A Ciência e a Alma

Michael Egnor / Tradução: Tiago Pereira

Publicado originalmente em18No. 17 “The Soul of Medicine” (Summer 2018)

 

Eu assisti às imagens da tomografia computadorizada aparecerem na tela, uma por uma. A cabeça do bebê estava quase vazia. Havia apenas finas lascas de cérebro – um pouco de tecido cerebral na base do crânio e um fino aro nas bordas. O resto era água.

Seus pais temiam isso. Nós vimos no ultrassom pré-natal; a tomografia computadorizada, horas após o nascimento, era muito mais precisa. Katie parecia um recém-nascido normal, mas tinha pouca chance de uma vida normal. Ela tinha uma irmã gêmea fraterna na incubadora ao seu lado. Mas Katie só tinha um terço do cérebro que sua irmã tinha. Expliquei tudo isso para a família, tentando manter vivo um lampejo de esperança para a filha deles.

Eu cuidei de Katie conforme ela foi crescendo. Em todas as fases da sua vida até agora, ela se destacou. Ela sentou-se, falou e andou mais cedo do que a irmã. Ela se destacou com honras, e logo vai se formar no ensino médio.

Eu tive outros pacientes cujos cérebros ficaram muito aquém das suas mentes. Maria tinha apenas dois terços de um cérebro. Ela precisou de algumas operações para drenar o líquido, mas ela se desenvolveu. Ela acabou de terminar seu mestrado em literatura inglesa e é uma musicista conhecida. Jesse nasceu com a cabeça em forma de bola de futebol-americano e com a metade cheia de água – os médicos disseram à mãe para deixá-lo morrer no parto. Ela desobedeceu. Ele é um adolescente normal e feliz, adora esportes e usa cabelos longos.

Algumas pessoas com cérebros deficientes são profundamente limitadas. Mas nem todas são. Eu atendi e tratei de muitas crianças que crescem com cérebros deficientes, mas mentes que progridem. Como isso é possível? A neurociência, e Tomás de Aquino, apontam para a resposta.

A mente é mecânica?

Como estudante de medicina, me apaixonei pelo cérebro. É um órgão assustador: um conjunto de células, axônios, núcleos e lobos dobrados e comprimidos em formas exóticas. Eu tive que aprender como ele se parecia quando era cortado por tomografias computadorizadas, e então, como se parecia quando eu o seccionava. Meu fascínio pela neuroanatomia era metafísico: era dali que vinham nossos pensamentos e decisões, era um mapa do eu humano, e eu estava aprendendo a lê-lo como eu lia um livro. Era a verdade sobre nós, pensava.

Mas eu estava errado. Katie me fez encarar o meu equívoco. Ela era uma pessoa completa. A criança em meu consultório não foi mapeada de forma significativa no exame de seu cérebro ou no diagrama do meu livro de neuroanatomia. O mapa estava errado.

Como a mente se relaciona com o cérebro? Esta questão é central para minha vida profissional. Eu achava que tinha uma resposta. No entanto, um século de pesquisa e 30 anos de minha própria prática neurocirúrgica desafiaram tudo o que eu achava que sabia.

A visão adotada por aqueles que me ensinaram diz que a mente é inteiramente um produto do cérebro, que é entendido como algo parecido com uma máquina. Francis Crick, um neurocientista e ganhador do Nobel que foi o co-descobridor da estrutura do DNA, escreveu que “as atividades mentais de uma pessoa são inteiramente devidas ao comportamento de células nervosas, células da glia e os átomos, íons e moléculas que as constituem e as controlam.”

Esta filosofia mecânica é o resultado de dois passos. Começou com René Descartes, que argumentou que a mente e o cérebro eram substâncias separadas, imaterial e material. De alguma forma (como, nem Descartes nem ninguém pode dizer), a mente está ligada ao cérebro – é o fantasma na máquina.

Entretanto, conforme a abordagem de Francis Bacon para entender o mundo se destacava durante o Iluminismo científico, tornou-se uma tendência limitar a investigação sobre o mundo às substâncias físicas: estudar a máquina e ignorar o fantasma. A matéria era acessível, e nós a estudamos obsessivamente. O fantasma foi ignorado e depois negado. Foi isso que a lógica do materialismo exigiu.

