Por um desenvolvimento normativo e sustentável

Por Breno Oliveira Perdigão

A Agropecuária e a Ecologia

O trabalho e estudo da agropecuária pode ser definido, de forma básica, como a teoria e prática da agricultura e da pecuária, em uma relação recíproca, sendo uma das áreas do setor primário responsável pela produção de bens de consumo, constando entre os domínios mais antigos, duradouros e fundamentais da tecnologia, estando, desta forma, sujeita à reflexão técnica. [3]

As mais variadas culturas cultivadas pelos agricultores, juntamente com os sistemas desenvolvidos para cultivo o solo, aplicação da água, controle de ervas daninhas e outras pragas, colheita, armazenamento e distribuição dos produtos agrícolas, devem ser compreendidos como artefatos tecnológicos. A inovação técnica na prática do trabalho agropecuário tem sido contínua ao longo da história humana e o simples ato de cultivar plantas e domesticar animais marca um avanço técnico fundamental. 

Em qualquer interpretação ampla da tecnologia, a agricultura é fundamentalmente uma atividade tecnológica, e uma abordagem tecnicamente sofisticada à produção, colheita e distribuição de alimentos como uma característica de todas as civilizações. [3]

Segundo o pensamento apresentado pelo doutor Petrus Simons, podemos esboçar as principais características da complexidade da agropecuária tendo como fundamento as modalidades distinguidas pela filosofia reformacional de Herman Dooyeweerd, conforme a tabela a seguir: [4]

Tabela 1- Análise Modal Petrus Simons (adaptado)

Modalidade ou Esfera da Lei Aplicado à agricultura / agropecuária
Numérico Uma fazenda é uma unidade, composta de muitas partes
Espacial Ocupa um espaço que se localiza dentro de um espaço ecológico. As várias partes da fazenda são um todo coerente.
Cinemático As fazendas podem persistir ao longo do tempo e estão sujeitas a ritmos e ciclos naturais, incluindo ciclos de negócios.
Físico Fazendas dependem de fluxos de energia natural e humana. Esses fluxos são transformados em fluxos de produção de plantas e animais. Há sempre interação entre o que acontece na fazenda e o ecossistema no qual está localizado.
Biótico As plantas são uma chave para o manejo do solo, alimentos para animais e como base para as produções vendáveis.
Psíquico/ Sensitivo Os animais são inseridos em fazendas de várias maneiras. Os agricultores devem observar o desempenho de solos, plantas e animais, bem como indicadores ambientais e econômicos.
Analítico A observância é a chave para a análise do desempenho de uma fazenda em relação aos padrões planejados.
Formativo Plantas, animais, edifícios, implementos são tecnicamente formados.
Linguístico Os agricultores se comunicam com assessores, processadores, financiadores e clientes. 
Social Fazendas são incorporadas em redes sociais de amigos, clientes, consultores etc.
Econômico Uma fazenda deve produzir um excedente de produtos para venda a preços lucrativos.
Estético Existem estilos de agricultura, como monoculturas e agricultura familiar. As formas de operação dos edifícios e tratamento animal, podem ser atraente ou repugnante.
Jurídico A fazenda está sujeita a obrigações contratuais, leis estaduais, regras de propriedade.
Ético As fazendas devem ser administradas com amor por animais, pessoas necessitadas, funcionários e gerações futuras.
Pístico A confiança nas metodologias adotadas e no crescimento e desenvolvimento das plantas e animais.

Assim, a grande dificuldade do empreendimento agrícola se encontra no caráter envolvente da mesma em relação à sua interferência com a natureza, gerando algumas vezes, respostas ecológicas que podem ser indesejáveis ​​para o seu sucesso a longo prazo, como secas e inundações que apresentam efeitos devastadores na agricultura. [4]

Uma breve análise do desenvolvimento da agropecuária moderna e da ecologia

Ao longo dos séculos, diferentes métodos, objetivos e abordagens quanto ao desenvolvimento do trabalho agropecuário foram adotados com base em convicções pessoais e comunitárias, valores e crenças. Desta forma, temos a agricultura modernista, a agricultura pragmática, a agricultura orgânica e outras similares.

