ou ignorar os desafios reais que isso trará.

A maternidade e a paternidade de uma criança, com mais ou menos limitações, é a experiência da hospitalidade radical: assumir um compromisso de amor com alguém que não se conhece, por mais que se idealize. É na jornada que se dá a relação. É possibilidade de exercitar as virtudes cristãs no relacionamento como a misericórdia, paciência, perdão, humildade e tantas outras, num contínuo processo de crescimento mútuo. Este processo pode se aprofundar tanto no contexto mais específico da família quanto na família estendida, que é a comunidade cristã.

A comunidade cristã: crescendo no solo sagrado da vulnerabilidade

A comunidade cristã tem papel fundamental neste contexto. Ela estimula a reflexão sobre o que é ser humano à luz do paradigma Bíblico, incluindo vulnerabilidades físicas, emocionais e sociais. Cabe à comunidade também conhecer as questões bioéticas que se apresentam, promover possibilidades de relacionamento e oferecer amparo nas dificuldades. É na comunidade que as relações de afeto se aprofundam e na qual somos desafiados a viver na dependência de Deus e no amor ao próximo, para além de nossas limitações intelectuais, físicas, emocionais, sociais. Somos aperfeiçoados em nossas fraquezas, na relação com Deus e com o próximo.

A comunidade cristã tem em sua história uma longa tradição de serviços prestados no cuidado ao enfermo, ao pobre, ao fragilizado, e de tantas maneiras. Mas ainda encontramos desconforto em reconhecer e incluir o que apresenta suas fragilidades e deficiências físicas e emocionais como parte integrante do corpo de Cristo que tem muito a nos oferecer e abençoar. Como integrantes de um só corpo, quando sirvo ao que expõe sua fragilidade, também sou desafiado em minhas próprias debilidades. Sou comunidade com ele e nesta relação de afeto e crescimento somos moldados de maneira profunda sobre o significado da vida e o caráter relacional de Deus.

Seguimos juntos na direção das possíveis curas físicas e emocionais, mas nossas relações nos aprofundam em amor no “enquanto isso” e nos fortalecemos ao viver com nossas limitações. A diversidade da comunidade permite que sejamos forma visível de expressão da Graça de Deus uns aos outros. Dietrich Bonhoeffer afirma que “toda comunidade cristã precisa saber que a eliminação do frágil é a morte de uma comunidade”.2 Na vida comunitária e no compartilhar de nossas fragilidades, somos desafiados a lutar contra o orgulho, o ódio, a indiferença, a soberba e o individualismo. Enquanto Corpo de Cristo, somos encorajados a crescer em fé, esperança e amor, caminhando de maneira respeitosa no solo sagrado de nossas vulnerabilidades mútuas, de modo a cultivar um estilo de vida que encarna o amor de Deus.

Conclusão: Cristo escolheu a fragilidade

Somos constantemente tentados a abandonar aquilo que nos traz sofrimento, principalmente nossas deficiências indesejadas. Negamos ou encobrimos nossas falhas, nos esquivando da dor e da consciência das limitações. Porém, na perspectiva cristã, Deus nos ama e nos sustenta na vulnerabilidade, e assim somos inspirados a acolher o sofrimento como graça. Participamos dos sofrimentos de Cristo à luz da glória que há de ser revelada e reconhecemos os sinais da força de Deus na nossa fraqueza enquanto aguardamos a completa restauração.

A fé cristã continua afirmando um Deus da autolimitação, que renuncia seu poder. Um Deus que se encarna no espaço e no tempo, se esvazia da glória, e que ama o fraco a ponto de se encarnar para estar perto e sentir a sua dor. Para cuidar de alguém é preciso sentir com o outro, e o nosso Deus sabe o que é padecer. Se a dignidade humana aparece mais clara na sua debilidade, como na criança e no idoso, Cristo escolheu nascer como um vulnerável em uma família pobre da periferia do Império Romano. Jesus se apresenta ao mundo como uma criança sem lugar que espera ser cuidada. Em resposta ao evangelho, acolhemos os pequeninos em suas deficiências, afirmando que até mesmo Deus escolheu a fragilidade e espera nossa resposta de amor.

Stanley Hauerwas afirma que os cristãos não colocam sua esperança em seus filhos; pelo contrário, seus filhos são sinal da sua esperança. Ao corajosamente dizer sim à vida em toda sua vulnerabilidade, mesmo diante da dor e incertezas, os cristãos afirmam a convicção de que Deus não abandonou este mundo. É o amor de Deus derramado por meio do Espírito de Jesus que sustenta nossas frágeis iniciativas de cuidado. Porque confiamos Nele, encontramos força na fraqueza e respondemos com fé, amor e esperança para acolher a vulnerabilidade e as deficiências de uma nova vida.


Notas:
1. Sarah Williams, “The Shaming of the Strong: the Challenge of an unborn life”
2. Dietrich Bonhoeffer, Vida em Comunhão, p. 98.
* DOSSIÊ é uma nova seção do Portal Ultimato em que damos espaço para textos mais longos, com aprofundamento maior de questões.
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