O materialista insiste que somos escravos de nossos neurônios, sem genuíno livre-arbítrio. O materialismo veio em diferentes formas, cada uma sendo adotada e, em seguida, caindo em desuso ao longo do século passado, à medida que sua insuficiência se tornava aparente. Os behavioristas afirmavam que a mente, se é que existe, é irrelevante. Tudo o que importa é o que é observável – entrada e saída. No entanto, o behaviorismo está em declínio, porque é difícil negar a relevância da mente para a neurociência.

A teoria da identidade, substituindo o behaviorismo, sustentava que a mente é apenas o cérebro. Pensamentos e sensações são exatamente a mesma coisa que tecido cerebral e neurotransmissores, entendidos de forma diferente. A dor que você sente em seu dedo é idêntica aos impulsos nervosos em seu braço e em seu cérebro. Mas, certamente, isso não é verdade. A dor dói e os impulsos nervosos são elétricos e químicos. Eles nem são similares. Os teóricos da identidade lutaram contra uma realidade relutante durante uma geração, e então desistiram.

O funcionalismo computacional veio em seguida: o cérebro é hardware e a mente é software. Mas isso também tem problemas. O filósofo alemão do século XIX Franz Brentano apontou que a única coisa que absolutamente distingue os pensamentos da matéria é que os pensamentos são sempre sobre algo, e a matéria nunca é sobre alguma coisa. Essa intencionalidade[1] é a marca da mente. Todo pensamento tem um significado. Nenhuma coisa material tem significado.

A computação é o mapeamento de uma entrada para uma saída de acordo com um algoritmo, independentemente do significado. A computação não tem intencionalidade; é a antítese do pensamento.

Neurociência e Metafísica

Notavelmente, a neurociência nos diz três coisas sobre a mente: a mente é metafisicamente simples, o intelecto e a vontade são imateriais, e o livre-arbítrio é real.

Em meados do século XX, neurocirurgiões descobriram que podiam tratar um certo tipo de epilepsia cortando um grande feixe de fibras cerebrais, chamado corpo caloso, que conecta os dois hemisférios do cérebro. Após essas operações, cada hemisfério funcionava de forma independente. Mas o que aconteceu com a mente de uma pessoa com o cérebro partido ao meio?

O neurocientista Roger Sperry estudou dezenas de pacientes com o cérebro dividido. Ele descobriu, surpreendentemente, que na vida cotidiana os pacientes apresentavam pouca alteração. Cada paciente ainda era uma pessoa. O intelecto e a vontade – a capacidade de ter pensamentos abstratos e de escolher – permaneceram unificados. Somente por meio de testes meticulosos Sperry encontrou algumas diferenças: suas percepções foram alteradas pela cirurgia. As sensações – provocadas pelo toque ou pela visão – poderiam ser apresentadas a um hemisfério do cérebro e não ser experimentadas no outro hemisfério. A produção de fala está associada ao hemisfério esquerdo do cérebro; os pacientes não conseguiam nomear um objeto apresentado para o hemisfério direito (através do campo visual esquerdo). No entanto, eles podiam apontar para o objeto com a mão esquerda (que é controlada pelo hemisfério direito). O resultado mais notável do trabalho vencedor do Prêmio Nobel de Sperry foi que o intelecto e a vontade da pessoa – o que poderíamos chamar de alma – permaneceram indivisíveis.

O cérebro pode ser cortado ao meio, mas o intelecto e a vontade não podem. O intelecto e a vontade são metafisicamente simples.

Um dos neurocirurgiões pioneiros da calosotomia para pacientes com epilepsia foi Wilder Penfield, que trabalhou em Montreal em meados do século XX. Penfield estudou os cérebros e mentes dos pacientes epilépticos de uma maneira extraordinariamente direta, no decurso de seus tratamentos. Ele realizava cirurgias em pessoas que estavam acordadas. O próprio cérebro não sente dor, e os anestésicos locais entorpecem o couro cabeludo e o crânio o suficiente para permitir uma cirurgia cerebral indolor. Penfield pediu-lhes para fazer e pensar coisas enquanto ele estava observando e estimulando ou inibindo temporariamente regiões de seus cérebros. Duas coisas o surpreenderam.