Após desenvolvermos uma breve compreensão do significado da agropecuária, é de extrema importância a realização de uma análise apurada do caráter da agropecuária moderna. De acordo com Petrus, o mundo produz alimentos suficientes para alimentar todos os seus 7,6 bilhões de pessoas (estimativa de maio de 2018), entretanto pode-se apontar mais de 800 milhões de pessoas subnutridas que não possuem terra para o cultivo ou dinheiro para aquisição da mesma. “Muita comida é desperdiçada em todo o mundo. Há também cerca de um bilhão de pessoas que estão comendo demais ou comendo o tipo errado de comida. Muita terra é usada para cultivar rações para porcos e vacas em vários países para satisfazer a demanda por carne ou para servir como combustível renovável para veículos motorizados.” [4]

Outra característica presente na agropecuária moderna é sua artificialidade. Em 1840, Justus von Liebig apresentou estudos demonstrando que as plantas poderiam crescer sem a existência de compostos orgânicos. Era preciso apenas garantir que os solos fossem reabastecidos com produtos químicos como nitrogênio, fosfato e potássio. Esta ideia revolucionou o trabalho agrário no mundo e o solo passou a ser visto meramente como um depósito químico para prover o crescimento das culturas, de forma que a agricultura industrial moderna é impensável sem a utilização de fertilizantes químicos. [4]

De acordo com o professor Renato Coletto, a agropecuária modernista é possivelmente um dos principais fatores por trás das crises ambientais e dos problemas socioeconômicos do mundo contemporâneo [1]. Esta forma de trabalho moderna é, muitas vezes, baseada em “uma ideologia de eficiência econômica e racionalidade caracterizada pela crescente mecanização, uso considerável de fertilizantes e pesticidas, biotecnologia e intensificação de capital. É um tipo de agricultura “reducionista”, reduzindo a complexidade biótica da vida a seus componentes físico-químicos e reduzindo a cultura humana a um conjunto restrito de considerações econômicas.” [2]. A existência humana é considerada de modo amplamente divorciada da natureza e está, seguindo a ideia de Heidegger, como meros recursos a serem manipulados.

O desarraigar da agropecuária de seu contexto ecológico biótico conduziu a uma maior tensão entre os agricultores e a natureza. Apesar de uma perceptível riqueza material, este hipotético sucesso técnico, econômico e político trouxe grande insegurança e ansiedade aos agropecuaristas sobre o futuro. Neste novo cenário temos “o cuidado dos animais piorando, superfertilização, empobrecimento e aparecimento de doenças no solo, destruição de paisagens naturais, deterioração e exaustão da natureza e poluição do meio ambiente.” [2] Essas vantagens e esses grandes problemas e ameaças representam dois lados da agricultura, que têm passado por mudanças em tempos recentes.

Ao longo do século XX, a agropecuária se desenvolveu na direção da racionalidade do controle técnico científico como expresso na adoção de fertilizantes artificiais e pesticidas, na reprodução de animais e plantas, na criação de condições de vida artificiais e no aumento do uso de meios técnicos. A transição da agricultura para o agronegócio, isto é, o processo de industrialização da agricultura, transformou as conexões agrícolas com os poderes econômicos e políticos fixando nelas o selo do controle técnico científico. A inovação técnica na agricultura continua na era moderna e tem sido contínua com o desenvolvimento da ciência moderna [3]. O resultado disso foi que a agricultura se tornou mais intensa e aumentou em escala, conduzindo ao agravamento dos problemas. [2] Segundo Paul B. Thompson, esta “revolução agrícola” pode exceder a revolução industrial com relação ao seu impacto no meio ambiente e na subsequente história da humanidade. [3]

