Filosofia da Tecnologia – Breve introdução à tradição transcendentalista (Parte 02)

A Filosofia Existencial da Tecnologia de Karl Jaspers

por Breno Perdigão

No texto anterior tivemos a oportunidade de examinar brevemente o pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger. Nesta segunda parte, passaremos a analisar as principais ideias do psiquiatra e filósofo Karl Jaspers que, ao lado de Heidegger nos concede excelentes conceitos para o processo de análise da tecnologia no contexto da sociedade industrial. Como “resultado das diversas transformações sociais promovidas pela Segunda Revolução Industrial, a presença ontológica da tecnologia é tema recorrente na filosofia no início do século XX. ” [1]. Dentre os principais pensadores contemporâneos de Jaspers, encontramos nomes como o próprio Martin Heidegger, John Dewey, Lewis Mumford, e José Ortega y Gasset.

Karl Jaspers, nascido na cidade de Oldenburg, na Alemanha, em 23 de fevereiro de 1883, tornou-se um dos mais importantes representantes da filosofia existencial, desenvolvendo também uma filosofia existencial da tecnologia. Ele morreu em Basel, na Suíça, em 26 de fevereiro de 1969. Seu trabalho ainda é de extrema relevância para os campos de pesquisa da Filosofia da Tecnologia, especialmente pelo fato de incorporar elementos tanto do Determinismo quanto do Instrumentalismo.

Para uma melhor compreensão da abrangência dos escritos de Jaspers, é necessário inicialmente um entendimento dos termos relacionados à classificação dos estudos de tecnologia. De acordo com o professor Luiz Adriano Borges, um dos autores que alcançou êxito na elaboração de uma classificação destes estudos foi Andrew Feenberg em seu livro “Questioning Technology” (1999).

“Segundo o autor, podemos pensar em dois eixos, com as teorias diferindo no que diz respeito ao papel da ação humana na esfera técnica e a neutralidade dos meios técnicos. O senso comum assume tanto a possibilidade do controle humano, quanto a neutralidade da tecnologia. ”[2]

Em um extremo desta classificação está a posição do “determinismo tecnológico” alegando que a tecnologia impacta na cultura de uma maneira unilateral ou determinista. Nesta visão, as tecnologias são vistas como onipotentes, carregando consigo consequências morais e produzindo efeitos deterministas através de forças não-neutras. Além dos efeitos desta força na totalidade da sociedade, alguns defensores extremistas do determinismo tecnológico asseveram que a tecnologia possui uma força autônoma que conduz e determina o próprio desenvolvimento técnico. [2]

No outro extremo do sistema de classificação adotado, está localizado o instrumentalismo ou também chamado de “determinismo social”. Instrumentalistas se referem à tecnologia como um artefato que pode ser usado para o bem ou para o mal, de acordo com os anseios e volições do próprio indivíduo ou cultura que acomodam tal tecnologia.

No quadro abaixo podemos ver a disposição de cada uma das posições conforme elaborado por Feenberg:

Quadro 1. Variedades de teoria por Andrew Feenberg (adaptado por Luiz Adriano Borges)

 

 

 

 

Fonte: FEENBERG, 1999, p. 9. [3]

 

No decorrer da análise da atual sociedade tecnológica com seus fenômenos próprios e suas transformações podem surgir algumas perguntas extremamente pertinentes. Neste novo cenário, a tecnologia traz consigo novas normas, obrigações e responsabilidades que são examinadas por Karl Jaspers no decorrer do desenvolvimento de uma análise existencial da tecnologia que ocorre em duas fases distintas.

 

 

Uma concepção inicial – O demonismo da tecnologia

A concepção inicial de Jaspers da tecnologia, apresentada no livro “Man in the Modern Age” (1931), tem início com uma visão altamente determinista e negativa da tecnologia girando em torno da transformação da sociedade humana em uma cultura massificada e mecanizada. [4] A sociedade se torna uma máquina em si, descrita por Jaspers como “The Apparatus”. [5] A partir desta concepção, a tecnologia nos conduz a uma cultura de massa afastando os seres humanos de si mesmos, tornando-os idênticos uns aos outros, sem autenticidade.

