Aqui você pode conferir pequeno trecho do livro “A Ciência de Deus” de Alister McGrath.
Este livro foi traduzido pelo projeto da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência e publicado em parceria com a Editora Ultimato.

Confira o trecho. Vai valer a pena!


A Legitimidade de uma Teologia Científica

Muitos autores no passado viram as ciências naturais como o parceiro de diálogo para suas próprias ideias. O grande autor marxista Friedrich Engels defendeu que o marxismo representava uma descrição “científica” do mundo, o qual empregava basicamente os mesmos métodos das ciências naturais. Essa visão bastante ingênua provou-se simplesmente insustentável, principalmente porque Engels desconsiderava as diferentes questões que se impunham às ciências naturais e sociais.

O fruto de seu apelo retórico às ciências naturais fora a criação de um suposto método “universal”, que simplesmente não se prestava a qualquer aplicação, e que foi discretamente abandonado com certo constrangimento por seus sucessores, tais como o notório teórico marxista húngaro Georg Lukács (1885-1971).

Entretanto, a visão de dialogar de forma crítica mas respeitosa com as ciências naturais, retém um grande poder de atração, não apenas para os teólogos. A verdadeira dificuldade é a de esclarecer como esse diálogo poderia ocorrer sem ferir o caráter distintivo da teologia. Minha luta com essa questão consistiu num dos principais temas do projeto de “teologia científica” como um todo, e a solução que proponho consiste principalmente no reconhecimento de que cada disciplina científica requer uma abordagem de sua área de interesse, a qual é determinada por suas próprias características específicas – uma noção resumida pela expressão grega kata physin, “de acordo com sua própria natureza”.


A ciência como “serva da teologia” (ancilla theologiae)

Há uma prática de longa data na teologia cristã de buscar recursos intelectuais fora da tradição cristã, como uma forma de se criar uma visão teológica. A essa abordagem se atribui a expressão latina ancilla theologiae, uma “serva da teologia”. A ideia fundamental é a de que os sistemas filosóficos podem ser uma forma de se estimular o desenvolvimento da teologia, permitindo que se abra um diálogo entre os pensadores cristãos e seu ambiente cultural. Os dois maiores exemplos dessa abordagem teológica são os diálogos com o platonismo e com o aristotelianismo.

O diálogo com o platonismo foi de suma importância durante os cinco primeiros séculos da Igreja Cristã, especialmente no universo cultural grego do leste do Mediterrâneo. Conforme o cristianismo se expandiu naquela região, ele se deparou com visões de mundo concorrentes. O platonismo – uma cosmovisão incrivelmente influente, presente nos diálogos do grande filósofo clássico Platão e de seus discípulos – era certamente a mais importante delas. Tais visões de mundo poderiam ser vistas de forma positiva ou negativa: elas eram tanto uma oportunidade para o diálogo e para o desenvolvimento intelectual, quanto uma ameaça à existência do cristianismo. A tarefa com a qual se deparavam autores como Justino Mártir ou Clemente de Alexandria era como fazer uso dos méritos intelectuais evidentes do platonismo para se construir uma cosmovisão cristã, sem que com isso se comprometesse a integridade do cristianismo. Afinal, no fim das contas, o cristianismo e o platonismo não são equivalentes.

Um novo debate foi inaugurado no século XIII, durante a era de ouro da teologia escolástica. A redescoberta de Aristóteles pelos autores medievais parecia oferecer novos recursos que poderiam auxiliar em todos os aspectos da sua vida intelectual, incluindo a física, a filosofia e a ética. Era inevitável que os teólogos também desejassem verificar o que poderiam utilizar das ideias e métodos aristotélicos na construção de uma teologia sistemática – como a grandiosa Summa Theologiae (Suma Teológica) de Tomás de Aquino, amplamente vista como uma das maiores obras de teologia já escritas.

Em ambos os casos, o emprego de uma outra disciplina intelectual como ancilla theologiae oferece tanto oportunidades quanto riscos. Como uma teologia científica defende que os métodos e premissas das ciências naturais constituem os melhores parceiros – na verdade, poderíamos afirmar que são parceiros naturais – de diálogo com a teologia cristã, é importante avaliar quais seriam esses riscos e oportunidades.

As duas maiores oportunidades oferecidas à teologia pela apropriação crítica de outras disciplinas podem ser resumidas a seguir:

  1. A possibilidade de uma exploração mais rigorosa dos problemas com os quais os teólogos cristãos se deparam ao elaborar suas ideias, e que muitas vezes encontram um paralelo em outras disciplinas. Tomás de Aquino, por exemplo, viu na noção de Aristóteles de um “motor imóvel” um grande auxílio para colocar alguns dos argumentos em defesa da existência de Deus.
  1. A possibilidade dada à teologia cristã de interagir e dialogar com outra cosmovisão – um grande elemento do testemunho da igreja em seu contexto secular. Justino Mártir acreditava claramente que muitos platonistas ficariam tão estarrecidos com os paralelos entre o platonismo e o cristianismo que poderiam se converter. Da mesma forma, no sermão do Areópago (Atos 17:22-31), Paulo evoca alguns temas da filosofia estoica de forma a comunicar a mensagem cristã à cultura de Atenas.