Primeiro, ele notou algo sobre as convulsões. Ele poderia causar convulsões estimulando o cérebro. Um paciente poderia sacudir o braço, sentir formigamento, ver flashes de luz ou até mesmo ter lembranças. Mas o que ele nunca conseguia fazer era causar uma convulsão intelectual: o paciente nunca raciocinava quando seu cérebro era estimulado. O paciente nunca contemplou a misericórdia, lamentou a injustiça ou calculou derivadas em resposta à estimulação cerebral. Se o cérebro como um todo dá origem à mente, por que não há convulsões intelectuais?

Em segundo lugar, Penfield observou que os pacientes sempre sabiam que o movimento ou a sensação provocada pela estimulação cerebral eram feitos a eles, mas não por eles. Quando Penfield estimulou a área do braço do cérebro, os pacientes sempre diziam: “Você fez meu braço se mover” e nunca “Eu movi meu braço”. Os pacientes sempre mantinham uma consciência correta da ação. Havia uma parte do paciente – a vontade – que Penfield não conseguia alcançar com o eletrodo.

Penfield começou sua carreira como um materialista. Ele terminou sua carreira como um dualista entusiasmado. Ele insistia que há um aspecto do eu – o intelecto e a vontade – que não é o cérebro, e que não pode ser evocado pela estimulação do cérebro.

Algumas das pesquisas mais fascinantes sobre consciência foram feitas pelo contemporâneo de Penfield, Benjamin Libet, na Universidade da Califórnia, em São Francisco. Libet perguntou: O que acontece no cérebro quando pensamos? Como os sinais elétricos no cérebro estão relacionados aos nossos pensamentos? Ele estava particularmente interessado no tempo das ondas cerebrais e pensamentos. Uma onda cerebral acontecia no mesmo momento que o pensamento, ou antes, ou depois?

Foi uma pergunta difícil de responder. Não era difícil medir mudanças elétricas no cérebro: isso poderia ser feito rotineiramente por eletrodos no couro cabeludo, e Libet obteve apoio de neurocirurgiões para permitir que ele registrasse sinais profundos no cérebro enquanto pacientes estivessem acordados. O desafio que Libet enfrentou foi medir com precisão o intervalo de tempo entre os sinais e os pensamentos. Mas os sinais duram apenas alguns milissegundos, e como você pode calcular um pensamento com esse tipo de precisão?

Libet começou escolhendo um pensamento muito simples: a decisão de apertar um botão. Ele modificou um osciloscópio de modo que um ponto circulasse a tela uma vez a cada segundo, e quando a pessoa decidisse apertar o botão, ele ou ela anotaria a localização do ponto no momento da decisão. Libet mediu o tempo da decisão e o tempo das ondas cerebrais de muitos voluntários com precisão de dezenas de milissegundos. Consistentemente, ele constatou que a decisão consciente de apertar o botão era precedida por cerca de meio segundo por uma onda cerebral, o que ele chamou de potencial de prontidão. Então, meio segundo depois, a pessoa tomava consciência de sua decisão. A princípio, os indivíduos aparentemente não eram livres; seus cérebros tomaram a decisão de mover e eles obedeceram.

Mas Libet examinou mais profundamente. Ele pediu a seus pacientes que vetassem sua decisão imediatamente após terem decidido – não apertar o botão. Mais uma vez, o potencial de prontidão apareceu meio segundo antes da percepção consciente da decisão de apertar o botão, mas Libet descobriu que o veto – ele o chamou de “livre não”[2] – não tinha uma onda cerebral correspondente a ele.

O cérebro, então, tem atividade que corresponde a um impulso pré-consciente de fazer alguma coisa. Mas nós somos livres para vetar ou aceitar esse impulso. Os motivos são materiais. O veto, e implicitamente a aceitação, é um ato imaterial da vontade.