Com o objetivo de analisar o que foi esboçado acima é necessário que prestemos bastante atenção ao modo como as técnicas modernas, cientificamente fundamentadas, moldaram a agricultura e como os sistemas econômicos auxiliaram na propagação e intensificação deste pensamento em todo o mundo – o que chamaremos de Tecnicismo e Economicismo. A cultura ocidental é agora guiada pela metáfora de que a terra é uma máquina. [4]

Influência do Tecnicismo e do Economicismo

O engenheiro e filósofo Egbert Schuurman, defende que este controle e supervalorização do método científico na agricultura, na pecuária e nos diversos assuntos referentes a ecologia é conduzido pelo que denomina de tecnicismo, isso é, “nossa pretensão de que podemos dominar autonomicamente o todo da realidade por meio da ciência e da tecnologia e assim resolver todos os problemas atuais e garantir o progresso material”. [2] 

Quando uma ou mais funções da cultura humana se tornam tão importantes que passam a dominar toda a cultura e suprimir, desta forma, todas as demais funções ou aspectos, estamos lidando com os ismos, absolutizações. É isso que se entende por tecnicismo e economicismo. [4]

Segundo Petrus, este processo de tecnicização da agricultura (transformando-a em uma construção técnica) “obriga os agricultores a seguir os preceitos dos fornecedores de tecnologia, sementes, fertilizantes e sprays e a atender às exigências dos processadores.” [4] A estrutura do solo diminui em qualidade ao longo do tempo e, consequentemente, o valor nutricional dos alimentos produzidos diminui. Mas o que o agricultor individual pode fazer? 

A tecnicização é o processo pelo qual as plantas e os animais, para mencionar apenas estes, são transformados em unidades de desempenho técnico. [4]

Este reducionismo técnico e científico começou a se desdobrar durante a Revolução Industrial conduzindo a realidade para debaixo da cadência do ritmo de um controle todo abrangente, incluindo a agropecuária. Devido nossa biosfera ser extremamente complexa, única e completa, como define Schuurman [2], o resultado de um controle técnico científico ilimitado pode nos conduzir finalmente à destruição da natureza. 

Com a constatação de que a cultura ocidental é dirigida por um ethos profundamente arraigado da busca pelo progresso material por meio da ciência, da ciência aplicada em técnicas e da economia, um inquérito sobre como cultura ocidental irá produzir e distribuir os alimentos deve se envolver com este ethos. [4]

Ao mesmo tempo que muitas pessoas estão se conscientizando a respeito do dos perigos eminentes advindos deste controle tecnicista, a sua influência em fazendas e plantações é enorme. Podemos mencionar os constantes melhoramentos artificiais das plantações, gerado com colheitas maiores e o perigo de criar um perfil genético muito uniforme – com esta uniformidade perde-se a resistência das plantações em caso de doenças desconhecidas, gerando grandes catástrofes [2]. A criação de animais enfrenta problemas semelhantes. O professor Schuurman expõe que, na “bioindústria o controle técnico científico de funções abstratas dos animais tem se tornado tão absoluto que o próprio animal, em sua dignidade intrínseca, não é mais levado em consideração” [2]. 

Com a influência do tecnicismo, o ponto de partida não é mais a dignidade intrínseca do ser humano ou do caráter criacional da natureza e sua relação com os seres humanos, “mas o quadro reduzido do controle técnico científico e a utilidade a ser adquirida pelos homens.” [2]

Considerando a forma como a agricultura tem sido desenvolvida, na medida em que a sua produtividade técnica tem sido levantada em detrimento do meio ambiente, animais e plantas são criados para maximizar a produção, independentemente do bem-estar dos mesmos. “Os fertilizantes modernos foram cientificamente desenvolvidos e aplicados independentemente das propriedades particulares das estruturas do solo. Sua aplicação muitas vezes imprudente pode resultar em poluição severa dos cursos de água ou esgotamento da fertilidade do solo ao longo do tempo.” [4]