Contudo, juntamente com os aspectos positivos de tal interação, há também um risco evidente. Ideias não especificamente cristãs passam a desempenhar um papel importante na teologia cristã. Por exemplo, noções aristotélicas acerca de como as ideias eram logicamente interligadas, ou ideias cartesianas acerca do ponto de partida adequado de qualquer disciplina intelectual poderiam se infiltrar na teologia cristã. Em algumas instâncias, isso seria algo neutro; em outras, pode ser visto como uma implicação negativa, minando a integridade da teologia cristã, e gerando distorções. Martinho Lutero, o grande reformador alemão, defendia que a teologia medieval havia permitido excessivas distorções por meio de uma utilização excessiva e acrítica das ideias de Aristóteles na Idade Média. Um bom exemplo disso é o uso da ideia aristotélica de que a justiça envolveria a recompensa de uma pessoa de acordo com seus méritos, a qual Lutero considerava uma séria distorção da doutrina da graça. Para Lutero, a ação salvadora de Deus em relação à humanidade não se baseava em nossos méritos, mas tão somente na graça de Deus.

Portanto, que “serva”, e que “auxiliadora” poderiam ser adotadas? Nenhuma filosofia alcançou uma aceitação universal. Entretanto, os métodos operantes nas ciências naturais se aproximam muito de uma forma universalmente válida e aceitável de se confrontar a realidade, principalmente porque esses métodos parecem ser independentes da cultura, raça e gênero. Na verdade, muitos cientistas naturais defendem que o método científico é o que mais se aproximaria de um pensamento universalmente aceito e válido. As ciências naturais, quando adequadamente compreendidas, representam, assim, um parceiro de diálogo óbvio e crível para a teologia cristã. A tarefa que se impõe à teologia científica é, assim, estimular e facilitar um diálogo respeitoso e positivo entre a teologia cristã e as ciências naturais, sem que a segunda domine a primeira.

Porém, seria tal diálogo algo arbitrário, ou uma questão de pura conveniência? Não seria teologicamente oportunista? Ou haveria razões mais profundas para se ver este diálogo como um elemento natural do método teológico?


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O imperativo ontológico à interação teológica com as ciências naturais

O argumento básico em prol do projeto de “teologia científica” consiste em que uma relação positiva entre a teologia cristã e as ciências naturais é necessária para uma compreensão cristã da própria realidade. Neste ponto, deparamo-nos com uma temática de enorme importância ao projeto: o papel fundamental da doutrina cristã da criação. Se o mundo é de fato uma criação de Deus, então haveria razões ontológicas para um diálogo teológico com as ciências naturais 10 . Longe de se tratar de um diálogo arbitrário – como a sugestão de que explorássemos a interação entre a filatelia e o artesanato das zonas rurais indonésias – trata-se de um diálogo natural, fundamentado na crença elementar, segundo a qual o Deus a que se refere a teologia cristã é o mesmo que criou o mundo investigado pelas ciências naturais.

Falar de ontologia implica introduzir a ideia de que a criação possui um caráter ou natureza especiais, precisamente porque foi criada por Deus. Embora muitos teólogos do século XX resistissem à ideia de ontologia, vendo-a muitas vezes como uma ideia antiquada da metafísica grega clássica, uma teologia científica está sempre aberta a essa noção, defendendo que uma das tarefas mais importantes das ciências naturais e da teologia cristã é a de lidar com a natureza da realidade – não a determinando logo a princípio, mas explorando-a e colocando-a por meio de um processo de descoberta e encontro.

Uma das premissas fundamentais de uma teologia científica é que, uma vez que a ontologia do mundo natural é determinada pelo seu status como criação de Deus, e é reflexo deste, os métodos e premissas que atuam nas ciências naturais podem estimular e informar os métodos e premissas de uma teologia cristã responsável. A temática básica de “encontro com a realidade” percorre tanto essas ciências naturais quanto uma teologia científica, e tem suas raízes na doutrina cristã da criação. Isso não significa dizer que as ciências naturais e a teologia cristã são idênticas, tanto em conteúdo quanto nos métodos; a ideia de um “diálogo com a realidade” contém em si mesma a noção correlata de se interagir com cada nível dessa realidade, de acordo com sua natureza distinta.

Contudo, a compreensão cristã da criação não se limita à ideia de que Deus criou a totalidade da realidade tal que cada aspecto da mesma, em maior ou menor medida, reflete a natureza divina. O Novo Testamento mostra Jesus Cristo como o agente da criação – aquele por meio do qual o mundo foi criado. Isso leva ao reconhecimento de que essa mesma racionalidade divina que é intrínseca à criação é incorporada em Jesus Cristo, como o Deus encarnado. Esta temática, encontrada em algumas das obras do grande teólogo escocês Thomas F. Torrance, exerce um papel de grande importância numa teologia científica, e é recorrente ao longo destes volumes.

 

 

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