Libet observou a correspondência entre seus experimentos e a compreensão religiosa tradicional dos seres humanos. Somos, disse ele, cercados por um mar de predisposições, correspondendo à atividade material em nossos cérebros, a qual temos a livre escolha de rejeitar ou aceitar. É difícil não ler isto em termos mais familiares: somos tentados pelo pecado, mas somos livres para escolher.

A abordagem para compreender o mundo e nós mesmos que foi substituída pelo materialismo era a da metafísica clássica. O investigador e professor mais notável desta tradição foi São Tomás de Aquino. Seguindo Aristóteles, Aquino escreveu que a alma humana tem tipos distintos de habilidades. Os poderes vegetativos, compartilhados por plantas e animais, servem para o crescimento, a nutrição e o metabolismo. Os poderes sensíveis, compartilhados com animais, incluem percepção, paixões e locomoção. Os poderes vegetativos e sensíveis são habilidades materiais do cérebro.

No entanto, os seres humanos têm dois poderes da alma que não são materiais – intelecto e vontade. Estes transcendem a matéria. Eles são os meios pelos quais raciocinamos e pelos quais escolhemos com base na razão. Somos compostos de matéria e espírito. Temos almas espirituais.

Aquino não ficaria surpreso com os resultados das investigações desses pesquisadores.

O que está em jogo

O filósofo Roger Scruton escreveu que a neurociência contemporânea é “uma vasta coleção de respostas sem nenhuma memória das perguntas”. O materialismo limitou os tipos de questões que podemos perguntar, mas a neurociência, conduzida sem um viés materialista, aponta para a realidade de que somos quimeras: seres materiais com almas imateriais.

Como nossas vidas ou nossa sociedade seriam diferentes se descobríssemos que nossa mente fosse meramente o produto de nosso cérebro material – e que todas as nossas decisões fossem determinadas, sem livre arbítrio?

A pedra angular do totalitarismo, segundo Hannah Arendt, é a negação do livre arbítrio. Sob as visões do comunismo e do nazismo, somos meros instrumentos de forças históricas, não agentes individuais livres que podem escolher o bem ou o mal.

Sem livre arbítrio, não podemos ser culpados em um sentido individual. Mas também não podemos ser inocentes. Nem os judeus sob Hitler nem os agricultores culaques sob Stalin foram mortos porque eram individualmente culpados. A culpa foi atribuída a eles de acordo com seu tipo e, assim, foram exterminados para acelerar um processo natural, fosse a purificação da raça ou a ditadura do proletariado.

Em contraste, a compreensão clássica da natureza humana é que somos seres livres e não sujeitos ao determinismo. Esse entendimento é a base indispensável para a liberdade e dignidade humanas. É indispensável, também, para simplesmente dar sentido ao mundo à nossa volta: entre outras coisas, para dar sentido a Katie.

Eu a vejo no meu escritório a cada ano. Ela está prosperando: obstinada e brilhante. Sua mãe está exasperada e, depois de dezessete anos, ainda se surpreende. Eu também.

Há muito sobre o cérebro e a mente que eu não entendo. Mas a neurociência conta uma história consistente. Há uma parte da mente de Katie que não é o seu cérebro. Ela é mais que isso. Ela pode raciocinar e ela pode escolher. Há uma parte dela que é imaterial – a parte que Sperry não conseguiu dividir, que Penfield não conseguiu alcançar e que Libet não conseguiu encontrar com seus eletrodos. Há uma parte de Katie que não apareceu nas tomografias quando ela nasceu.

Katie, como você e eu, tem uma alma.

 

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Michael Egnor, MD, é neurocirurgião e professor de cirurgia neurológica e pediatria na Stony Brook University.

Traduzido do inglês, “Science and the Soul,” publicado originalmente em Plough Quarterly No. 17 “The Soul of Medicine” (Summer 2018). Copyright © 2018 pela Plough Publishing House. Postado com permissão.

[1] N.T.: No original: “Aboutness”. Apesar de não haver correspondência em português e ser utilizado com diferentes significados em diferentes áreas do conhecimento, na filosofia da mente, o termo tem sido frequentemente considerado sinônimo de intencionalidade.

[2] N.T.: No original: “free won’t”, um jogo de palavras com “free will”, o livre arbítrio.

 

 

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