Principais problemas na ética agrícola e ecológica

Ainda que diferente da forma como é apresentada atualmente, a ética agrícola está entre os tópicos filosóficos mais antigos [3]. Figuras clássicas como Aristóteles (384-322 a.C.) escreveram extensas discussões sobre agricultura e sua relação com os valores e instituições sociais da sociedade grega. Estes autores clássicos viam a agricultura como uma adaptação humana sistemática e uma modificação do ambiente natural. Além de Aristóteles e outros filósofos gregos, algumas discussões breves e menos sistemáticas da agricultura ocorreram ao longo da história da filosofia. Um bom exemplo é o do filósofo John Locke (1632-1704) e do Barão de Montesquieu (1689-1755) que fez da agricultura um tema principal do seu Spirit of the Laws (1748) e o filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) que também ofereceu extensas discussões sobre a agricultura como uma pista para a manifestação do Espírito. 

Embora estes filósofos não tenham organizado seus escritos em termos de uma ética científica ou tecnológica, há pouca dúvida de que eles entendiam a agricultura como uma forma de tecnologia e estavam interessados nos problemas normativos e nas implicações da prática agrícola [3]. No último quarto do século XX, entretanto, tivemos uma virada de foco para a preocupação com os efeitos sociais e ambientais da agricultura industrial, abrindo o caminho para um renascimento da atenção filosófica à agricultura como uma forma de tecnologia. 

Embora a prática da agropecuária tenha mantido muitas das tradições e instituições sociais, “a ciência agrícola moderna tem sido mais tipicamente orientada pela máxima do aumento de produtividade: faça duas plantas crescerem onde apenas uma cresceu antes.” [3]. Adotando assim a ideia de Jacques Ellul de que técnicas cada vez mais eficazes passaram a determinar toda a nossa civilização. Desta forma, a ética subjacente da tecnologia agrícola pode ser interpretada mais prontamente como uma aplicação bastante direta do utilitarismo: o desenvolvimento de pesquisa e tecnologia deve ter como objetivo produzir “o maior bem para o maior número”, principalmente aumentando a eficiência da produção agrícola. [3]

Segundo o teólogo Francis A. Schaeffer, há uma crise moral que hoje é um empecilho no caminho do desenvolvimento de uma ética sustentável:

Porque a relação do homem para com a natureza é uma crise moral? É uma crise moral porque é uma crise histórica envolvendo a História e a cultura do homem, expressa em suas raízes por nossas visões religiosas e éticas da natureza – que foram relativamente inquestionadas nesse contexto. [6]

De acordo Thompson a gama de questões éticas na tecnologia agrícola é extraordinária. Ele as divide em três categorias:

Questões relacionadas à saúde e segurança humanas Questões relacionadas ao ambiente mais amplo Questões relacionadas ao significado cultural, histórico e social da agricultura como um modo de vida e um sistema de instituições conectadas
Inclui a disponibilidade de alimentos básicos, dieta, nutrição e questões relativas à segurança alimentar. Inclui o status filosófico dos ecossistemas agrícolas e sua relação com a natureza, juntamente com questões sobre a posição dos animais e as obrigações humanas para com eles. Diz respeito à organização social da agricultura e centrou-se em questões associadas à industrialização da agricultura.

No que diz respeito ao impacto ambiental, a análise ética se baseia na posição moral dos animais não humanos, a natureza selvagem e a estrutura dos ecossistemas, bem como os deveres para as gerações futuras. A sustentabilidade tem sido proposta como uma forma de enquadrar as características ecologicamente desejáveis de qualquer sistema agrícola, enquanto as disputas sobre as especificações apropriadas para uma agricultura sustentável têm sido um foco importante na ética agrícola. [3]

Paul B. Thompson afirma:

Ao tratar a decisão de desenvolver novas tecnologias como um problema de otimização, a abordagem utilitarista tem a tendência de ignorar os impactos que são difíceis de quantificar. Os impactos ambientais são frequentemente externalidades que não figuram nos custos que um produtor considera ao decidir usar uma determinada tecnologia. Além disso, muitas vezes não há mercados ou fóruns disponíveis para aqueles que suportam os custos ambientais mais diretamente para registrar suas queixas. Este é o caso para as gerações futuras, por exemplo, mas também para os animais, que podem ser colocados em condições intoleráveis em modernas operações de alimentação de animais confinados. [3]