De acordo com Peter-Paul Verbeek, devido à grande dependência da tecnologia, isso passa a requerer a mecanização do trabalho que precede e fundamenta em uma sociedade organizada como uma máquina, um aparato no qual os homens já não podem mais viver como indivíduos autênticos, mas apenas como cumpridores de uma função [4]. O ser humano se tornou a engrenagem de uma máquina tecnológica. Este fenômeno é denominado de demonismo da tecnologia. Para Jaspers, o demonismo da tecnologia pode ser descrito como uma revolta da tecnologia enquanto potência independente, que havia sido convocada pelos seres humanos. [6]

A própria organização da vida diária é cada dia mais determinada por este aparato de trabalhadores, máquinas e burocracia sendo submetida a dois efeitos diferentes, mas relacionados. Em primeiro lugar, o sistema de produção em massa promove a homogeneização do ambiente material em que os seres humanos vivem. Segundo, este aparato começa a abordar os seres humanos não como indivíduos únicos, mas como cumpridores de funções intercambiáveis.

“Ambos os efeitos da transformação tecnológica da sociedade impedem que os seres humanos estejam presentes como existências autênticas e vivam autenticamente e em proximidade existencial com o mundo ao seu redor. “[5]

Em suma, nesta concepção inicial, a tecnologia transforma a sociedade humana em uma cultura de massa, alienando os seres humanos de si mesmos e do mundo ao seu redor.

A Segunda Guerra Mundial e a neutralidade tecnológica

A tecnologia é neutra ou determina nosso mundo? Esta é uma pergunta que, como vimos, permeia a maior parte das discussões da filosofia da tecnologia e sofreu considerável alteração no pensamento de Karl Jaspers após a Segunda Guerra Mundial e foi fundamental para a segunda fase de seu pensamento. Este lamentável, porém, importante momento da história trouxe de volta o medo primitivo de artefatos tecnológicos que se evadissem do controle de seus desenvolvedores.

“Impressionado pelos efeitos da bomba atômica, Karl Jaspers, no ensaio “The Atom Bomb and the Future of Man” (1961), alerta para a capacidade tecnológica de colocar a existência humana em risco. Para superar seu demonismo seria necessário perceber a tecnologia, em última instância, como uma coleção de meios, neutros em si, utilizados para fins determinados por nós. De acordo com Jaspers, a humanidade precisaria questionar-se a respeito do que pretende fazer com a tecnologia para definir seu futuro. A declaração de Jaspers é importante para levar em conta que a influência dos artefatos tecnológicos no comportamento humano não pode ser simplificada e resumida, pois tais artefatos não se restringem a instrumentos passivos a serem usados livremente para satisfazer propósitos moralmente bons ou perversos. Objetos tecnológicos são a materialização de intenções e, como tal, representam um papel muito ativo na definição da condição humana. Eles influenciam ativamente as ações de seus usuários, mudando a maneira como percebem o mundo e como interagem uns com os outros na construção de contextos. ” [1]

Em vez de encarar a tecnologia como uma ameaça à existência humana autêntica, como nos momentos anteriores à guerra, nos livros “The origin and goal of history” (1949) e “The Atom Bomb and the Future of Man” (1958), Jaspers conclui que a tecnologia é, em última análise, neutra ou não mais que um meio para os objetivos humanos, uma vez que a mesma é incapaz de gerar seus próprios objetivos [5]. Essa neutralidade impacta diretamente na questão da responsabilidade. Sendo requerida uma orientação humana para a tecnologia, os seres humanos são tidos como responsáveis pelo que eles fazem com a mesma. Nesta perspectiva, a tarefa dos seres humanos é reafirmar a sua soberania sobre a tecnologia.

Em relação ao problema do demonismo, de maneira especial depois da guerra, Jaspers chegou à conclusão de que nós mesmos convocamos este demônio. A tecnologia passa agora a ser compreendida em termos dos seus próprios limites, daquilo que se encontra fora do seu poder e escopo de atuação. Ele afirma que um dos limites mais importantes da tecnologia é que esta é um meio, não um fim.  “A tecnologia não pode estabelecer seus próprios objetivos. ” [4]. Nesta nova visão, o demonismo da tecnologia vem do fato de que tratamos a tecnologia como um fim em si mesma.