Assim vemos que no desenvolvimento da agropecuária moderna o objetivo utilitarista de produzir o maior bem para o maior número de pessoas exige que as tecnologias agrícolas não sejam atormentadas por externalidades, “e aqueles que desenvolvem, avaliam e utilizam tais tecnologias enfrentam um desafio filosófico em refletir externalidades em sua tomada de decisão”. [3]

O tecnicismo é selado pelo motivo do poder. Esse motivo central se diferencia na ciência como o motivo de conhecimento e poder e na tecnologia como motivo da tecnologia pela tecnologia ou como motivo de perfeição tecnológica: o que pode ser feito deve ser feito. Na agricultura, o ato de colher com a ajuda do poder técnico científico é alterado em uma cultivação exploratória e predatória, na qual somente os poderes do dinheiro e do lucro material importam [2]. 

Reorientação necessária – A elaboração de um quadro normativo para direcionamento da agropecuária e da ecologia

A partir destas discussões, existe a necessidade de uma abordagem integrada para a agricultura e os problemas derivados, já que uma abordagem não integrada e fragmentada se mostrará impotente ao longo do tempo. 

Em um relatório altamente discutido publicado pelo Conselho Científico para Políticas Governamentais (WRR, sigla em holandês) na Holanda, integração significa enfatizar a conexão coerente entre uma agricultura permanente e altamente desenvolvida tecnicamente e seu uso conservador de energia, materiais básicos, natureza e terreno. Eu acredito, entretanto, que essa visão de integração é muito limitada. Por causa da natureza e escopo do problema, nós precisamos de uma abordagem mais abrangente. Precisamos examinar uma variedade de atividades intimamente entrelaçadas como: ciência, tecnologia, agricultura, economia e política. Mas acima de tudo, dentro deste contexto abrangente, precisamos examinar criticamente o papel chave da tecnologia baseada na ciência. [2]

Egbert Schuurman afirma que, para excluir a autossuficiência de qualquer tipo de racionalidade, a Filosofia Reformacional proposta por Herman Dooyeweerd reconhece que “a racionalidade está plantada numa estrutura normativa dada da própria realidade que é supra subjetiva e supra arbitrária. Essa estrutura normativa precede a discussão da racionalidade e é, portanto, de grande importância para determinar o lugar da razão e assim da ciência” [2]. Esta mesma estrutura normativa é também o que nos ajudará no empreendimento de trilhar um caminho para fora da crise na agricultura sem requerer a rejeição da ciência e da tecnologia. 

Esses princípios normativos nos são apresentados na figura de normas que funcionem como guias e sinalizadores para uma ação cultural responsável, de forma que o desenvolvimento da agricultura é também marcado por essa estrutura normativa.

O pensamento multimodal se encaixa perfeitamente com a visão de mundo cristã e permite que vejamos a natureza, a agropecuária e as respostas a seus problemas de forma ricamente integradas. Além disso, diversas evidências indicam que muitos dos “problemas enfrentados pela sociedade ocidental, e as tentativas fracassadas de fornecer soluções, podem ser atribuídos a uma forma agressiva de reducionismo, onde certos aspectos (particularmente o econômico) dominam e subjugam outros” [5]. Deste modo é de extrema importância reconhecermos e respeitarmos a natureza multimodal da realidade.

Primeiramente, a norma histórico-cultural definida pelo aspecto formativo é a de “diferenciação e integração, de continuidade e descontinuidade, de larga escala e pequena escala, de uniformidade e pluriformidade.” [2] Estes diversos componentes não podem ser entendidos como contraditórios. Schuurman aponta que “os problemas da agricultura hoje podem ser entendidos largamente em termos de ênfase em um único lado na integração, continuidade, centralização, foco em larga escala e uniformidade” [2]. De igual forma, a concentração de esforços em favor do método técnico científico e na tecnologia agrícola ao mesmo tempo que se exclui o espaço para criatividade e a inovação, que podem ser expressas em “novas plantações, rotação de plantações, aumento de qualidade” [2], se tornará extremamente perigosa. Satisfazer ambos os componentes da norma histórico-cultural nos conduzirá à um desenvolvimento agrícola mais equilibrado. 

Em sequência, a agropecuária é revelada e seu significado é aprofundado quando a norma linguística e social são satisfeitas. A norma linguística refere-se a informação e a representação simbólica. De acordo com Schuurman, “isso significa que a informação deve ser provida de um modo claro e público para cada ação ou renovo agrícola. Somente então aqueles que estão engajados na agricultura ou aqueles que usam seus produtos podem arcar com suas responsabilidades específicas em avaliar e decidir” [2]. Assim, esta norma está ligada a norma social. “Sem uma comunicação aberta, aqueles que participam na agricultura não podem executar suas responsabilidades comuns e individuais” [2]. Uma profunda consideração pela coerência e veracidade da informação e comunicação significa que as responsabilidades de todos os envolvidos no processo do desenvolvimento agropecuário adquirem mais importância.

A norma econômica da eficiência deve também ser respeitada na agricultura, mas não de forma única e reducionista, como se fosse a única existente ou superior às demais. Ainda assim, devemos considerar a norma econômica dentro do seu próprio local em um quadro integral de normas. O núcleo da esfera econômica é a mordomia, ou seja, o uso responsável dos recursos disponíveis. Schuurman afirma:

“Nós não podemos aplicar essa norma econômica somente para o processo de produção. Nós devemos também tratar economicamente com matérias primas, energia, natureza, meio ambiente, paisagens, animais e até com pessoas. Se nós reduzimos a norma econômica somente ao processo produtivo, então, ao invés de um bom desenvolvimento, nós teremos o deslocamento da agricultura. Se, entretanto – em conjunto com as normas descritas acima e as outras a serem enumeradas – nós aplicarmos a norma econômica em cada aspecto, então prevenimos qualquer desenvolvimento excessivo e a superprodução que o acompanha e corrigimos o subdesenvolvimento que existe quando lidamos e gerimos a natureza.” [2] 

Desta forma adquirimos uma preocupação mais relevante e significativa pela natureza, pela escassez de matérias primas e chegamos à percepção de que funcionar economicamente na agricultura não é o todo da vida humana.  “Tanto o proprietário de terra quanto os trabalhadores devem ser reconhecidos em suas responsabilidades” [2].

Também temos a promoção saudável do desenvolvimento normativo da agricultura quando fazemos justiça à norma estética. Em continuidade com as normas precedentes, uma profunda consideração por esta norma significa que a agricultura deveria crescer de forma balanceada ou equilibrada, rejeitando os atuais excessos, superfertilização e exploração. “Essa norma significa, por exemplo, que novas possibilidades tecnológicas nunca deveriam ser introduzidas de um jeito revolucionário. Essa norma de harmonia também deve ser levada em consideração na relação multifacetada da natureza, dos seres humanos e da cultura e, é claro, particularmente pertinente na gestão harmoniosa das paisagens”. [2]

Em respeito à norma jurídica, devemos “resistir a qualquer possibilidade de injustiça que poderia aparecer do desenvolvimento da agricultura” [2]. De igual modo, todos os envolvidos nos processos agrícolas devem se perguntar se suas contribuições “fazem justiça em relação ao reino animal e vegetal, às fontes de matéria prima, consumidores, sociedade, cultura e assim por diante” [2].