Em última análise, diz Jaspers, a tecnologia é neutra e necessita de uma orientação, entretanto, apenas podemos orientá-la a partir da razão e, com isto, recuperar a soberania sobre a própria tecnologia. Nós podemos estar no comando novamente, mas para isto precisamos estar conscientes de que a tecnologia é o meio para um determinado fim, sendo nosso dever definir os fins pretendidos.

A nova concepção de Jaspers permitiu-lhe discernir não apenas um lado ameaçador da tecnologia, mas também maneiras pelas quais poderemos abrir novas possibilidades existenciais. Dentre estas maneiras, pode-se incluir uma nova proximidade com a realidade pela compreensão das leis da natureza que fundamentam o funcionamento da tecnologia, o reconhecimento da beleza das construções tecnológicas e, desta forma, fazer uso das possibilidades abertas pelas tecnologias que permitem aos seres humanos experimentarem a Terra como um todo, onde possam sentir-se responsáveis. [4]. A neutralidade tecnológica, na visão de Jaspers, torna os humanos responsáveis pelo que eles fazem da tecnologia, requerendo uma direção humana. [7]

Em seu pensamento mais maduro, Karl Jaspers concluiu que a tecnologia é neutra, ou tão somente um fim para os objetivos humanos sendo incapaz de gerar seus próprios objetivos.

Este posicionamento filosófico recebeu diversas críticas de autores fundamentados no argumento de que “não existem atitudes completamente neutras para com a ciência e a tecnologia. ” [8]

Muitas vezes as tecnologias fazem muito mais do que apenas aquilo que os seres humanos pretendiam ao projetá-las. Os carros, por exemplo, mudaram o layout das nossas cidades, moldaram a separação entre trabalho e lazer, permitindo que vivamos distantes do nosso local de trabalho. Como assegurado pelo professor Hendrik Van Riessen:

“Ainda que a ciência seja livre de certos elementos subjetivos e os transcenda, ela nunca será livre da fé do cientista. ” [9]

Questões morais, éticas, políticas e até mesmo religiosas sempre estão na base de todo artefato tecnológico, ideia científica ou qualquer outra atividade humana. Não podemos reduzir as tecnologias às intenções que os humanos colocaram nelas, assim como não podemos reduzir as tecnologias ao sistema de produção em massa por trás delas.


Referências

[1] RADFAHRER, Luli. O meio é a mediação: uma visão pós-fenomenológica da mediação datacrática. Matriz, São Paulo, Ano I, Fascículo 12, p. 131-153, Jan./Abr. 2018.

[2] BORGES, Luiz Adriano Gonçalves. Clio encontra Prometeu e Hefesto: classificando estudos de ciência, tecnologia e Sociedade e a perspectiva cristã. Coletânea, Rio de Janeiro, Ano XV, Fascículo 30, p. 311-324, Jul./Dez. 2016.

[3] FEENBERG, Andrew. Questioning technology. London: Routledge, 1999.

[4] Verbeek, Peter-Paul. The existential philosophy of Karl Jaspers. 2017. Aula ministrada no Curso Philosophy of Technology and Design da Universidade Técnica de Delft.

[5] Mitcham, Carl, organizador. Encyclopedia of science, technology, and ethics. Macmillan Reference USA, 2005.

[6] Jaspers, K. (1931). Die geistige Situation der Zeit. Berlim: Göschen (banda 1000). Tradução: Man in the Modern Age (1957), Garden City, NY: Doubleday.

[7] VERBEEK, Peter-Paul. Technology and the self. 2005.

[8] BORGES, Luiz Adriano Gonçalves. Ciência, tecnologia e cristianismo na obra de C. S. Lewis.

[9] RIESSEN, Hendrik Van. Enfoque cristiano de la ciencia. Barcelona: FELIRE, 1996.

 

 

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