Em seguida, somos convocados ao respeito pela norma ética do cuidado e do amor – cuidando e amando tudo que está relacionado à agricultura. “Todas as normas mencionadas até agora são reveladas e aprofundadas quando as pessoas respeitam esta norma. Se essa norma não é respeitada em todas as suas facetas, o fazendeiro se torna estranho à sua terra, à natureza e aos animais.” [2]

O professor Schuurman finaliza sua análise da aplicabilidade de um quadro normativo na agropecuária com as implicações da norma pística de confiança: 

“O trabalho cultural nunca foi um mar de rosas. Para a agricultura é literalmente e, também, figurativamente verdade que espinhos e ervas daninhas sempre a acompanharão. Ainda assim, dentro do quadro geral de normas esboçado, os problemas da agricultura nunca se tornarão insuportáveis e insuperáveis. Isso é verdade se nos voltarmos para a direção transcendental da norma da fé, a direção do significado e cumprimento de tudo dentro do reino de Deus. Se, entretanto, sob a fundação da crença no controle técnico científico nós procurarmos superar todos os problemas por nós mesmos, então colocamos em ação a lei do efeito contra produtivo e os problemas crescerão em tensões insuportáveis e perigosas que podem até gerar catástrofes.” [2]

Quando o trabalho agrícola se submete a este quadro normativo, a agricultura biológica e a agricultura técnico-científica não precisam ser opostas, mas podem agir de forma complementar. 

Por um lado, alguns superestimam o controle científico da agricultura. Por outro, frequentemente como reação à crise, outros defendem uma agricultura orgânica ou biológica inspirados por uma visão romântica da natureza. Essa oposição pode ser evitada e eliminada se o controle técnico científico da agricultura levar em consideração simultaneamente, enquanto ele se desenvolve, um grande número de normas mutuamente coerentes. [2]

O significado da agropecuária – A metáfora da cidade-jardim

De acordo com o motivo cristãos central do amor, que fundamenta radicalmente a estrutura normativa apresentada, três princípios são fundamentais para o desenvolvimento de uma agricultura cristã: mordomia, justiça e compaixão. [1] Assim, para uma agricultura responsável é necessário uma conversão à visão bíblica da terra que se desenvolve de um jardim ou paraíso em direção à uma cidade-jardim pela graça de Deus. Simons Petrus defende que a sistemática da filosofia reformacional é plenamente compatível com esta metáfora da cidade-jardim.  [4]

Conforme apresentado no relato bíblico do livro de Gênesis, Adão recebeu de Deus a tarefa de cuidar do jardim como mordomo e esta incumbência implica em diversas responsabilidades de justiça e compaixão para o ser humano. Segundo Coletto, por um lado, isso exclui a propriedade absoluta e, por outro, enfatiza a gestão inteligente dos recursos em nome dos outros [1]. Nos círculos cristãos, o princípio da mordomia é compreendido sob duas perspectivas complementares. Por um lado, há uma visão de domínio, implicando a tarefa de desenvolver a Terra e, por outro lado, a mordomia é por vezes entendida como “manutenção da terra”, implicando que a criação tem valor inerente (além de sua utilidade para propósitos humanos). 

De forma coletiva, nossa cultura moderna transformou os nobres dons de ciência, a capacidade técnica e a mordomia prudente ordenada por Deus em um ethos idólatra: o mundo é entendido como uma máquina. Agora, como resultado desta idolatria, estamos com problemas que parecem ser quase insuperáveis. O aquecimento climático, os armamentos nucleares, a energia nuclear e, também, a destruição constante do solo fértil. [4]

Esta tarefa pode ser expressa na agropecuária, no processo de produzir alimentos e cuidar da terra de maneira a manter a sua fertilidade e não a esgotar. “Quaisquer que sejam as ferramentas, métodos ou habilidades que eu use, devem ser usados com responsabilidade e cuidado. A agricultura é um serviço a Deus e a outras pessoas.” [1]

Ao invés do motivo central do poder, no qual tudo o que fazemos se resume a nós, temos o motivo central do amor, que produz diversidade em nossas várias atividades culturais. Portanto, implicitamente, o que buscamos na tecnologia é construir e preservar, na agricultura é colher e manter, na economia é a mordomia e na política é servir e avançar na retidão e na justiça pública. As várias responsabilidades qualificadas e suas irredutibilidades são preservadas. Tal diversidade leva ao fechamento significativo – no senso de desenvolvimento – das atividades culturais. [2]

Assim como no princípio Adão recebeu sua tarefa de desenvolver e preservar a criação em um Jardim, o Apocalipse do apóstolo João termina com uma cidade que tem as características claras de um jardim. Temos, portanto, a forte ideia de que a cultura humana deve se assemelhar a uma cidade-jardim, na qual a justiça e a paz para todos prevalecem.  [4]

Tendo esta metáfora como guia, podemos descobrir o verdadeiro significado da agropecuária seguindo as principais características de um jardim e transferindo-as para a cultura humana. Segundo o doutor Petrus podemos enumerar as seguintes características [4]:

a. Um jardim é esteticamente agradável e não feio;

b. Ele oferece uma variedade de plantas e animais, bem como características técnicas (cachoeiras, caminhos, áreas isoladas);

c. Sua produtividade (sustentabilidade) é mantida;

d. Há espaço para crianças e animais brincarem;

e. Não existe uma distinção nítida entre áreas onde as pessoas vivem e seus jardins produtivos;

f. Está protegido contra intrusos (humanos e outros);

g. Os detritos são reciclados;

h. Atende às necessidades das pessoas que dependem dele. 

Pensar na agricultura em termos da metáfora da cidade-jardim, servirá de grande auxílio na tarefa de resistir ao desenvolvimento de monoculturas em larga escala concedendo a ciência e a tecnologia apenas uma função de serviço. “Na colheita de comida em que a natureza é cuidadosamente protegida e conservada, em que a fertilidade é mantida e melhorada e em que a paisagem é responsavelmente gerida, a agricultura serve para encontrar a necessidade mais básica de todas as pessoas. Então a ciência e a tecnologia não mais governam, mas, como mãos auxiliares, servem a agricultura.” [2]

A responsabilidade de tratar desses e outros problemas ambientais não se apoia somente no motivo da sobrevivência humana: está fundamentalmente enraizada no relacionamento dos seres humanos com o seu Criador. O “obedecer é melhor do que sacrificar “foi a instrução dada pelo profeta Samuel ao rei de Israel, Saul (1 Samuel 15:22). Isso ainda hoje é imperativo. Nestas questões, obediência significa viver dentro da capacidade de sustentação de nosso meio ambiente em harmonia com os ciclos que Deus estabeleceu na sua criação. À medida que o fizermos, o meio ambiente da terra será realçado e as gerações futuras serão tratadas com a justiça e a equidade que merecem. [7]

 

Referência Bibliográfica

[1] Coletto, Renato. Neo-Calvinist organisations for farming, business, tourism and so forth. 2011. School of Philosophy, Potchefstroom Campus North-West University.

[2] Schuurman, Egbert and Morton, Herbert Donald (1989) “Agricultural Crisis in Context: A Reformational Philosophical Perspective,” Pro Rege: Vol. 18: No. 1, 2 – 14. 

[3] Thompson, Paul B. “Agricultural Ethics”. In: Mitcham, Carl (Org.). Encyclopedia of science, technology, and ethics. Macmillan Reference USA, 2005.

[4] Simons, Petrus. Perspectives on Agriculture: A tale of two metaphors. 2015. Potchefstroom Campus North-West University.

[5] Jones, Gareth. Multi-Modal Thinking in Agricultural Sustainability, 2013. Disponível em: < http://dooy.info/using/eem.sust.html>. Acesso em: 02 ago. 2018.

[6] Schaeffer, Francis A. Poluição e Morte do Homem: a resposta cristã à depredação humana do jardim de Deus, 1. Ed. USA: Editora Cultura Cristã, 1970.

[7] Dyke, Fred Van. A Criação Redimida: A base Bíblica para a Mordomia Ecológica. 1.ed. USA: Editora Cultura Cristã, 1999.

 

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